Uma Rua Chamada Pecado, 1948
Acervo Cedoc/FUNARTE
Seja o senhor quem for... eu sempre dependi da bondade dos estranhos...
Blanche Dubois (*)
Mesmo reconhecendo-o como um dos grandes dramaturgos americanos do período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, críticos e historiadores são reticentes em relação à obra de Tennessee Williams. Este ensaio procura identificar uma das razões do mal -estar que sua dramaturgia provoca.
Repressão da Memória
Tennessee Williams foi revelado para o grande público do teatro americano (leia-se Broadway) a 31 de março de 1945, quando estreou com imenso sucesso de público e crítica a sua The Glass Menagerie. Estava co m 3 4 a nos, o que para ele significava sucesso tardio e arduamente conquistado.
De um modo geral, os estudiosos de sua vida e obra, mesmo reconhecendo nele o poeta das vítimas da repressão em geral e da sexual em particular, passam ao largo daquela informação, sendo muito raros os que dedicam meia dúzia de linhas a uma experiência anterior (Batt/e of Angels, 1940) que resultou em fracasso de bilheteria. Outra aventura teatral também esquecida é a coletânea de peças em um ato, American Blues, premiada pelo Group Theatre em 1939. As peças deste volume, carimbadas com a rubrica "preocupações sociais e radicalismo", costumam ser despachadas para o arquivo das "superadas" experiências teatrais dos anos trinta. E não se fala mais no assunto, pois a regra americana ensina que só o sucesso interessa.
No caso de um escritor como Tennessee Williams, essa estratégia de rasurar o passado tem conseqüências nefastas em mais de um sentido: de um lado, desarma até mesmo a análise de seus sucessos e, de outro, deixa completamente inexplicada a maior parte de sua obra. Para nos restringirmos a números: 32 peças curtas, 7 médias e 24 longas, além de 15 filmes, um dos quais é baseado em um de seus romances (The Roman Spring of Mrs. Stone) que, assim como os livros de poesia e contos, não entraram nesta conta.
O próprio dramaturgo colaborou com a estratégia, na medida em que, por exemplo, repetiu seguidamente a informação de que passou toda a vida reciclando seus materiais, de modo que um conto virou peça em um ato, depois peça longa, depois filme, ou o contrário, como The Glass Menagerie, que primeiro foi o conto Portrait of a girl in glass - onde, segundo o autor, se encontra o verdadeiro retrato literário de sua irmã Rose, matriz de Laura em Menagerie -, depois roteiro (The Gentlemann Caller) recusado por Hollywood e finalmente a peça que o consagrou. Com base neste tipo de declarações, devidamente confirmadas por longas análises comparativas, acredita-se que quem identificou um par de temas já está em condições de explicar o conjunto da obra e, portanto liberado de entrar em certos detalhes, sobretudo os que escapam ao esquema.
Mas se for verdade que a supressão de um problema, como ensinam os homeopatas, costuma ter por resultado o seu ressurgimento em circunstância agravada, podemos antecipar desde já algumas dificuldades para interessados na obra de Tennessee Williams. Por exemplo: como explicar que Camino Real (reciclagem de American Blues) permaneça sem classificação, e quando muito seja considerada apenas uma coletânea de cenas escrita sob a influência da leitura de O Sonho de Strindberg?
Reconhecendo que seria pedir demais à crítica norte-americana um interesse maior que o simples registro por fracassos de bilheteria ou, mais grave, por textos que nem sequer ultrapassaram a condição de montagem experimental, vejamos então como ela trata os sucessos. No caso de Tennessee Williams, também não adianta muito, pois até mesmo A Streetcar Named Desire, uma quase unanimidade em sua condição de obra-prima, tem sido, desde a estréia na Broadway em 1947, objeto de cobranças no mínimo improcedentes (nos termos da peça) pela própria critica favorável. John Gassner, absolutamente insuspeito, por ter sido o primeiro a apostar no dramaturgo (patrocinou a montagem de Battle of Angels depois de tê-io selecionado para participar de um seminário que ministrava na escola de Erwin Piscator), cobra-lhe disciplina, multiplicação desnecessária de motivos e (pasmem!) lamenta a incapacidade de alcançar a dimensão trágica dos personagens. E Roger Boxill, um dos especialistas mais simpáticos à obra, não ultrapassa a sua defesa em nome de um conceito tão problemático como o de "naturalismo lírico". Concordando com Eric Bentley, que identificara a estruturação das peças com base antes no conto moderno que na "peça-bem-feita", aponta sem maiores sobressaltos os recursos técnicos da narrativa cinematográfica, bem como a inspiração em temas e motivos semelhantes aos de Tchekov (aliás, informação mais de uma vez dada pelo próprio dramaturgo, que estranhava a unilateralidade da crítica teatral, aparentemente interessada apenas em sua também declarada simpatia por temas provenientes de D.H. Lawrence).
Não vale, evidentemente, a pena perder tempo com a crítica conservadora, que desde a primeira peça rejeita a obra de Tennessee Williams em nome da "moral e dos bons costumes", ou de valores estéticos como a "peça-bem-feita", quando não de ambos. Mas para aproveitar a oportunidade de exercício do veneno ao estilo americano, não custa registrar a aristocrática objeção de Mary MacCarthy que, em nome de um critério como a verossimilhança de personagem, escreveu que Blanche até podia ser uma alcoólatra, mas ter sido expulsa de uma cidadezinha como prostituta e ao mesmo tempo se comportar como uma aristocrata convencional, isso seria inaceitável, por incoerência (logo, inverossimilhança). Consta que, por causa desse despropósito, Gore Vidal passou anos sem condições de ler as criticas teatrais da prestigiada colaboradora da Partisan Review.
É ainda menos produtivo concluir, depois dessa pequena amostra, que Tennessee Williams é um dramaturgo polêmico, como se costuma fazer nestes tempos de liberalismo intelectual triunfante. O principal problema é que afetos e desafetos acabam batendo no mesmo limite, ultrapassado pelo dramaturgo desde os primeiros exercícios de American Blues: sua obra, decididamente, não obedece ao padrão convencional que, entretanto continua orientando críticos e historiadores do teatro.
Para nos limitarmos ao primeiro sucesso, The Glass Menagerie, logo na primeira rubrica encontramos o seguinte alerta: "O narrador é uma convenção explícita da peça. Ele adota com a convenção dramática todas as licenças que servem a seus propósitos".
Diga-se, entretanto, em favor da crítica, que em mais de uma ocasião o dramaturgo curvou-se a suas exigências. Ele próprio confessa em suas memórias que acredita ter finalmente encontrado a forma da peça-bem-feita em Cat on a Hot Tin Roof e por essa razão, isto é, pelos critérios é sua peça preferida, já que os personagens são interessantes, verossímeis e tocantes; a unidade de tempo e lugar é consistente, etc.,
Para fins de especulação: quem conhece o senso de humor, com acentuada queda para o humor negro, do autor dessas memórias, deve considerar também outros dados. Cat estreou em 1954 e foi imediatamente aclamada pela crítica, recebendo o prêmio Pulitzer. Um ano antes, depois de muito tempo de batalha, inclusive com o texto, ele conseguira convencer Cheryl Crawford a produzir Camino Real (até então material de exercícios no Actors' Studio). Esta peça de estilo strindberguiano fora tão ferozmente rejeitada pela crítica que a produtora decidiu retirá-la de cartaz, sem condições financeiras de arriscar uma temporada. Não é impossível, pois, que o dramaturgo tenha escrito a sua "peça preferida" com um olho nos críticos, para mostrar-lhes que sabia escrever como pediam, e outro na bilheteria. No que andou bem, porque ao sucesso na Broadway seguiu-se o de Hollywood, garantindo-lhe uma situação financeira bastante confortável, capaz de justificar até uma aposentadoria. O fato de ele ter prosseguido, escrevendo um fracasso após outro, até às vésperas da morte, impunha perguntas a que ele respondia sempre tergiversando: "Elia Kazan foi o único a compreender o desespero com que eu preciso escrever para continuar vivendo", entre outras.
A outra vitória (de Pirro) da crítica está na opinião do próprio dramaturgo em relação a Menagerie (acabou concordando justamente com BrooKs Atkinson, que achava desnecessária a parte narrativa da peça) ou a Camino Real: ele morreu acreditando que não conseguira encontrar a estrutura adequada à peça, reiterando a sua convicção sobre a importância da forma acabada em qualquer obra.
Relações Perigosas
Os biógrafos de Tennessee Williams costumam se interessar por episódios mais ou menos folclóricos de sua vida, como o emprego arranjado pelo pai na companhia de sapatos, o trabalho em hotel vagabundo, ou pequenos golpes financeiros na cordata avó materna para financiar seus estudos universitários (área de dramaturgia), entre outros ao longo dos anos trinta. Mas a tentativa de se filiar ao programa da Works Progress Administrationtion em Chicago, onde o Federal Theatre desenvolvia radicais experiências de esquerda, não desperta muito interesse.
Outro detalhe considerado irrelevante é o prêmio conferido pelo Group Theatre a American Blues, peça em um ato onde estão registradas suas observações durante as andanças dos anos negros da Depressão, da mesma forma que não interessa relacionar o Group Theatre a seu sucessor, o Actors' Studio, fundado em 1947. E assim fica incompreenssível a preferência de Tennessee Williams por Elia Kazan, o diretor de A Streetcar Named Desire. A afinidade estética, que também envolveu a escolha de Marlon Brando e Jessica Tandy para os papéis de Stanley KowalsLy e Blanche Dubois, acaba parecendo simples questão de gosto pessoal, independente de critérios ou linguagem teatral. Isto quando não acontece de algum historiador provocar um curto-circuito para afirmar que o Actors' Studio foi criado em função das peças de Williams. (Se bem que neste caso estejamos no campo das analogias delirantes, mas com fundamento nas aparências: já que Stanislavski desenvolveu o seu método um pouco em função das peças de Tchekov, nada impede que Lee Strasberg tenha adaptado ao teatro americano aquele método em função do equivalente americano de Tchekov. Este é o tipo do engano produtivo.) Mas se houver alguma dúvida sobre o descompromisso do dramaturgo com o Studio, basta ver o tom divertido em que ele relata a derrota imposta por Bette Davis ao "método", quando da produção de The Night of the Iguana, em 1961.
Assim como não fez do Actors' Studio uma causa, este dramaturgo radicalmente individualista nunca foi militante de qualquer outra, muito menos das que a esquerda propôs nos anos 30, sem prejuízo de suas convicções democráticas e declarações de apreço pelo socialismo (anti-soviético, é claro, sobretudo devido à questão homossexual, como explicou pacientemente ao poeta Yevtuchenko). Da mesma forma, assumiu, pagando a conta no que lhe competia, posições perfeitamente claras, ao recusar autorização para montagem de suas peças em teatros segregacionistas ao sul do país, entre outros incidentes que envolveram integridade intelectual.
Simplificando bastante, pode-se dizer que os vínculos entre Williams e a tradição americana de esquerda acabaram passando para a história, sob as bênçãos do macarthismo, e no interesse de todos os envolvidos, como relações estritamente pessoais. Com isso, ficou na sombra a possibilidade de se examinarem seus textos, mesmo os maiores sucessos, como um elo importante para bem e para mal - entre as experiências teatrais dos anos trinta (patrimônio de que Williams se apropriou) e a Broadway depois de 1945, para não falar nada da Off-Broadway e outras experiências que pelas mesmas razões também não entram para a história.
Memória, Sensibilidade e Narrativa
Todos os que escrevem sobre Tennessee Williams acabam concordando que a matéria de seu teatro é constituída por lembranças sensíveis de um passado irremediavelmente perdido. Difícil é perceber quais são os instrumentos adequados para tratar com ela, ou por que o dramaturgo, por assim dizer, não cria heróis e vilões propriamente ditos; ou ainda, entender que não é o dramaturgo o nostálgico de tempos míticos, mas um tipo muito preciso de gente que ainda está por aí. Numa palavra: é difícil entender por que ele não escreve dramas.
Como a maioria acredita que ele queria escrever nessa forma, apenas falhava num ou noutro aspecto, alguns críticos acabam caindo na armadilha da projeção e chegam a afirmar que Tennessee Williams, em nome da nostalgia dos tempos melhores, recusa, através de figuras desagradáveis (como Stanley Kowalski), o presente e suas promessas, sem levar em conta que, mesmo no âmbito biográfico, quando muito a geração de seu pai desfrutou os tempos de opulência das tradicionais famílias sulistas, já que mesmo este sempre dependeu do trabalho para viver e sua mãe, que inspirou Amanda Wingfield, era filha de um pastor que sempre viveu em condições modestíssimas. Em outras palavras: não tendo nascido em "berço de ouro", não só o dramaturgo não tinha lembranças para mitificar como, ao contrário, dedicou sua arte a explicitar as dificuldades, inclusive mentais, de um tipo de mitômanas sulistas que conheceu muito bem. Por outro lado, suas convicções socialistas não lhe permitiam abraçar o novo mito do "american way of life" em construção.
Para trabalhar com o seu material, o dramaturgo precisaria recorrer, como fez acertadamente, a experiências como o "drama analítico" de Ibsen e aos pseudodiálogos dramáticos de Tchekov, por estarem em questão em suas peças o passado e o presente, não o futuro (não há futuro), como pressupõe o drama. Por conseqüência, não havendo perspectivas, nem uma ação a ser impulsionada pelo diálogo dramático, quando não é monólogo travestido, o diálogo se transforma em conversação, através da qual ficamos sabendo de eventuais ocorrências de tipo dramático na vida pregressa de algum personagem (caso mais evidente de Blanche em Streetcar).
De alguma forma percebendo que seu material era de ordem épica e não dramática, e estimulado pelas experiências de que participou na escola de Erwin Piscator, para continuar com o exemplo de Menagerie, nosso dramaturgo não teve dúvidas em recorrer às técnicas do teatro épico, tais como a projeção de legendas (como Piscator e Brecht) ou de fotos, criando também um narrador (como Thornton Wilder em Our Town, de 1937) que assume desde o inicio o foco narrativo da peça. Ainda hoje público e crítica ficam desnorteados com esse recurso não-dramático, passados 50 anos da estréia de Menagerie e outro tanto desde que Strindberg pela primeira vez o usou deliberadamente. Bem entendido: agora não se trata mais de recusá-lo como ilegítimo, que ninguém mais se arrisca a tanto; a dificuldade é perceber que a presença de um narrador retira do texto a objetividade que o drama sempre pretendeu ter e por isso obriga a análise a dar conta de sutilezas e especificações que o drama não tinha.
Perfis de Mulher sem Drama Nenhum
Summer and Smoke foi produzida entre nós em 1950, numa interessante demonstração de independência de colonizado, já que fracassara na Broadway. Apostando no dramaturgo que lançara entre nós em 1948, com The Glass Menagerie (À margem da Vida, na tradução de Esther Mesquista), e já que perdera para os Artistas Unidos, de Henriette Morineau, também em 1948, o bonde de A Streetcar Named Desire (Uma rua chamada pecado, na tradução de Bibi Ferreira e Carlos Lage), o TBC não teve dúvidas em lançar uma peça de Tennessee Williams que apresentava um papel perfeito para Cacilda Becker, mesmo desacompanhada da recomendação de crítica e bilheteria americanas. Traduzida por R. Magalhães Jr., Summer and Smoke chama-se no Brasil Anjo de Pedra, devido à estátua que ocupa o centro da cena.
Cacilda Becker foi assim a criadora de nossa primeira Alma Winemiller e Natália Thimberg a da segunda. Ambas foram calorosamente aplaudidas por Décio de Almeida Prado, que desde logo percebeu o especial talento de Tennessee Williams para criar papéis femininos capazes de consagrar atrizes, como aconteceu com as brasileiras. Se Alma Winemiller promoveu Natália Thimberg de boa a excepcional atriz, a de Cacilda ficou num plano "muito, mas muito superior a tudo o que fez anteriormente"4.
Nossa primeira Amanda Wingfield é criação de Marina Freire e Blanche Dubois, depois de Henriette Morineau, foi recriada por Maria Fernanda em 1962, numa produção do Teatro Oficina dirigida por Augusto Boal, agora em tradução para Um bonde chamado Desejo, de Brutus Pedreira (nos anos 70 Eva Wilma também fez o papel).
Curiosamente, e apesar da insistência do dramaturgo sobre o interesse de Laura em Menagerie, ninguém dá muita importância a esse papel. A começar por Laurette Taylor na Broadway e Anna Magnani na Itália, só as atrizes que fazem Amanda chamam a atenção dos críticos.
Embora todos se concentrem em Amanda, Blanche e Alma, por certo Laura também faz parte desse primeiro grupo de mulheres criadas por Tennessee Williams para mostrar alguns desastres da história americana. Laura foi derrotada por uma sociedade incapaz de lidar com gente frágil como os seus bichos de vidro, enquanto a leoa Amanda, a matriarca do politicamente correto ("Eu já disse para nunca, jamais usar essa palavra [aleijada]; você só tem um pequeno defeito, quase imperceptível"), tendo que carregar o fardo, luta pela sobrevivência com as armas que lhe restam, auxiliada pelos delírios que a aristocracia sulista (que só conhece de vista) e as imagens de Gone with the wind lhe sugerem, inclusive as do passado de Scarlett O'Hara, de que se apropriou. Diante da cada vez mais próxima partida de seu filho, única fonte de sustento dos três, só é capaz de pensar num casamento arranjado para a filha como solução de seus problemas básicos (isto é: como convém a um aristocrata, colocar-se com o seu fardo sob a guarda do primeiro incauto) - são os anos mais negros da Depressão. Com tanto material para um melodrama dos mais lacrimejantes (houve quem identificasse a peça como tal), a técnica - capaz de dar dimensão histórica às quatro figuras de Menagerie - e quem sabe o conhecimento de Mãe Coragem de Brecht podem ter salvo Tennessee Williams do desastre completo. O natural distanciamento que a presença de um narrador impõe obriga ao permanente exame crítico desses personagens: todos, inclusive o narrador, são o fruto mesquinho de uma sociedade e de um tempo que só produzem medíocres (não podemos nos esquecer de que o próprio narrador, um poeta de almoxarifado e desesperado consumidor de filmes de aventura, também não deu em nada: tornou-se um marinheiro cujo pior fardo é a culpa pelo abandono da mãe e da irmã). Qualquer tentativa de fazer tragédia, drama ou até mesmo comédia com essa gente resultaria em peça inócua, igual a milhares por aí. O dramaturgo, tendo feito uma opção programática pelo que depois chamou "little people", a ser reconhecido em sua dimensão própria, e não querendo fazer melodrama, teria mesmo que recorrer ao que chamava, em sua limitação terminológica, procedimentos não-convencionais no drama, pois não estava disposto a jogar no time dos edificantes.
Como ninguém se interessou pelo cenário inspirado em Porgy and Bess de Streetcar, que determina em termos históricos, estéticos e cênicos um enquadramento muito preciso dos personagens, Blanche foi transformada em mártir por uma crítica que antipatizava com o otimismo ingênuo e a vulgaridade americanos do pós-guerra, tudo devidamente encarnado na figura do trabalhador Stanley Kowalski. Mas é bom não esquecer que as platéias de 1947 percebiam com clareza o que havia de acintosamente torpe no comportamento e na linguagem aristocráticos de Blanche, e por isso volta e meia apoiavam as reações de Stanley. O dramaturgo estabelece desde a primeira cena que Blanche, como a Mãe Coragem de Brecht, não é personagem com a qual alguém possa se identificar: ela chega atirando, tanto na vizinha (a quem pede grosseiramente para sair) quanto na própria irmã, imediatamente transformada em subalterna, para não falar em seu desprezo ostensivo, de tipo cultivado, por Stanley. O desfecho de sua trajetória, sempre "dependendo da bondade de estranhos", menos que "justiça" moral do dramaturgo (como pensa Arthur Ganz, por exemplo), é antes a pergunta lançada a todos a respeito dos rumos daquela sociedade. Da mesma forma, Stanley, cujo comportamento chega ao repulsivo no sentido próprio, embora justificável de um angulo machista (Blanche se insinuou junto a ele desde o início, ela não estava pedindo para ser violentada?), tem normalmente atitudes saudáveis diante da vida: está interessado em sexo, comer, beber, jogar e trabalha para vencer na vida, com boas possibilidades, já que é caixeiro viajante (Arthur Miller vai tratar do assunto em seguida). Os momentos de confronto entre Stanley e Blanche, entretanto, não são suficientes para definir um antagonismo de tipo dramático: esses personagens precisariam ser menos complexos para essa possibilidade se verificar. E, como vimos, não faltou quem os simplificasse a ponto de cobrar coerência do dramaturgo.
Summer and Smoke é um caso ainda mais grave de inapetência dramática. Legítima descendente do drama de estações de Strindberg - até num literal sentido imprevisto, de passagem do tempo, que cobre o verão, o outono e o início do inverno -, esta peça se dilui propositalmente em um prólogo e doze cenas que elaboram o permanente desencontro entre duas pessoas que poderiam se amar, se a sociedade não desenvolvesse em ambos um insuportável superego (Roger Boxill foi um dos poucos analistas a perceber que tanto Alma quanto John só se expressam por clichês). Novamente, fértil material para melodrama ou "romance das moças" que Tennessee Williams preferiu não escrever. Pelo contrário, com toda a simpática perfídia de que poucos poetas neste século são capazes, mostrou o inferno em vida a que estão condenados os espertinhos adeptos da "alta cultura" e os gênios de província, autoproclamados aristocratas do espírito e por isso mesmo conformados com as regras de uma estrutura social falida, pagando o preço adicional de terem apenas uma leve desconfiança do que estão perdendo. O fracasso desta peça na Broadway pode ser ao menos em parte atribuído à dificuldade de se decidir, em cada cena, se é para rir ou para chorar. E Williams não facilita a vida de ninguém, assim como Tchekov, que depois dizia não entender por que o público não ria em suas comédias.
Epílogo Precoce
A obra de Tennessee Williams dependia de um público que já ao tempo de sua estréia na Broadway começava a seguir um caminho oposto ao tomado por ele. O próprio sucesso de Cat on a hot tin roof mostrava o tipo de concessões necessárias à continuidade de seu diálogo com aquele público. Ele fez todas elas (e mais algumas) nas adaptações de textos para o cinema, mas prosseguiu em suas experiências, cada vez menos aceitáveis.
Em sua própria avaliação, o aparecimento do chamado "teatro do absurdo" teria feito dele um dramaturgo ultrapassado, que, entretanto não desistia de continuar tentando, mesmo ao preço de voltar à condição de "teatro experimental", em produções Off-Broadway.
Superadas já nos anos 50 as condições que minimamente possibilitaram o seu aparecimento e sucesso (mesmo à custa de muito mal-entendido), e inviabilizadas aquelas que dariam sentido à retomada de sua obra, resta-nos apenas procurar entender um pouco melhor que seus contemporâneos, até porque contamos com o distanciamento histórico, o sentido mais profundo de sua crítica às alternativas abertas pela sociedade americana. Em sua opinião, uma das mais produtivas fábricas de neuróticos.
(*) No Brasil, essa peça recebeu o título de Uma Rua Chamada Pecado, quando desempenhada, mas manteve o título anterior na versão publicada.
Fonte:
Iná Camargo Costa
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