terça-feira, 21 de dezembro de 2010

DRAMA, MELODRAMA E DRAMALHÃO



Há conceitos que se cristalizam. Mesmo que errôneos. No teatro, por exemplo, a diferença entre “drama” e “melodrama” quase sempre aparece de forma equivocada. Vamos tentar esclarecer um pouco essa confusão.




DRAMA





A palavra “drama” vem do grego “drâma” e significa ação. É, modernamente, o próprio conceito da representação teatral, já que “teatro” é a ação levada a efeito por um ou mais atores.


Implica, portanto, que drama/teatro é ação!



Substitui, modernamente, a “tragédia” – que teve a sua criação, desenvolvimento, glória e decadência num momento específico da história: a Grécia dos séculos IV, III... antes de Cristo.


Mas o drama traz, ainda, outras conotações importantes: ao ser representada, a ação teatral estabelece com o espectador um vínculo, uma cumplicidade, uma emoção – a EMPATIA.

Quando o fluxo dessa emoção, dessa EMPATIA, vem do palco para o espectador, estamos diante do DRAMA em sua forma mais pura.

O espectador segue o PROTAGONISTA (e os demais atuantes/atores/personagens) na sua trajetória no ENREDO da peça, até a catarse ou desenlace final, sem sustos, ou seja, sabendo, até certo ponto, o que vai ou o que pode acontecer. O drama não o engana: o herói é herói, o mau é mau e assim por diante.


Exemplo de um (dentre milhares) de dramas modernos:


The Glass Menagerie, de Tennessee Williams (no Brasil, À margem da vida).

Seguimos a trajetória de Tom, que recorda o período que antecede sua decisão de deixar o emprego e se engajar na Marinha Mercante. O pai já havia abandonado a família, delegando ao jovem a responsabilidade de sustentar a mãe, que não se conforma com a vida mesquinha que levam e sonha ainda com os tempos em que fora cortejada por 17 pretendentes, e a irmã Laura, que tem um defeito na perna, é doentiamente tímida e se dedica integralmente à sua coleção de bichinhos de vidro, daí o título original, The Glass Menagerie. A mãe pressente que Tom vai deixá-las e pede que, ao menos ele arranje um marido para a irmã. O jantar oferecido pela família a um imaginado candidato a noivo redunda em fracasso: o rapaz já está de casamento marcado com outra. Restam, então as dívidas contraídas para compra do vestido de Laura, de um tapete e de um abajur novos. O pano de fundo do texto são as consequências de Depressão de 1929 sobre a classe média americana e o foco é a visão nostálgica de Tom, que abandonou a família para seguir sua vocação de poeta, mas lança retrospectivamente sobre ela um olhar compassivo e penetrante.



(Kristen Kohaut, no papel de Laura)



Todos os personagens estão delineados e vão mudando de qualidade à medida que se desenrola o enredo. Vamos conhecendo, a cada cena, os conflitos internos de Tom, suas dúvidas, seu amor pela irmã, seu sofrimento pelas decisões que precisam dar rumo à sua vida. E também os conflitos da mãe e da irmã deficiente.


Já o melodrama...



MELODRAMA





A estrutura teatral, a carpintaria é a mesma. Há apenas um porém: no melodrama, o fluxo da emoção se inverte, ou seja, não parte apenas do palco para a plateia, mas também da plateia para o palco.


Ou seja, o drama oferece ao espectador LACUNAS (vácuos sintagmáticos) que ele preenche com a sua imaginação, com a sua emoção, porque é levado a crer que algo vai acontecer ou é levado a pensar que tal personagem tem tais ou quais características, mas isso não é verdade ou nem sempre é verdade.

Podemos exemplificar com o cinema de Hitchcock: ele isola a personagem (provocando o medo ancestral da solidão); essa personagem entra num casarão antigo e aparentemente desabitado, para pedir ajuda mecânica a seu carro; um tipo especial de música acompanha seus passos no assoalho carcomido, que range; a câmera foca seus olhos um tanto assustados ou tentando acostumar-se com a escuridão... ele caminha... a música aumenta... os passos ressoam... então, de repente, uma mão – só a mão (focalizada pela câmera) – vem por trás e... segura seu ombro... e a música aumenta! Susto geral. Mas é só um velho e inofensivo habitante do velho casarão... Mas, às vezes, é mesmo o assassino com uma faca...



(Janet Leigh, em Psicose)



Na cena descrita acima (toscamente inventada, claro), nada ocorre de sobrenatural ou de assustador: apenas a situação criada é que leva o espectador a imaginar mil coisas. Ele, o espectador, preenche com sua imaginação as lacunas deixadas pelo autor (com maestria, se for um Hitchcock ou outro mestre), e cria o seu próprio enredo.


Portanto, o melodrama é enganador. É mistificador. No melodrama puro, nada é aquilo que parece.

Ao mesmo tempo, quando bem encenado/apresentado, constitui uma forma de teatro/dramaturgia tão eficaz quanto o drama.

Porque faz uso de recursos como a música (melós – canto, em grego), muitas pessoas associam-no a peça/filme etc. com aspectos “melosos” ou execessivamente “românticos”. Não é nada disso: um bom melodrama pode ter mil enredos diferentes de qualquer “historinha romântica”, como os filmes de Alfred Hitchcok.


E mais uma coisa: muitas vezes, em bons dramas, há momentos de puro melodrama, muito bem encaixados e de grande efeito teatral.

Nada contra a mistura de gêneros.





DRAMALHÃO




O dramalhão é um filhote desastrado de HAMLET, de Shakespeare.


Surgiu, provavelmente, no século XVIII, quando se popularizaram as peças do bardo. E HAMLET era muito complexa, para as platéias de então, com seus vários solilóquios que verticalizam o personagem. Então, optou-se por cortá-los e apresentar a peça em seus “melhores momentos”, ou seja, só a “história” de traição e vingança que subjaz no enredo hamletiano.

E virou um gênero. Ou seja, autores começaram a escrever peças que priveligiam a movimentação, o espetaculoso, ou só as grandes emoções (como as “grandes paixões”); as grandes ações, como o rapto, as lutas de capa-e-espada, as reviravoltas sensacionais, sem aprofundar ou verticalizar os personagens em sua psicologia ou em suas emoções mais profundas.

A “Paixão de Cristo”, apresentada sobretudo em circos ou em pequenos e grandes teatros por aí a fora, exemplifica bem o que é um dramalhão: tem por objetivo apenas comover, através de ações e reviravoltas espetaculares.



(Cena de efeito n'A Paixão de Cristo, de Nova Jerusalém)

domingo, 5 de dezembro de 2010

ARISTÓTELES ESCREVEU





Da tragédia e de suas diferentes partes




1. Falemos da tragédia e, em função do que deixamos dito, formulemos a definição de sua essência própria.

2. A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; deve ser composta num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas; na tragédia, a ação é apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores. Suscitando a compaixão e o terror, a tragédia tem por efeito obter a purgação dessas emoções.

3. Entendo por "um estilo tornado agradável" o que reúne ritmo, harmonia e canto.

4. Entendo por "separação das formas" o fato de estas partes serem, umas manifestadas só pelo metro, e outras pelo canto.

5. Como é pela ação que as personagens produzem a imitação, daí resulta necessariamente que uma parte da tragédia consiste no belo espetáculo oferecido aos olhos; além deste, há também o da música e, enfim, a própria elocução.
6. Por estes meios se obtém a imitação. Por elocução entendo a composição métrica, e por melopéia (1) (canto) a força expressiva musical, desde que bem ouvida por todos.

7. Como a imitação se aplica a uma ação e a ação supõe personagens que agem, é de todo modo necessário que estas personagens existam pelo caráter e pelo pensamento (pois é segundo estas diferenças de caráter e de pensamento que falamos da natureza dos seus atos); daí resulta, naturalmente, serem duas as causas que decidem dos atos: o pensamento e o caráter; e, de acordo com estas condições, o fim é alcançado ou malogra-se.

8. A imitação de uma ação é o mito (fábula); chamo fábula a combinação dos atos; chamo caráter (ou costumes) o que nos permite qualificar as personagens que agem; enfim, o pensamento é tudo o que nas palavras pronunciadas expõe o que quer que seja ou exprime uma sentença.

9. Daí resulta que a tragédia se compõe de seis partes, segundo as quais podemos classificá-la: a fábula, os caracteres, a elocução, o pensamento, o espetáculo apresentado e o canto (melopéia).

10. Duas partes são consagradas aos meios de imitar; uma, à maneira de imitar; três, aos objetos da imitação; e é tudo.

11. Muitos são os poetas trágicos que se obrigaram a seguir estas formas; com efeito, toda peça comporta encenação, caracteres, fábula, diálogo, música e pensamento.

12. A parte mais importante é a da organização dos fatos, pois a tragédia é imitação, não de homens, mas de ações, da vida, da felicidade e da infelicidade (pois a infelicidade resulta também da atividade), sendo o fim que se pretende alcançar o resultado de uma certa maneira de agir, e não de uma forma de ser. Os caracteres permitem qualificar o homem, mas é da ação que depende sua infelicidade ou felicidade.

13. A ação, pois, não de destina a imitar os caracteres, mas, pelos atos, os caracteres são representados. Daí resulta serem os atos e a fábula a finalidade da tragédia; ora, a finalidade é, em tudo, o que mais importa.

14. Sem ação não há tragédia, mas poderá haver tragédia sem os caracteres.

15. Com efeito, na maior parte dos autores atuais faltam os caracteres e de um modo geral são muitos ospoetas que estão neste caso. O mesmo sucede com os pintores, se, por exemplo, compararmos Zêuxis(2) com Polignoto; Polignoto é mestre na pintura dos caracteres; ao contrário, a pintura de Zêuxis não se interessa pelo lado moral.

16. Se um autor alinhar uma série de reflexões morais, mesmo com sumo cuidado na orientação do estilo e do pensamento, nem por isso realizará a obra que é própria da tragédia. Muito melhor seria a tragédia que, embora pobre naqueles aspectos, contivesse no entanto uma fábula e um conjunto de fatos bem ligados.

17. Além disso, na tragédia, o que mais influi nos ânimos são os elementos da fábula, que consistem nas peripécias e nos reconhecimentos.

18. Outra ilustração do que afirmamos é ainda o fato de todos os autores que empreendem esta espécie de composição, obterem facilmente melhores resultados no domínio do estilo e dos caracteres do que na ordenação das ações. Esta era a grande dificuldade para todos os poetas antigos.

19. O elemento básico da tragédia é sua própria alma: a fábula; e só depois vem a pintura dos caracteres.

20. Algo de semelhante se verifica na pintura: se o artista espalha as cores ao acaso, por mais sedutoras que sejam, elas não provocam prazer igual àquele que advém de uma imagem com os contornos bem definidos.

21. A tragédia consiste, pois, na imitação de uma ação e é sobretudo por meio da ação que ela imita as personagens em movimento.

22. Em terceiro lugar vem o pensamento, isto é, a arte de encontrar o modo de exprimir o conteúdo do assunto de maneira conveniente; na eloquência, é essa a missão da retórica, e a tarefa dos políticos.

23. Mas os antigos poetas apresentavam-nos personagens que se exprimiam como cidadãos de um Estado, ao passo que os de agora os fazem falar como retores.

24. O caráter é o que permite decidir após a reflexão: eis o motivo por que o caráter não aparece em absoluto nos discursos dos personagens, enquanto estes não revelam a decisão adotada ou rejeitada.

25. Com relação ao pensamento, consiste em provar que uma coisa existe ou não existe ou em fazer uma declaração de ordem geral.

26. Temos, em quarto lugar, a elocução. Como dissemos acima, a elocução consiste na escolha dos termos, os quais possuem o mesmo poder de expressão, tanto em prosa como em verso.

27. A quinta parte compreende o canto: é o principal condimento (do espetáculo).

28. Sem dúvida a encenação tem efeito sobre os ânimos, mas ela em si não pertence à arte da representação, e nada tem a ver com a poesia. A tragédia existe por si, independentemente da representação e dos atores. Com relação ao valor atribuído à encenação vista em separado, a arte do cenógrafo tem mais importância que a do poeta.


(Arte Poética – Aristóteles - CAPÍTULO VI)


Notas:

(1) Melopéia era a parte da arte musical que se referia à composição melódica, subordinando a música à poesia. Pouco chegou até nós, referente à melopéia. Era uma seqüência de sons musicias dispostos de forma a provocar uma emoção estética harmoniosa, tornando-se, por isso, agradável.

(2) Zêuxis de Ericléia viveu em Atenas no final do século V. A.C. Pintava figuras de crianças e mulheres mitológicas.