quarta-feira, 27 de novembro de 2019

MARIA REGINA CÂNDIDO ESCREVEU...




O Saber mágico de Medeia 

The Magical Knowledge of Medea 



Abstract 

The Medea is one the most remarkable and important imaginative works in all western literature. Medea is presented, initially as victim, but she is able to strike and pursue her revenge on a heroic homeric way. 

Resumo 

Medeia é um dos mais marcantes trabalhos de valor imaginativo da literatura ocidental. Medeia é apresentada, inicialmente, como vítima, mas, ela é capaz de lutar e perseguir a sua vingança como um herói homérico. 

(John William Waterhouse - Jason and Medea)

De acordo com Jean-Pierre Vernant mito se apresenta como um relato vindo de épocas passadas e nesse sentido, o relato mítico não resulta da invenção individual e nem da fantasia criadora, mas da transmissão e da memória de uma sociedade (VERNANT, 2000: 12). Logo, para compreendermos o significado do mito de Medeia, temos a necessidade de interagir com a sociedade que o produziu. 

A tragédia Medeia, apresentada no teatro de Dionisos em 431 a C., nos remete às práticas da magia, aos sentimentos femininos e à condição social da mulher grega no período clássico. Este tema integra o que se convencionou denominar de História de Gênero tornando possível demonstrar que a história das mulheres podia ter suas próprias heroínas que atuaram mesmo em condição de subordinação à figura masculina. Elas souberam manipular o poder ao qual estavam submetidas atuando por lances, empregando táticas e subvertendo a ordem. 

Para apreendermos o lugar social da mulher na sociedade grega do período clássico devemos inseri-la em seu contexto social de produção (HILL, 1995: 21). Isto porque existe uma heterogeneidade de informação quando se busca referências sobre as mulheres na antiguidade, os dados variam dos poemas à prosa, do período arcaico ao clássico e de região. Embora haja uma diversidade de informação é possível estabelecer alguma generalização diante das inúmeras atribuições a elas destinadas como a procriação entre outras. Atribuições e responsabilidades assumidas em relação ao passados, presente e ao futuro de uma comunidade. Consideramos a possibilidade da construção da história das mulheres na atualidade e para atingir este fim, devemos compreender a sua atuação junto as sociedades do passado como a comunidade políade dos atenienses, buscando subsídios que nos possibilitem repensar a condição social da mulher no nosso tempo-presente. 

Retornando a abordagem do mito: compreendemos a narrativa mítica da sacerdotisa de Hécate como um registro de memória que nos traz fragmentos do passado dos gregos. A memorização de um mito se faz em forma de poesia como na epopeia homérica que atuou primeiro como poesia oral, composta e cantada diante de um público que a reproduziu por gerações, através da participação ativa dos aedos - poetas cantadores, inspirados pela divindade denominada de Mnemosýne. Somente mais tarde é que a escrita alcança o mito resultando no estabelecimento de uma vertente oficial definida pelo texto escrito. Entretanto, devemos ressaltar que a narrativa mítica diferencia-se do texto poético pelo fato de comportar variantes, versões distintas, ou seja, permite ao narrador acrescentar e modificar a narrativa de acordo com o público ao qual se destinava (VERNANT, 2000: 13). 

O poeta, ao compor a sua dramaturgia, deixou vestígios de acontecimentos do passado dos quais foi testemunha. Para nós, o passado tornou-se um país estrangeiro no qual tudo é feito de modo diferente. Entretanto, o registro de memória do poeta, em forma de poesia, nos permite estabelecer uma aproximação com a cultura dos helenos. Reconhecemos que as informações sobre as mulheres foram compostas pelos homens, os quais tiveram uma atitude de não nomeá-las, tornando-as uma realidade silenciosa. O poeta Eurípides, no entanto, as coloca em primeiro plano, embora no desempenho de atividades que os homens definiram e determinaram que elas atuassem, ou seja, o espaço fechado do gineceu no exercício dos cuidados domésticos. Acreditamos que os vestígios de memória registrados pela tragédia Medéia nos possibilitam repensar a atuação da mulher subvertendo a ordem estabelecida. 

Eurípides expõe a protagonista trágica como uma mulher abandonada pelo marido que desejava contrair novas núpcias com a jovem princesa de Corinto como nos indica a citação: "pois, encontra-se órfã sem cidade, ultrajada pelo marido, sem mãe e nem irmão para abrigá-la do infortuno" (Eurípides, Medeia, v. 255). A situação nefasta de Medeia a coloca como esposa abandonada, mãe de duas crianças em situação de exílio e mulher estrangeira. O drama de Medeia, exposto logo no início da tragédia, visava despertar a comoção nos espectadores do teatro de Atenas, pois a infidelidade e a traição masculina não eram temas incomuns na sociedade grega, assim como não deixou de ser nos dias atuais. No caso da sacerdotisa de Hécate, o agravante estava no fato dela estar na condição de mulher estrangeira, longe de seus familiares, a ela estava sendo exigido que cedesse a sua posição de esposa para uma mulher mais jovem e de status social em melhores condições. 

A tragédia Medeia tem por princípio o agon, principal requisito da vida do ateniense que se manifesta nas assembleias e tribunais. Nesta dramaturgia, o agon envolvia questões relacionadas à escolha e a ação humana que provinha da ética e obrigava o espectador a fazer uma escolha: a justiça ou a vingança. O poeta nos apresenta a reação dramática de uma mulher, inconformada com o abandono do marido que não considerou todo um passado comum de aventuras. Medeia praticou vários crimes e transgressões em nome do amor que sentia por Jasão. 

No prólogo tomamos ciência da trajetória de Medeia que veio da remota região de Colquida para o exílio em Corinto. Naquela região, considerada bárbara, ela conheceu Jasão e, movida por uma avassaladora paixão, traiu seu pai ao ajudar o herói Jasão a conquistar o Velocino de Ouro através da arte da magia e encantamentos. O ardil, usado por Medeia foi descoberto, obrigando-a a fugir em companhia de seu amado. Seu pai, o rei Aeetes, empreende uma perseguição ao casal pelos mares, porém, ao fugir, Medeia havia trazido o seu irmão Absyrto, que foi morto em meio à viagem. Ela o executou e esquartejou o seu corpo, jogando os pedaços ao mar para atrasar a perseguição de seu pai. A fuga teve êxito, porque o rei interrompeu a perseguição para recolher os pedaços do corpo do filho, vendo diante de seus olhos o crime de Medeia que pôs fim a sua descendência. 

O poeta nos expõe uma mulher, cujo comportamento integra o espaço do desvio ao padrão estabelecido e esperado pelo homem grego. Ao evidenciar este crime, o poeta traz à memória dos atenienses o fato de que a protagonista havia estado envolvida em outros crimes de morte. No episódio ocorrido na região de Iolco, Medeia ardilosamente havia providenciado a morte o rei da pior maneira que um ser humano poderia morrer (Eurípides, Medeia, v. 485): através das mãos de suas próprias filhas. Estas foram persuadidas a acreditar que esquartejando o corpo de seu pai, o rei Pélias, em meio a ervas e encantamentos, conseguiriam a proeza de rejuvenescer o velho rei; o resultado foi a destruição de todo o palácio (Eurípides, Medeia, v. 485). 

Por este crime, o casal foi perseguido pelo filho do rei morto. O atendimento ao pedido de asilo em Corinto foi aceito na condição de Medeia fazer uso de seus conhecimentos mágicos para cessar a seca, a fome e a infertilidade que assolava a região. 

Nos interrogamos sobre o objetivo da mensagem do poeta ao nos expor uma mulher estrangeira, atuante, detentora de saberes mágicos e considerada mulher de feroz caráter, de hedionda natureza e espírito implacável (Eurípides, Medeia. v. 100). Medeia representa a mulher envolvida em circunstâncias hostis, saiu da casa de seus pais muito jovem para acompanhar o seu marido. Acreditamos que houve uma empatia entre o personagem Medeia e o público feminino, pois casar jovem era uma situação familiar com as quais as mulheres de Atenas, presentes no teatro, se identificavam. Ao assistir uma dramaturgia, o ouvinte se identificava emocionalmente com o drama vivenciado pela protagonista, a ponto de perder o julgamento racional em prol da satisfação e de interesses emotivos, gerando uma tensão entre a simpatia e o julgamento justo. 

No momento em que a protagonista discursa para o coro que representa as mulheres de Corinto, ela expõe uma tradição na qual todas se reconheceriam, pois desde muito jovem eram destinadas à subordinação à autoridade masculina. O responsável pela família providenciava o seu casamento para o qual era preciso um dote com o objetivo de comprar um marido e cabia à jovem aceitá-lo como senhor com total controle sobre a sua pessoa. 

O acordo de casamento acontecia entre os homens e as jovens não tinham a oportunidade de escolher o marido, o que levou Medéia a afirmar que de todos os que têm vida, a mulher, seria o ser mais infeliz pela obrigação de aceitar um homem a quem não podiam repudiar, visto que a mulher divorciada não era bem vista nesta sociedade (Eurípides, Medeia, v. 235). Quando chegavam na nova residência não sabiam o que as aguardava, por não terem sido bem instruídas pelos familiares, tinham por obrigação adivinhar qual a melhor maneira de convívio com o esposo. A jovem tendo a sorte de conseguir um bom esposo teria uma vida invejável, caso contrário, viveria sob o jugo da violência para a qual a morte tornar-se-ia o bem mais suave (Eurípides, Medeia, 235-240); em caso de gravidez, por exemplo, a protagonista afirmava preferir lutar com escudo três vezes a parir uma só vez (Eurípides, Medeia, v. 250). 

O lamento de Medeia tornou-se público através do uso da palavra, da retórica que era um instrumento fundamental para a construção do drama visando expor o cotidiano da mulher ateniense. Diante da sua falta de opção e liberdade, as mulheres, por serem retiradas muito jovens da casa paterna e serem confinadas no interior do oikos, atuariam como mulher e esposa devendo, por obrigação, cuidar dos escravos, do marido, dos filhos e exercer com eficácia as atividades domésticas (Eurípides, Medeia v. 245). 

O padrão definido como ideal para o comportamento feminino foi construído pelo homem grego que esperava que ela seguisse o modelo mélissa, a saber: ser submissa, silenciosa e passiva, atributos contrários ao comportamento masculino definido como dominante, ativo, agressivo e agente de decisão. 

No entanto, o comportamento de Medeia trazia à memória dos atenienses o mito de Pandora, de quem, afirmaria Hesíodo, descender toda a funesta geração de mulheres (Hesíodo, Teogonia, v. 585) e que Eurípides complementava ao afirmar serem as mulheres habilíssimas artesãs de todo os males (Eurípides, Medeia, v. 409). Essas palavras marcavam o inconformismo da protagonista com a sua atual situação, Ela expressava o seu desagrado ameaçando os seus inimigos, a saber: três de meus inimigos matarei: o pai, a jovem e meu marido (Eurípides, Medeia v. 375), e, ao mesmo tempo, alertava que ninguém a considere fraca, sem força, sossegada diante do infortúnio, mas de outro modo perigosa contra os seus inimigos (Eurípides, Medeia v. 410). A partir destas palavras, a protagonista de Eurípides, decidiu pela ação de vingança, atitude reconhecida nos heróis trágicos em sua busca desesperada por recuperar a honra ultrajada como o guerreiro Ajax de Sófocles. 

Ajax e Medeia apresentam atitudes semelhantes: não suportam a ideia de serem vítimas de injustiças e de traição. Ambos não toleram a etimasmene - falta de respeito (Eurípides, Medeia, v. 1355) de seus inimigos que riem de suas atuais condições de fracasso; no caso de Medeia, por estar só - mone (Eurípides, Medeia v. 513) e abandonada - eremos (Eurípides, Medeia v. 255). Medeia decidiu agir com violência por não querer causar riso deixando impunes os seus inimigos (Eurípides, Medeia v. 1050). A sacerdotisa de Hécate deixava transparecer que a mais grave atitude diante de uma vítima de desprezo e fracasso era o riso - gelos (Eurípides, Medeia v. 383), e somente a vingança cruel através da morte poderia reverter esta situação tornando-a vitoriosa diante dos inimigos (Eurípides, Medeia, v. 395). 

A semelhança entre Ajax e Medeia não é mera coincidência, pois o poeta coloca na personagem atitudes masculinas, mesmo sendo inapropriado para uma mulher agir com inteligência e coragem. O uso da palavra e sua atitude decisiva remetem às ações de heróis que atuavam de forma individual para solucionar uma situação imediata, como nos indicam os termos como ergasteon (Eurípides, Medeia v. 791) definido como algo que deve ser feito; a palavra tolmeteon (Eurípides, Medeia v. 1051) nos remete a algo ousado a ser realizado. O verbo kteno significa a decisão de, em tempo breve, matar, extinguir, exterminar. Com reações próprias de seres passionais, Medéia exibia o seu temperamento movido por forte emoção - thymos, sentimento que marcava toda a trajetória da narrativa, considerada fora da razão, da justiça coletiva, da justa medida; uma ação identificada em povos que viviam fora da cultura. Jasão reforçava este pensamento ao reafirmar que a grande dádiva que ele, cidadão grego, havia ofertado à Medeia foi tê-la tirado de terras bárbaras trazendo-a para residir na cultura helênica que conhecia a justiça, a ordem e as leis (Eurípides, Medeia, v. 535). 

Medeia muda de atitude visando atingir seu objetivo. Ela passa a agir de acordo com o modelo estabelecido pelos homens, ou seja, submissa, obediente, deixando transparecer que aceitava o destino determinado por Jasão e Creonte. Ela prometia acatar a ordem do rei que havia determinado a sua saída de Corinto (Eurípides, Medeia, v. 927). Para reafirmar o seu arrependimento e compromisso, Medeia envia, através de seus filhos, o presente de núpcias (envenenado) para a noiva de Jasão, e desta maneira ela mata a princesa e o rei. 

O discurso dissimulado tem por princípio a arte da persuasão, da força da palavra que convence e permitindo a realização de sua vingança. Como mulher, ela não tinha a capacidade do uso da força física precisando, portanto, buscar meios alternativos para fazer valer a sua vontade e vencer o inimigo. A única solução foi usar o conhecimento do qual provinha sua habilidade e o saber que dominava: a arte da magia no uso de filtros e venenos, cujo conhecimento fazia parte de sua tradição familiar por ser sobrinha de Circe, sacerdotisa de Hécate e neta de Hélios. 

Sua ascendência lhe forneceu força, coragem e magia, atributos essenciais para sacrificar e enterrar os filhos no santuário de Hera Akraia. De acordo com os mitógrafos anteriores ao final do V século, os filhos de Medeia teriam sido mortos pela população de Corinto para vingar a morte de seus soberanos. Entretanto, o poeta Eurípides estabeleceu uma nova vertente mítica mostrando que as crianças haveriam sido executadas como sacrifício aos deuses pela própria sacerdotisa de Hécate. Talvez uma forma cruel e eficaz de vingança contra o abandono do marido e uma maneira de expor o quanto ela era terrível com os seus inimigos, pois, matando os filhos ela extinguia a descendência de Jasão que reconhecia: sem filhos você me destruiu (Eurípides, Medeia, v. 1325). 

O poeta coloca Medeia fugindo em direção à Atenas, lugar em que a sacerdotisa utilizaria os seus saberes mágicos a serviço do rei Egeu, ao afirmar: cessarei o teu ser sem filhos e te farei semear filhos, tais drogas conheço (Eurípides, Medeia, v. 715). Esta informação nos remete à proposta de Eurípides de usar o palco trágico como o espaço das denúncias relativas às transformações, que aconteciam na sociedade ateniense no final do V século. 

Analisando a personagem Medeia, algumas questões nos chamam a atenção: a protagonista não representa a mulher grega devido a sua atitude considerada bárbara, como nos informa as palavras de Jasão ao afirmar que nenhuma mulher grega ousaria matar os próprios filhos (Eurípides, Medeia, v. 1340). Então que tipo de mulher ela representaria? 

Medeia usa a palavra para convencer, apela para a morte visando remover obstáculos, usa da astúcia, da faca e do veneno que, no conjunto, não formam poderes sobrenaturais. As práticas mágicas de Medeia nos indicam o domínio e o conhecimento de ervas, infusões e raízes que não denotam possuir poderes mágicos. Este domínio e saber poderiam ser encontrados em algumas mulheres que circulavam em Atenas, sendo comum entre as mulheres atenienses e estrangeiras que necessitavam do uso de plantas e ervas para fins terapêuticos. 

Medeia representava a mulher estrangeira que detinha esta habilidade e o conhecimento de sua função e eficácia. A documentação textual nos indica várias mulheres míticas que detinham o conhecimento e o domínio de ervas e filtros para encantamentos como Helena e Circe. Este saber, que se estendeu por tradição às mulheres, consistia na habilidade em manejar o cozimento das ervas, folhas e raízes para fazer infusões e filtros, que, devido ao seu poder de cura, passaram a ser considerados mágicos. Acreditamos que a ausência de conhecimento específico do funcionamento da natureza feminina fomentou a necessidade do domínio do uso das ervas pelas mulheres, com o objetivo de atender aos seus problemas de saúde. 

O conhecimento das ervas atendia tanto às mulheres casadas quanto às prostitutas e hetairas que necessitavam saber que o efeito de folhas da família das mentas era muito útil para os problemas menstruais; as dores de varizes eram amenizadas com fricção de folhas de hera; a cebola selvagem e o alho triturados com óleo e vinho, tornavam-se eficazes para conter sangramento e secreção vaginal; a erva artemísia atuava sobre o ovário e plantas como a belladona podiam ser usadas como calmante, mas que em porções concentradas tornavam-se abortivas; já as ervas da família do ópium eram eficazes como analgésicos para as mulheres em trabalho de parto. 

Temos por suposição que Eurípides expõe na habilidade de Medeia, que esta habilidade era um saber prejudicial à comunidade masculina. O seu desagravo seria a extensão do temor dos homens de Atenas pela participação ativa das mulheres junto ao uso das ervas e unguentos considerados mágicos. A preocupação do poeta com o uso das raízes pode estar direcionada às ervas específicas que visavam despertar o interesse sexual. Um episódio desta natureza pode ser observado na citação da Ilíada (XIV, 198) quando uma mulher solicita à deusa Afrodite que a encante com o desejo e o feitiço do amor para que ela possa usar deste ardil com o seu amado. Acreditamos que esta mulher tenha sido aconselhada a usar as folhas de orquídeas trituradas com vinho, um eficaz medicamento contra a impotência masculina - o termo orchis significa testículo em grego - e, no caso das porções/kukeon e filtros mágicos, ao serem ingeridos pelo ser amado, podiam ter como resultado a sua morte. 

As ervas consideradas mágicas usadas pelas mulheres em forma de banhos e unguentos, permaneciam em seu corpo em meio a fragrâncias aromáticas, mas havia a possibilidade de causar problemas na virilidade masculina, quando se tratava de unguentos contraceptivos que podiam fomentar a impotência masculina. Havia plantas, ervas e raízes que também eram conhecidas por suas virtudes apotropaicas e usadas como amuleto contra a má sorte e roubos. Umas faziam prosperar os negócios outras eram eficazes para arruinar a saúde e as atividades do inimigo. 

Concluímos que o poeta utiliza o espaço do teatro de Atenas, através da personagem Medeia, para fazer uma denúncia, alertando para a emergência de antigos saberes integrando novas práticas sociais como o uso do conhecimento mágico das ervas e filtros para atender desejos individuais. O uso das práticas mágicas das ervas e raízes tanto podia atender às necessidades de medicamentos para curar as doenças femininas, quanto ser usado como veneno para efetuar uma vingança. Medeia com a sua sophia expõe a ambiguidade de um saber que poderia ajudar um amigo com os seus benefícios, mas poderia ser fatal e destruir os inimigos. Como nos afirma Medeia, temido será sempre quem possui este saber, pois aquele que provocou este ódio não celebrará facilmente a bela vitória. 


Documentos 

EURÍPIDES. Medeía. Trad. Jaa Torrano, ed. bilíngüe. São Paulo: Hucitec, 1991. 
HESIODE. Teogonie. Paris: Belles Lettres, 1954. 
HOMERO. Iliade, Odissée. Paris: Les Belles Lettres, 1974. 


Bibliografia 

BERNAND, A. Sociers Grecs. Paris: Fayard, 1991. 
COULET, C. Communiquer en Grece Ancienne. Paris: Belles Lettres,1996. 
DETIENNE, M. Os Mestres da Verdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. 
FINLEY, M. I. O Mundo de Ulisses. Lisboa: Presença,1988. 
GRMEK, M. Diseases in the Ancient Greek World. London: John Hopkins, 1991. 
HAVELOCK, E. A Revolução da Escrita na Grécia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996. 
HILL, Bridget. "Para onde vai a História da Mulher?" In: Varia História, Belo Horizonte: FAFICH, 1995, n.º 14, p. 9-21. 
MARAZZI, M. La Sociedad Micenica. Madrid: Akal, 1982. 
VERNANT, J. P. O Universo os deuses os homens. São Paulo: Cia das Letras, 2000.


quarta-feira, 23 de outubro de 2019

GISÁLIO CERQUEIRA FILHO ESCREVEU...




A CIÊNCIA POLÍTICA E O TEATRO INTIMISTA DE A. STRINDBERG





August Strindberg (1849/1912), sueco, nascido em Estocolmo, é conhecido mundialmente como escritor, ensaista e dramaturgo. Foi isso e muito mais: jornalista, crítico social, profundamente interessado tanto na ciência (química, medicina, ciências políticas) quanto no ocultismo e na estética. Homem de letras, novelista, poeta, pintor, considerado um dos maiores renovadores do idioma sueco, idealizador do “teatro íntimo”, que funcionou de 1907 a 1910 e tornou famoso o número 20 da Rua Norra Bantoget, na própria capital do país nórdico. Ele escreveu a maior parte dos dramas intimistas aí encenados, quase sempre referidos ao casal, ao casamento como armadilha, explorando-se ao infinito as contradições e ambivalências entre o pensar, o sentir e o agir que tanto encantaram o escritor Arthur Schnitzler e o médico Sigmund Freud, para citar dois prescrutadores da psiquê humana, ambos estabelecidos naquela Viena fin-de-siècle que insistia em chocar o mundo com experiências de vanguarda na área cultural. Combatendo o antigo teatro, enunciou uma série de princípios cênicos e sugeriu em carta a August Falk (23/4/1908) que “O Pai” (1887) deveria ser representada como uma tragédia, em traços largos, com alguma solenidade”. Embora fundamentalmente conhecido como dramaturgo alternou esta atividade com a alquimia, a fotografia e a pintura. 

A tradução da peça “O Pai” para o português[2][2] foi feita a partir da versão em inglês de N. Erichsen e originalmente publicada em 1949 por Charles Scribner’s Sons (Nova York) e Gerald Duckworth & Co. Ltd. (Londres). Há uma tradução, do sueco para o francês, feita pelo próprio Strindberg e referida como “excelente” por Frederich Nietzsche em carta datada de 7/12/1888 e remetida para o autor desde Turim. Nesta mesma carta Nietzsche dá conta que fora “possuído pela peça magistral de rigorosa psicologia” e sugere que ela seja apresentada em Paris, no Théâtre Libre de Monsieur Antoine. Nietzsche percebera o extraordinário poder de introspecção e mesmo auto-análise presentes em “O Pai”. Em resposta, desde Copenhagen e em meados de dezembro de 1888, Strindberg diz estar bastante satisfeito, mas dá conta de que foi obrigado a ceder os direitos de duas tiragens ao editor para assegurar a impressão da peça. E arremata textualmente: “em compensação, durante o espetáculo, uma velha caiu dura e morta, uma mulher pariu e no episódio da camisa de força, três quartos do público se levantaram como um único homem para deixar o teatro, soltando uivos espantosos”. Embora feliz com o caráter chocante da encenação, mostra-se cético com a apresentação para os parisienses. 

No que concerne à tradução para o francês, ele faz uma confidência: a de que escreve eventualmente em francês, mas ao mesmo tempo diz que não aceita traduzir “Ecce Hommo”, de Nietzsche, por constrangimento em cobrar o justo preço, que a seu ver seria caro, e por não poder fazer qualquer abatimento no valor da tradução: “eu crio, às vêzes, em francês, em estilo de boulevard e mesmo pitoresco, mas também traduzo minhas próprias obras. É absolutamente impossível encontrar um tradutor francês que não se arvore em ‘corrigir’ o estilo segundo as regras retóricas da Escola Normal, privando assim a expressão da sua originalidade”. 

Em “O Pai” Strindberg comporta-se como um miniaturista das relações explosivas encapsuladas na insitituição do casamento (ele mesmo foi casado, e divorciou-se, em três ocasiões), e que o Ocidente de então ainda insistia em considerar como sacramento, acentuando-se o viés do Direito Canônico, contra o qual impunha-se com muita dificuldade o Codigo Napoleônico. O olhar atento para as relações de poder presentes tanto na família como no íntimo relacionamento amoroso do casal antecipa por algumas décadas a microfísica do poder Michel Foucault. O diálogo abaixo é exemplar: 


“Capitão - Laura, salve a mim e a minha razão. Você parece não entender o que eu digo. Se a criança não é minha, então não tenho nenhum controle sobre ela, e não quero ter; isso é precisamente o que você quer, não é? Você tem o poder sobre a criança e eu deverei ser preservado para manter vocês duas. 

Laura - O poder, sim. Todo esse combate de vida e morte foi causado por alguma coisa que não o poder?” 

Megalomania, narcisismo, arrogância, autoritarismo absolutista, masoquismo, fixação materna, obsessão, hostilidade, misoginia, mania de perseguição, o parricídio, tudo isto está presente nas relações familiares, e sempre entrelaçado a um aspecto crucial para a Ciência Política: as relações de poder. 

Por paradoxal que possa parecer, também a pintura de Strindberg nos ajuda a compreender o seu interesse nos dramas intimistas quase sempre referidos ao casal e à família, que tanta influência causou no cineasta, também sueco, Ingmar Bergman. No filme “Cenas de um casamento”, dirigido por Bergman, a “cena” doméstica já está viva em Strindberg. No filme “Fanny e Alexander”, Bergman o termina com uma cena onde duas personagens femininas falam de seu desejo de montar “O sonho” (1901), de Strindberg. E na novela “Depois do ensaio”, ainda de Bergman, feita para a televisão sueca, a ação se passa após um ensaio de “O sonho” na forma de um diálogo entre o diretor e uma de suas atrizes. “O sonho” não é apenas uma paixão deste grande ícone do cinema; é também uma metáfora de Strindberg para o inconsciente e para a própria Psicanálise, que se funda n’A Interpretação dos Sonhos, por Sigmund Freud. 

Muitos consideram que Strindberg tenha sido um cineasta antes do cinema. Isto porque nele a ideia de “corte” já está presente determinando o ritmo, a leitura e a vivência dos fatos cênicos. Mas de fato a ideia de “corte” atravessa toda a pintura do dramaturgo. Vejamos como. 

Sua primeira pintura intitula-se “Ruínas do castelo de Tulborn na Escócia” e data de 1872. O autor viajou muito, viveu entre França, Suíça, Alemanha e Dinamarca, experimentou o exílio e frequentou os círculos artísticos de Grez-sur-Loing, nas cercanias de Paris. Ali, em 1895, chegou a travar contacto com Paul Gauguin. Foi amigo dos líderes oposicionistas da arte oficial sueca como Carl Larsson e Karl Nordströn. Larsson chegou a pintar um desenho para calendário (1883) onde retrata um brinde na pensão para artistas suecos em que Strindberg aparece em primeiro plano, à direita. Em 1896 desfrutou de uma boa temporada na companhia de Edward Münch. 


(Sunset - August Strindberg)

Sua pintura, que possuía um vanguardismo inequívoco, custou a ser reconhecida; mas atualmente, é considerada como inovadora, criativa, precursora do que mais tarde seria denominado de expressionismo abstrato americano dos anos 50 e também do informalismo. 

Seu legado estético está centrado na paisagem onde estão ausentes tanto a figura humana quanto qualquer outra referência a um espaço previamente conhecido. Entretanto, sua técnica nos oferece cortes planos em espaços referidos à perspectiva e à profundidade que resultam em sensação angustiosa, tão cara a Münch e ao seu tempo, e mesmo claustrofóbica em pleno terreno ou zona paisagística totalmente livre e aberta. Por aí se capturam aspectos centrais de sua angústia interior, cravada na contradição e ambivalência de sentimentos. Sempre pintando “paisagens”, por certo irreconhecíveis na realidade, Strindberg costumava passear pelas manhãs e tardes no arquipélago de Kimemendö, na Suécia, retornando sempre à casa para pintar em estúdio. As cores que utiliza são quentes, telúricas; suas pinceladas são fortes. Como na melhor tradição inglesa a natureza vai ser reflexo de seu tormento interior e, nem mesmo o senso de humor, dito britânico, estará ausente. 

Esse tormento está, talvez, associado a um pesado legado afetivo e ideológico de natureza religiosa e cristã, particularmente de caráter tomista, mas re-interpretado na Suécia protestante. Um certo individualismo initimista, de acento calvinista, interage com o integrismo cristão romano espalhando-se por um espectro tão grande. Uma interessante hipótese é a de que o neo-tomismo chega à Suécia através do exílio dos jesuítas na Rússia que os acolheu desde que a Companhia foi extinta em fins do século XVIII. O fato é que há um conjunto de valores religiosos conservadores que pulsa na obra de Strindberg malgrado o combate que o autor move contra esses mesmos valores. As posições que assume na prática com relação à instituição do casamento em geral, as questões pessoais suscitadas pelo seu próprio casamento, o primeiro (1877-1891), com Siri[3][3], para não falar dos outros dois[4][4], as posições progressistas que assume no tocante à defesa do divórcio e das lutas pelos direitos das mulheres, a coletânea de contos intitulada “Casamentos” publicada em dois volumes (1883; 1885), que lhe valeu um processo por blasfêmia; todo esse impressionante conjunto de ações concretas se choca violentamente com uma aspiração de perfeição, completude e controle absoluto inscrita no pensamento de Santo Tomás de Aquino. O sentimento de culpa é nevrálgico neste sistema de pensamento, tão forte no Ocidente e tão presente na infância de August Strindberg. A esse respeito seu epitáfio resume de maneira dolorosa a sua vida e nos confronta diretamente com o tomismo: “Tudo foi expiado, o único monumento que eu peço é uma cruz negra e minha história”. Expiação e cruz negra, símbolos marcantes que se transformam em gala, morte e luto na vida e obra de Strindberg. Em “Há crimes e crimes” (1899), o autor antecipa a função e o papel do super-ego freudiano ao sugerir que há crimes não capitulados no código penal que, todavia, clamam a consciência e instauram o aguilhão da culpa, em certos casos sem remissão ou perdão conforme a norma protestante. 

A leitura de “O Pai” pode ser realizada a partir de, pelo menos, três entradas: 

1) o absolutismo afetivo. 2) a ignorância simbólica da lei. 3) a misoginia. 4) a expiação da culpa a partir da encenação do sofrimento. 

O desejo de controle sobre o Outro, a exigência de irrestrita obediência e submissão, informam e sustentam a personagem do Capitão de cavalaria em “O Pai”, a partir do desejo, de impossível comprovação cabal e definitiva à época, de que um homem é, com certeza absoluta, o pai de seu próprio filho. Ânsia por obediência e submissão, ansiedade incontrolável por controle, surgem aqui como emoções e sentimentos, algumas vêzes inconscientes, atuantes de forma decisiva no desejo de completude e na idealização narcísica. A fantasia de um controle absoluto funciona como uma pintura, um quadro que o sujeito pinta para enxergar a realidade da janela da sua subjetividade. E é realmente fantástico quando pensamos nos grandes acontecimentos históricos e permanências de longa duração que podem ser influenciados por esse tipo de emoção. A contradição e a ambivalência atingem um grau paroxístico em Strindberg quando, falando das condições para um casamento dar certo, diz com ironia e picardia; “o casamento só é possível se nos tornamos cegos e surdos, se deixamos de refletir um sobre o outro e, sob a influência do instinto, reencontramos a inconsciência” (Paris, 1895). E logo em seguida: “dar prova de bom gosto deixando-se enganar, não discutir os sentimentos do Outro, respeitar suas pequenas fraquezas e seus grandes vícios, eis as condições de um casamento” (Paris, 1895). Todavia, todo esse receituário vem acompanhado da exigência de obediência total e submissão completa, como as que são feitas pelo Capitão, nos termos da máxima perinde ac cadaver (obediente como um cadáver), lema de Inácio de Loyola e dos jesuítas da Companhia de Jesus, por ele fundada. 

O absolutismo afetivo nos termos propostos por “O Pai” acaba resultando na imagem totêmica de uma figura paterna omnipresente e avassaladora, cuja fantasmagoria se iguala, nos efeitos, à sua carência, quando tal figura paterna esteja eventualmente ausente ou degradada. Ambas as imagens, a da carência da figura paterna ou a da sua presença absolutista e autoritária acabam por produzir o interessante efeito da ignorância simbólica da lei com importantes e deletérios efeitos sobre a ordem jurídica, especialmente no Ocidente, e que vem sendo estudados por Pierre Legendre. Finalmente, e na trilha aberta por este autor francês, (jurista, cientista social e psicanalista) os sentimentos de demanda por obediência e submissão vem sempre acompanhados pelo sussurro do “eu te amo”, do quanto amoroso e amorável é o censor do qual se investe o poder, encarnado na figura do pai. Daí porque a vacilação em obedecer, o medo, o temor, a obediência em si, serem tonalidades de uma mesma melodia: o desejo de submissão. 

O sentimento da misoginia também comparece, quase sempre inconsciente, pois em Strindberg ele está admiravelmente unido com uma prática política de defesa dos direitos das mulheres... Por isso, as ambivalências aqui se dão no plano analítico das relações entre o agir e o sentir. De fato, a capacidade de enxergar o diverso na unidade, a ambivalência de sentimentos opostos inscritos na unidade da ação era muito peculiar ao escritor sueco. Funciona ele próprio como um vulcão de emoções, mas com a qualidade rara de abominar todo e qualquer dogma; o que não o impedia de cair, as vezes, na armadilha do dogmatismo. Maximo Gorki refere-se ao desnudamento audacioso que faz da mulher no volume “Rainha Cristina”. E sugere: “eu que sou russo, habituado a cantar a mulher russa e a respeitá-la, muitas vezes me irritei com a atitude de Strindberg com relação às mulheres” (Jornal Pravda, n.10, 1912, por ocasião da morte de Strindberg). Em “O Pai”, o Capitão ve-se cercado por mulheres que querem subtrair seu poder e educar sua filha (Bertha). São elas: a sogra, que quer fazer de Bertha uma espiritualista; Laura (a esposa) que quer faze-la artista; a governanta, que quer torná-la metodista; Margret, que quer torná-la batista; as criadas, que a querem salvacionista. Certamente não é fortuito esse furor pela conversão religiosa. Contra todas se insurge o Capitão aparentemente rebelde e insubmisso que quer fazer valer a sua total e plena autoridade paterna. Mas ele próprio não está imune ao neo-tomismo de natureza religiosa, oculto na sua rebeldia, a impregnar o seu absolutismo afetivo. Aliás, o conjunto de mulheres contra o qual se insurge, o capitão as designa como “bando”. Acrescenta Gorki: “acho que a severidade excessiva com a qual ele freqüentemente julgava a mulher, tinha sua origem numa idéia muito elevada do papel dela no mundo e do amor infinito da mulher enquanto mãe. Ou dizendo de outra forma, amor pelo ser que triunfa da morte, criando” (a maternidade). A misoginia de Strindberg se manifestava através da forma como o cristianismo a conecebe: a entronização da mulher no “altar” do lar, uma certa inveja sobre a convicção que cada mulher podia ter de quem fosse realmente seu filho, ao contrário do homem, que nunca tinha certeza absoluta; o que acaba se transformando numa ideia obsessiva no Capitão: ter a garantia completa de que Bertha era sua filha. Bem, o tema era recorrente na época e certamente um dos clássicos da literatura brasileira, “Dom Casmurro” (1900), escrito por Machado de Assis 1839-1908), se construiu exatamente em cima desta dúvida: as amarguras do nosso Bentinho (metáfora alusiva à religiosidade) e a supremacia de nossa Capitu, abreviatura de Capitolina (metófora que sugere o poder - capitel, capitol, capitólio –, inclusive político, da mulher). Ciúmes, invejas, amargura, tormento interior, obsessão, loucura apaixonada, são sentimentos que se entrelaçam na convergência de busca de um controle absoluto. Bentinho está para o Capitão como Laura está para Capitu. E antes mesmo da psicanálise de Freud (1856-1939), Machado, no seu conto “O espelho”, já esboçava uma “nova teoria da alma humana” capaz de lidar com as contradições e ambivalências entre o sentir, o pensar e o agir. Dizia Machado: o “um” da criatura humana é composto de dois; ou o ser humano possui duas almas, uma interior, outra exterior ; uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro. E como Strindberg intuía isso! 

Ele foi também pioneiro, depois de Kleist e Büchner, em trazer para o teatro as coisas que o faziam sofrer. Poderíamos chamar esse teatro de “sacrificial” para acentuar o valor da mortificação e do sacrifício no cristianismo? O fato é que no teatro também dito “onírico”, por onde é visível a infiltração do inconsciente, encontramos “continuadamente uma longa sequência de ‘flagrantes delitos’ (pecados), dos quais o próprio Strindberg foi vítima em sua vida pessoal. Encontro aí uma obsessão, uma obsessão real...”(Artur Adamov, Théâtre en Europe, n.5, Paris, Bebba, jan. 1985). Não há dúvidas de que estávamos diante de um novo tempo e um novo espaço. Rimbaud costumava dizer que o amor, o tempo e o espaço, estavam para ser reinventados. Strindberg se esforçava por agir nesta direção apesar dos constrangimentos ideológicos a que estava submetido. O tempo como personagem, tempo estéril, cujo força corrosiva atinge homens e idéias, já fora tomado como tema pela literatura nórdica, mais precisamente dinamarquesa, com Jens Peter Jacobsen (1847-1885), com as obras “Maria Grubbe” (1876) e Niels Lyhne (1880). Strindberg avança por aí, dando seqüência ao conjunto de autores malditos que se iniciara com o movimento pré-romântico alemão Sturm and Drang (Tempestade e Ímpeto, 1770-1785), com Lenz, Kleist e Buchner; todavia, desligando-se crescentemente de uma primeira fase vinculada ao romantismo e depois ao naturalismo. Desta época fazem parte “Senhorita Júlia” (1888) e “O Pai” (1887), esta última essencialmente auto-biográfica. A segunda fase é caracterizada por uma intensa crise mística, cujo título principal, e que ainda evoca o acento religioso, é “Inferno” (1897). Seu inferno é sua crise religiosa e vice-versa. Deste tormento sai em 1898 com “O Caminho de Damasco”, apaziguado e convertido como Paulo. A trilogia dramática “O Caminho para Damasco” é considerada marco inicial do teatro expressionista do século XX. A partir de então escreve alguns dramas tendo como pano de fundo a história sueca: “Erik XIV” (1899) e “Carlos XII” (1901). A última fase revela um Strindberg mais anti-dogmático e dando asas à fantasia; é conhecida como fase onírica, cuja adjetivação também nomeia o seu teatro íntimo. Várias peças de câmara são deste momento: por exemplo “A tempestade”, “Pelicano”, “Sonata dos Espectros” e “O Sonho” (1902). 

Porém, devemos atentar que esta distinção em fases é meramente analítica e didática; elas estão inter-relacionadas e uma freqüentemente se reconhece na outra. Em “O Pai”, por exemplo”, mesclam-se aspectos românticos, naturalistas, místico-religiosos e oníricos. Trata-se de uma peça soberba. Em relação a ela o autor assim se pronunciou: “não sei se ‘O Pai’ foi uma invenção minha ou se minha vida foi assim, mas sinto que, num dado momento, não muito distante, isso me será revelado, e o drama aí presente me tornará louco ou me levará ao suicídio”. 



Bibliografia: 



Cerqueira Filho, Gisálio, “Freud, a Cultura e a Política”, revista Pulsional de Psicanálise, Ano XV, n. 155, São Paulo, Editora Escuta, março de 2002 

Gravier, Maurice (org.) – “Thêatre cruel et théatre mystique”, Paris, Gallimard, 1964. 

Legendre, Pierre - “L’amour du Censeur: essai sur L’Ordre Dogmatique”, Paris, Éditions du Seuil, 1974. 

Michaelis, Rolf – “Plaintes dans um valée de larmes: Strindberg and le théatre allemand, in “Théatre em Europe”, n. 5, Paris, Bebba, janeiro, 1985. 

Strindberg, August - “Eight famous plays”, Björkman, Edwin & Erichsen, N. (tradutores), introdução de Alan Harris, primeira edição por Charles Scribner’s Sons (Nova York) e Gerald Duckworth & Co. Ltd. (Londres), 1949. 

Strindberg, August - Posições sobre o feminismo” in “Primer Acto: cuadernos de investigación teatral”, n. 199/200, Madri, Editorial Vox, maio/outubro, 1983. 

Strindberg, August - Programas de montagem para “Temporale”, por Giorgio Strehler e “O Pai”, por Celina Sodré (direção) e Fátima Saadi (assessoria teórica). 


Notas:

[1][1] Originalmente Prefácio para a tradução de “O Pai” para o português, Niterói, 2001. 


[1][2] Tradução e revisão técnica realizadas por Luiz Fabiano de Freitas e Gisálio Cerqueira Filho, Niterói, 2001 



[1][3] O primeiro casamento foi com a baronesa sueca Siri von Essen, mais tarde atriz do Treatro Dramático Real, que encena “Senhorita Júlia” no papel principal em 1899. Com ela tem três filhos: Karin, Greta e Hans. 

[1][4] O segundo casamento (1893) foi com a jornalista austríaca Frida Uhl, com quem vive até 1899 e tem uma filha: Kerstin. O terceiro casamento se dá com a atriz norueguesa Harriet Bosse. Nos útimos quatro anos de vida apaixona-se pela jovem atriz do “teatro íntimo” Fanny Falkner, com que não chega a casar-se. 



[1][4] O segundo casamento (1893) foi com a jornalista austríaca Frida Uhl, com quem vive até 1899 e tem uma filha: Kerstin. O terceiro casamento se dá com a atriz norueguesa Harriet Bosse. Nos útimos quatro anos de vida apaixona-se pela jovem atriz do “teatro íntimo” Fanny Falkner, com que não chega a casar-se. 




Gisálio Cerqueira Filho, Doutor em Ciência Política (USP) e Professor Titular de Sociologia, é docente e pesquisador senior na Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: gisalio@antares.com.br





quinta-feira, 13 de junho de 2019

WILTON FRED CARDOSO DE OLIVEIRA ESCREVEU...



O DEVIR EM ÉDIPO-REI 




(Bénigne Gagneraux, The Blind Oedipus Commending his Children to the Gods)



I N T R O D U Ç ÃO 

A imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de 

formar imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens 

que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma 

faculdade de sobre-humanidade." 

(p.XVI - O Direito de Sonhar) 

Ao tomarmos a visão de Bachelard sobre a imaginação e sobre a arte, nela vemos o lastro de que necessitamos para iniciarmos o nosso trabalho. 

Bachelard, ao dizer que a imaginação é um ato de sobre-humanidade, coloca a obra de Arte num plano inverso ao platônico. Ela passa a ser não mais a criação da criação, algo inferior por se tratar da recriação do Sensível, mas um acontecimento do Lógos. E se assim o é, é fruto da razão en-quanto primeira substância ou causa do mundo, é divina, consoante Heráclito. ( 2 p.601 Abbagnano) 

Partindo-se desse pressuposto, a obra Edipo-Rei de Sófocles, antes de ser mero retrato da realidade sensível, é um lógos que encerra em si a problemática grega do DE-VIR, mudança que vai do Nada ao Ser e deste ao Nada. Sófocles, nesta obra, em 430 a.C, já consegue conciliar o problema posto por Heráclito de Éfeso (549? -475?) de que todas as coisas estão em constante mudança e movimento, bem como de Parmênides (515/510 - 435?) de que todas as coisas são imóveis e ingênitas. Ele antecipa a solução que Platão (429/427 - 348/347) conseguirá levar a cabo com a teoria do Mundo das Idéias e do Mundo Sensível, quase meio século depois. 

Em seu drama EDIPO-REI, através das figuras de Laios e de Édipo, é trabalhada a questão grega da visão Circular de Mundo, bem como, a luta travada no pensamento antigo entre Sensível e Inteligível. O Mundo do Devir, passível apenas da DOXA e o mundo da EPISTEME já são delineados por Sófocles em sua literatura. 

O problema edipiano é o problema da Verdade, o que lhe perturba a existência e fá-lo fugir de suas origens. Essa Verdade lhe é dada através do Oráculo de Delphos (aquele que vê), e diante desses olhos que viam aquilo que seus olhos não podiam ver, diante dessa visão de sobre-humanidade, tanto Laios quanto Édipo se curvam, visto que se via a Corrupção das coisas só podia ver através da visão da Mente, Lógos Atemporal Inteligível, Incorruptível que, depositário da Verdade, revelou-lhes que eles eram entes perecíveis, não eternos, posição essa que pretendiam ocupar. Laios tentou fugir à determinação do Lógos; Édipo ao seu vaticínio, e assaltado por essa angústia, este fugiu para sua "determinação" sem o saber. Na tentativa de evitar o DEVIR, tanto Laios quanto Édipo fizeram o devir. 

Havia nesses personagens o medo do LOGOS, essa essência do destino difundida no universo e representada pelo Oráculo, o detentor do Destino, do Inteligível; e se assim o é, jamais poderia errar, conseqüentemente, tanto a vida de Laios, quanto a de Édipo passaram a ser determinadas por Ele. O que o Oráculo revelava passou a fazer parte dum ciclo que tinha que ser cumprido, para que se cumprisse a ordem do Universo. E é exatamente dessa ordem que os persona-gens tentam fugir, como se fosse possível fugir ao DEVIR. Mas se isso tentaram é porque desconheciam a sua própria essência, possuidora dum lógos que por si só seria capaz de ver-se. Entraram no Oráculo, com vistas depositadas no que está por detrás das coisas, sem se importar com a COISA que eram eles, daí ignorarem o dizer acima da entrada, no portal: 

"Conhece-te a ti mesmo". A Verdade é buscada não, segundo Severino, no "Lógos, termo grego, que desde o início do pensamento filosófico, designa esse deixar falar as coisas sem lhes impor um sentido estranho, antes deixando que elas, manifestando-se, se imponham" 

(p.32, 33-Filosofia Antiga - Severino). 

Laios e Édipo não permitiram que esse Lógos se manifestasse; não buscaram conhecerem-se; não tinham em mente que a "vida, consoante Friederich Nietzche, (Fogo Grego p.2) se não examinada não merece ser vivida." É exatamente isso que eles não fizeram: desconheciam quem eram, não se preocuparam, no entanto, em saber donde vinham , uma vez que o passado não pode ser destruído e deve ser conhecido. 

Nada determinava o Oráculo, apenas, consoante o próprio Heráclito: " ... o Senhor de Delfos não esclarece nem esconde, oferece signos" (p. 2 Fogo Grego), ofereceu-os aos personagens de Sófocles. Para esses, os signos oferecidos implicaram o abandono do Lógos Individual para dar lugar ao Lógos Universal; já nas mãos de Sófocles, esses signos se transformaram na representação da realidade, a qual se faz enquanto signo, não sujeita ao DEVIR. Sófocles parou seus personagens no tempo e no espaço; fez um corte na duração (bergsoniana)da realidade, para, num palco, propor, através de signos, o que é possível se ter do mundo da DOXA e da EPISTÉME, através de Laios e de Édipo. O passado, na figura daquele, e o presente, na figura deste, chocaram-se querendo perpetuarem-se. Nenhum dos dois tinham consigo a consciência de que eram peremptórios, de que o homem é essencialmente devir. É esse o problema que nos cabe desenvolver e comprovar no decorrer desse trabalho. Para tanto, ater-nos-emos ao período filosófico que vai de Heráclito a Platão, para levar a cabo este nosso intento: O DEVIR EM ÉDIPO-REI. 



O CENÁRIO: 

(Um palácio, ao qual uma escadaria dá acesso, apresenta-se-nos em cena. Junto a esta, uma estátua de APOLO, e, próximo dela, um grupo de jovens, sentados ou de joelhos, empunhando ramos de oliveira. O SACERDOTE de ZEUS está no centro, entre os jovens. ÉDIPO abandona agora o palácio e vai descendo vagarosamente a escadaria, em direção ao grupo.) 

(p.115 Édipo Antigo) 

Entremos na obra, mas adentremos lentamente, de forma vagarosa, atendo-nos a cada signo. Façamos o que impõe Umberto Eco para que o leitor adentre sua obra "O Nome da Rosa": "...se alguém quisesse entrar na abadia e viver nela sete dias, tinha que aceitar o seu ritmo" (p.36 - Pós-Escrito a O Nome da Rosa). É isso que temos que fazer ao lermos ÉDIPO-REI. Temos que vagarosamente esmiuçar as ruínas e buscar resgatar o Fogo Grego; isto é, aos poucos, lentamente, ir resgatando a centelha grega que há em nós e passarmos a pensar como um grego, através da intertextualidade grega. Somente assim poderemos compreender a obra em questão e seu Devir. 

Para tanto, entremos em seu cenário. O Sacerdote, que de acordo com o Dicionário das Religiões (p.237) simboliza o "Pontifex Maximus", aquele que cuida do calendário, isto é, que controla o tempo, situa-se em meio a jovens que estão próximos da estátua de APOLO, o deus do Oráculo de Delfos, também chamado de deus da Luz, harmonizador dos contrários, o deus que vê. Notemos pois, que toda a problemática de Édipo surge exatamente pela questão do ver. O olhar para Sófocles é o causador da tragédia em que se transformou a vida de Édipo. Este precisa aprender a ver e a ser visto, precisa de "lux"; precisa contemplar a realidade, sair de sua "Caverna". Édipo colocava-se na posição de Zeus; caíra numa eterna atemporalidade, passara a ser o eterno "presente", a essência tebana, assim como Zeus, razão de todas as coisas. 

Na obra Os Deuses Gregos, p. 126 (A Vida Cotidiana - Círculo do livro de Giulia Sissa e Marcel Detienne), os autores dão-nos Zeus, como uma consciência que não dormita, que não está sujeita ao tempo: " 

(...) Para Zeus, a manhã terá sido difícil, mas os outros deuses, naquele dia, só se ocuparam com um longo banquete. De noite, desejosos de dormir, retiram-se para suas casas. Só Zeus sofrerá de insônia." 

(O Olhar de Era cap.) 

Édipo também sofrerá da mesma insônia, haja vista que se transforma nesse "Inteligível", usurpa um local que não lhe pertence. Por isso o Sacerdote, de Zeus, não invoca o seu deus, mas a Édipo; porque, antes de ser Tebas, quem está sendo ultrajada, é o deus, é a Atemporalidade, pois este simboliza aquilo que se manifesta, bem como "o Senhor da Razão" consoante Junito (p.493 -dic.). Já, segundo Homero (verso II, XV, 192 - Junito p.494), é o deus que "...obteve por sorte o vasto céu com sua claridade e suas nuvens", simbolizando aquilo que está acima de; aquele que gera, princípio de todas as coisas, ou consoante Ésquilo (p.192 - Junito), o qual vai além de Homero na proclamação da soberania de Zeus: 

"Zeus é o éter, Zeus é a terra, Zeus é o céu. 

Sim, Zeus é tudo quanto está acima de tudo." 

(Junito. p.498 -Dic.) 

Mesmo sendo assim classificado não se transforma no centro das invocações do sacerdote. Este pontífice, que se situa no meio, ou seja, no AXI-MUNDIS, detentor do tempo, vai de encontro àquele que se coloca na posição da Verdade, ou de princípio gerador, visto que o ciclo grego precisa ser retomado, o presente e o passado precisam ser reconciliados. É preciso que se retome o eterno Devir das coisas, e se o ciclo foi interrompido é porque Édipo, ao matar o passado, parou o tempo, caiu na eterna Atemporalidade, colocou-se na posição de Zeus. Observemos que Zeus, ao ser posto como aquele que abarca a multiplicidade, passa a ter o mesmo valor para Ésquilo e para Homero, que a água tem para Tales, o Noûs para Anaxágoras ou o °peiron para Anaximandro. É nesse meio que está Édipo, em meio à origem de todas as coisas, num mundo supra-humano, no mundo da Epistéme, quando é evocado pelo Sa-cerdote. Édipo é o Lógos tebano, por isso, foi buscado. 

Diz o texto: "Édipo abandona agora o palácio e vai descendo vagarosamente as escadarias..." (p.115 Édipo Antigo), as quais simbolizam (dic. Simb. pág. 378) a ligação entre os Céus e a Terra. Como um deus foi evocado, e de seu palácio sai para o mundo da corrupção, consoante suas próprias palavras: Sucede que em toda a cidade exalam aromas odoríferos e se ouvem preces e lamentações." (p.115 - idem); e a seguir temos: ".. não quis saber o que se passava pela palavra de mensageiros e eis-me aqui, para pessoalmente indagar do que está ocorrendo." Édipo não quis saber do que ocorria em Tebas através da audição e da voz, isto é, da linguagem. Desce ao mundo sensível e vem ver o que é a realidade. Assim como o personagem do Mito da Caverna (República, livro VII pp.317...), o personagem de Sófocles tem que se acostumar com a luz, tem de deixar o Mundo das Sombras e ofuscar-se com a verdade. E é nesse espaço que são marcados nitidamente os dois mundos platônicos: o Sensível e o Inteligível. 

Ora, no livro VI de A República, (pp.308, 309, 310, 311-507b), lemos o seguinte: 

"-Que há coisas belas, e muitas coisas boas e outras da mesma espécie, que dizemos que existem e que distinguimos pela linguagem". (308) 

Édipo sabia que o relato do mensageiro não era falso, posto que a linguagem, consoante o fragmento acima, comprova a existência da coisa; mas o drama edipiano vai mais além. Já citei anteriormente que o problema é de luz. O ver dele tem que ser um ver radical, não um ver das aparências, mas o ver das essências. Ao ver, Édipo buscava a essência, visto que para Platão ( Rep. p.308) (...) postulamos que a cada uma (coisa) corresponde uma ideia, que é única e chamamo-lhe a sua essência. E se Édipo simplesmente escutasse o mensageiro, certamente estaria diante do inteligível, posto que estaria diante das Idéias, e estas não são visíveis. Édipo precisaria voltar à sua posição de ser em "Devir", precisava ser afetado por um terceiro elemento, haja vista que, consoante o livro VI (p.308 507d): 

"A audição e a voz precisam de qualquer coisa de outra espécie para, respectivamente, ouvir e fazer-se ouvir, de tal modo que, se esse terceiro fator não estiver presente, a primeira não ouvirá e a segunda não será ouvida? 

-Não precisam de nada. 

Ainda continuando o diálogo de Sócrates com Gláucon: 

"Mas quanto à de ver e de ser visto, não pensas que necessite disso? 

-Como assim? 

-Ainda que exista nos olhos a visão, e quem a possui tente servir-se dela, e ainda que a cor esteja presente nas coisas, se não se lhes adicionar uma terceira espécie, criada expressamente para o efeito, sabes que a vista nada verá, e as cores serão invisíveis?(...) 

-É aquilo a que chamas luz." 

Eis aí o porquê Édipo precisava ver. Pela primeira vez, não ouviu nenhum desígnio de oráculos, seus olhos foram ver, ficando estes na dependência de um terceiro elemento: a luz. A verdade não estava de forma alguma nele, no entanto, até então, ele tinha agido como sendo a Verdade tebana. Édipo, como citado anteriormente, precisava ver e ser visto, precisava de luz, precisava ser iluminado, para poder criar o seu discurso. E parafraseando aqui a professora Inês Lacerda Araújo (p.14 F>C), "Quiçá Édipo tenha o conhecimento que possa traduzir a realidade em palavras, ou seja, configu-rá-la." E é essa configuração que o Sacerdote vem requerer de nosso personagem; vem buscar o discurso, que o sensível não consegue formular, posto que dele não se pode ter um conhecimento verdadeiro. Sabe apenas que deteriora e sobre isso não possui controle; sabedor disso, dirige-se a alguém que está acima de si, que não esteja sujeito às mesmas leis do devir, mas que cause o Devir. O Sacerdote vê no corte da realidade, enquanto sempiterna, os males tebanos. A realidade enquanto aparência está sujeita a transformações, ao Devir, não pode ser parada. O Mundo Sensível é o Mundo da Corrupção, e, se Édipo ao chegar em Tebas, teve que tomar consciência disso, esqueceu-se, quando se apoderou do poder e lá permaneceu como consciente coletivo daquela cidade, de que todas as coisas são peremptórias, de que tudo está em constante mudança. O tempo parou, foi dominado pela atemporalidade; mas o mundo não é só Inteligível, é também Corrupção, por isso o cheiro exala por toda a cidade. 


A FORÇA DO PASSADO: 

Édipo, rei de Tebas, ou " O homem cuja natureza procede do Céu é dotado desta virtude que ele tira de si mesmo.", (-p.774- Dic. de Símbolos), síntese do Céu, do Homem e da Terra, estabelecido no centro do cosmos, é evocado por um Sacerdote ao qual ordena e permite: "Vamos ancião, fala, pois que a ti incumbe tomar a palavra, em representação destes jovens." (p.115 - Édipo Antigo). 

Ao novo não é permitido falar, posto que não sofreu o processo do Devir, não possui uma ponte imediata com o eterno, com a IDEIA, ou com a essência. O novo não possui a memória, que "...faz cruzar a história e a intimidade, o mais público e o mais pessoal, em crônicas muito originais e prenhes de contingência, crônicas do indivíduo na família, na escola, no trabalho, no bairro ou na cidade, em grupo onde os homens se nutriram simbolicamente e onde empenharam, não sem contradições, aquilo que eles nutriram..." Por isso o Sacerdote, a figura do ancião. Tebas estava dominada pelo novo, era necessária uma ponte com o passado. Era necessária a memória que revive o passado, esse passado que precisa ser revisto, mas que só pode ser revisto através da "... memória que desempenham os velhos, tarefa para a qual estão maduros: tranquilizar as águas revoltas do presente pelo alargamento de suas margens." (p.96 - O Olhar - anterior p. 97) E as águas revoltas do presente tebano somente poderiam ser pacificadas se fossem alargadas as suas margens pelo passado. A memória aqui se transforma em olhar e trabalho, o que importa é "olhar em direção ao passado , olhar desgarrado com que às vezes, os velhos olham sem ver, buscando amparo em coisas distantes e ausentes." (p.97 - O Olhar), e isso o jovem era incapaz de fazer, visto que, dada a sua presentividade, ainda não possuía história, para vasculhar o passado e alargar o presente. O único que podia resgatar a história de Édipo era o velho, por isso aquele o respeita e o escuta. 

Se analisarmos essa visão pela ótica cíclica grega, podemos afirmar que o novo ainda não está próximo do elemento de atração e criação. Além disso, (Rep. Livro I p. 5 29d) no diálogo entre Céfalo e Sócrates, este diz: " Quando as paixões cessam de nos repuxar e nos largam, acontece exatamente o que Sófocles disse: somos libertos de uma hoste de déspotas furiosos. " 

Mais adiante: 

" E essa pessoa - ou devido à debilidade da velhice, ou porque avista mais claramente as coisas do além, como quem está mais perto delas (...) " p.8) 

A permissão dada ao velho para falar, e não aos jovens, repousa na visão de que o velho já consegue visualizar o Mundo Inteligível; já seus sentidos deixaram de ser afetados pela paixão e pelo mundo do Devir. O ancião está mais perto do Mundo das Idéias. Para o ancião era mais fácil perscrutar a alma de Édipo, posto que este representava o centro, donde a ordem ou a desordem do caos emana, na condição de rei. Eis por que a ele vai o ancião e o povo tebano; e eis por que ele imperioso diz: "Estou decidido a socorrer-vos..." como que fosse ele a medida de tudo, e tudo estivesse ao seu alcance. (p.115 ER) 



O COMPROMISSO DE ÉDIPO COM A VERDADE 

"Eu, que agora o poder detenho que dele foi: que durmo na sua cama, e fecundo a mulher que foi sua e lhe devia dar filhos, se a sua má fortuna não tivesse caído sobre a cabeça dela; por todas essas razões, eu, como se de meu pró-prio pai se tratasse, por ele lutarei e tão longe quanto me for possível chegarei, tentando deitar mão ao responsável pela morte do filho de Lábdaco, da linhagem de Polídero e mais longinquamente de Cadmo e, antes ainda, de Agenor." 

(p.121) 

Édipo tem consciência de que ele tem o poder doutro. É o que é ter poder? É ter potência para... Édipo é um ser em potência mas não realizada. Ele assumiu uma posição que não lhe pertencia, ocupa a potência de, sem no entanto ter consciência do espaço de poder que ele ocupa. Não tendo essa consciência, não pode exercer a sua potência de ser em Devir, ser que se faz. Assim sendo, envia novamente um emissário, conforme o próprio texto, para buscar o remédio para Tebas: "O único remédio que se me afigura poder ser usado, depois de ter meditado muito, já o pus em prática; ao filho de Meneceu, a Creonte, meu próprio cunhado, mandei-o ao oráculo de Febo, para por ele ser informado acerca da forma com que, por obras ou palavras, se pode a nossa cidade salvar." (p.116 - ER) 

Pelo discurso anterior de Édipo podemos notar que o mesmo ainda está no círculo vicioso de buscar saber as coisas metafisicamente. A solução para os problemas tebanos tem se repetido sempre pela manifestação de potências extra-humanas. Édipo não tem consciência de que o homem deve atuar como um demiurgo de sua própria vida " à semelhança do demiurgo que, no Timeu, constrói o cosmos; olhos postos no modelo das idéias, entre as quais, soberana, brilha a medida - a justa medida do Bem." (p. 117 O DESEJO - A água e o Mel - José Américo Mota Pessanha). Novamente ele envia um emissário, ao Oráculo, "ao filho de Meneceu, a Creonte,..." , sem perceber, no entanto, que evocara a tradição do mensageiro. A-quele que ouviria, ou seja, teria a significação do mundo através da audição e a revelaria aos tebanos através das palavras, sem o auxílio do terceiro elemento, era uma pessoa confiável. Era alguém que existia, e sua existência se dava enquanto tradição, enquanto continuidade; no entanto, Édipo não via o que falava. Evocara a tradição, mas não parecia sa-ber que " Quem é desenraizado desenraíza. Quem é enraizado não desenraíza." (Olhar e Memória - José Moura Gonçalves Filho. - p. 95 - O Olhar). Édipo não tinha essa consciência, posto que não possuía raízes; sua história era falsa, não era extensão do fio de Ariadne, não era a continuação de nada. O que se sabe dele é que "um deus te pôs no nosso caminho para endireitares a nossa vida.", isso pela boca do sacerdote. (p. 116 ER). Mas se Tebas não sabe quem é o seu rei, tampouco o rei sabe de si. É preciso que a realidade se manifeste, que a se ponha tal qual é. E Édipo compromete-se de tal forma com a manifestação dela que diz: "Quando voltar com a resposta, acaso eu não faça tudo quanto o deus ditar, podereis, então sim, atribuir-me todas as culpas." (p.117) Nem mesmo a si ele pou-pará quando vier do Inteligível a resposta, o discurso que não consegue formular, mesmo tendo olhos para ver. 

Chega Creonte. Mas "O deus de quem é o oráculo de Delfos não diz nem oculta nada: significa.", (Fr. 93 Heráclito - Hermann Diels - Ópera dos Mortos - Autram Dourado p. VII) haja vista que o Inteligível não diz - é. Ele tem que ser con-templado, precisa ser objeto de "contemplatio", para que se atinja a verdade; logo, não disse a Édipo o que ocorreu e o que estava a ocorrer, disse apenas que era preciso vingar a morte de Laios. Era preciso resgatar o passado. Este não podia ser esquecido. 

Mas o crime ocorreu quando ainda o reinado era do passado. E Édipo pergunta: "Como encontrar, hoje, o perdido rastro de tão antiga culpa?(p.118) Isto é, como extrair a Verdade no Devir. E mais a seguir Creonte fala: " Morreram todos, excepto um, que fugiu, apavorado, e apenas pôde afirmar uma coisa do que se passara." (p.118) Tudo está imerso no passado, tudo sofreu o processo de Corrupção, nada mais pode ser resgatado. 

Porém, os fatos não ocorrem de forma estanque, temporalizados; um fato não se esgota no tempo e lá fica inerte. O passado sempre lança o seu fio para o presente. Ariadne se manifesta em todas as coisas. Tudo está repleto de Ser, mesmo o mais afastado dos seres é possuidor de menos-ser mas jamais totalmente extinto de SER; e esse menos-ser, esse fio de Ariadne, que se estende para o presente, revela-se na fala de Creonte: "Excepto um, que fugiu, apavorado ..." (p.118ER) E Édipo diz: "Ir em socorro de Laio, é ir simultaneamente em minha própria defesa." Ao defendermos o passado, automaticamente justificamos o presente. Este, por si só não se justifica. Eis por que Édipo tem um compromisso com a Verdade. Não porque se sinta acusado duma morte, mas porquanto a sua existência, a sua potência para..., somente far-se-ia a partir do momento em que ele revelasse, isto é, tirasse o véu, o qual encobria a sua história e se visse, passando a ser o demiurgo de sua própria história; mas, para tanto, era preciso conhecer o passado, porque "um homem não sabe o que ele é se não for capaz de sair das determinações atuais." (p.97 Olhar e memória - José Moura Gonçalves Filho- O Olhar) A problemática aqui posta por Sófocles nada é senão o " Conhece-te a ti mesmo." o que na Grécia antiga significava Sabe que és mortal, sabe que não és um deus" (p. 02 Fogo Grego, Oliver Taplin). Essa é a consciência que Édipo não possui. A consciência de sua história e de sua humanidade. Está desenraizado, sem história. Sua história é falsa, não há nele rastros de Mnemósina, que torne o seu olhar, um " olhar desgarrado com que, às vezes, os velhos olham sem ver, buscando amparo em coisas distantes e ausentes. (Idem J.Mourqa p. 97) Não possui um " Olhar fugidio mas que é paradoxalmente estilo dum ofício inserido no presente: o velho recolhe imagens de outrora, mas reclamadas nas nervuras de uma vida em ato: "relembrar exige um espírito desperto, a capacidade de não confundir a vida atual com a que passou, de reconhecer as lembranças e opô-las às imagens de agora" . Não tendo essa história, não pôde curvar e olhar com olhar fugidio, tampouco mergulhar em seu passado e descobrir os males que lhe assolavam no presente. 


O OLHAR DE TIRÉSIAS: O MUNDO INTELIGÍVEL. 

Impossibilitado de saber a Verdade, Édipo é comunicado sobre um ancião, que vê. Diz o Corifeu (p.122-ER):" Conheço uma pessoa que vê tudo com mais clareza que o senhor Febo. Tal é Tirésias." 

O que nos intriga aqui é como pode um homem ver melhor que um deus!... A conclusão a que podemos chegar, mais plausível, é que " o mais ser" não pode afetar o " menos-ser". Resulta da conclusão anterior que a Verdade não pode ser percebida de cima para baixo, mas ao contrário, somente através da ascese: de baixo para cima. Tirésias vê , porquanto contempla o mundo a partir da visão da mente, numa atitude de demiurgo que contempla as Ideias, de forma atemporal. Na condição de ser dialético platônico, contempla a Verdade; já o deus não olha para si mesmo, mas para o mundo da corrupção, por isso reflete apenas as imagens da realidade sensível, como num espelho. A atitude é totalmente oposta. Tirésias, ao viver cego para o mundo sensível, mergulha na atemporalidade, na contemplação da Verdade. Seus olhos já não mais viam o presente; antes sim, a Totalidade. 

Com a entrada dele em cena, dá-se o conflito maior entre os dois mundos: Inteligível e Sensível. E para tanto forma-se o seguinte palco: 

"Entra Tirésias, velho e cego, conduzido por um moço, entre dois servidores de Édipo." (p.121). 

Novamente algumas imagens são resgatadas: a do velho e a do jovem; mas não mais nos ateremos nesses símbolos, já os abordamos minuciosamente no capítulo III, A Força do Passado. 

Sigamos a nossa caminhada, a qual seria mais árdua e longa caso se tratasse duma tese de mestrado. Tomemos, pois, a fala de Édipo ao se dirigir ao velho. Notemos com que Certeza ele fala sobre a potência de Tirésias. 

" _ tu, Tirésias, que dominas todo o saber - o que pode transmitir-se e o inefável, o celeste e o terrestre -, mesmo que teus olhos não vejam, sabes, com certeza, o mal de que enferma Tebas." (p. 122 ER) 

Édipo separa os dois mundos e diz deles que Tirésias tanto sabe como pode transmitir - até mesmo o inefável. Mas aquele erra; busca novamente fórmulas de escape para conhecer a Verdade. Tirésias sabe, no entanto, que Édipo tem que ser ofuscado pela luz, tem que ser iluminado, habituar-se a ela até que aos poucos consiga separar o Mundo das Sombras do Mundo da Realidade. Caso Tirésias lhe dissesse qual era o mal tebano, ocorreria o mesmo que aconteceu com o nosso personagem do Mito da Caverna (Rep. Livro VII - Platão). 

Aqui reside a riqueza dessa obra. Sófocles antecipa Platão; vê através da dramaturgia aquilo que a Filosofia somente a posteriori conseguirá explicar. Mas retornemos ao conflito em que é posto o nosso vidente. 

"Ai! Ai! Quão terrível é conhecer alguma coisa que nada pode ajudar quem a conhece! Eu já sabia isto, e contudo tentei esquecê-lo, pois de outro modo não teria aqui vindo."(p.123 ER) 

Tal qual o personagem do Mito da Caverna, Tirésias volta, mas sabe de antemão qual seria o seu fim caso dissesse a Verdade, tanto que mais adiante, no debate entre ele e Édipo, cita: 

" Não quero molestar-me... nem molestar-te. Por que insistes em vão? De mim nada terás." (p.123) 

"De mim nada terás." Novamente os oráculos se recusam a manifestar a Verdade. Édipo se recusa a ver. Se até mesmo o demiurgo viu, contemplou, quem é Édipo para querer ver sem ser ofuscado, sem sofrer o processo dialético?! Ele precisa sair do mundo das sombras, do mundo da Doxa; a " Epistéme" não se atinge sem "Contemplatio". Segundo Heráclito "La naturaleza gusta de ocultar-se" ( p. 24 fr. 56 Los Filósofos Antiguos - C. Fernandes). É preciso que o sujeito do conheci-mento se aplique à tarefa do saber que consoante Tirésias "... a verdade, embora a encubra eu com meu silêncio, a seu tempo chegará." (p.124), isto é, " adaequatio intellectus et rei". Ela não é algo que se adquira com a força, ou quando bem se pretende; há o tempo, o ciclo grego que tem que ser cumprido, condição essa que Édipo insiste em não respeitar, o que po-demos observar em sua resposta a Tirésias: " Se pensas que ela virá, por que não ma revelas agora?" (p.124-ER) 

Notemos que se o ancião revelasse, tirasse o véu, manifestasse a verdade a Édipo, já não mais seria verdade, posto que estaria a faltar o terceiro elemento, mais uma vez o conhecimento estaria chegando àquele através da audição e da voz. 

Mas a luta entre Doxa e Epistéme permanece. Diz Édipo ao velho: "Pensas que consentirei que me continues a falar nesse tom? (p.125); responde-lhe Tirésias: "Sim, se a verdade possui alguma força." A verdade aqui é o poder ao qual o próprio poder deve curvar-se; mas ao ver-se atacado, destronado, Édipo busca cegar seu adversário: "Tem-na, exceto de ti; e para ti não tem, por seres cego dos olhos, como estás sendo dos ouvidos e da cabeça." (p.125) 

Édipo confunde, aqui, o que é verdadeiramente estar na sombra. Não é cego quem não vê: "..."No meu modo de pensar", é cego quem não pode pensar - saber, " mesmo um pouquinho só". Conhecer é clarear a vista, como se o saber permitisse, enfim, olhar. (...)" (O Olhar p. 39 - Janela da Alma, Espelho do Mundo - Marilena Chauí)., cego é aquele que vive no mundo das aparências, da opinião, que desconhece, ignora. Mas Édipo não compreende isso e novamente afronta o ancião: " Alimentas-te da noite, por isso, não poderás prejudicar, nem a mim, nem aos que vêem a luz." (p.126) , porém, novamente ele se engana, posto que consoante Chaui (p. 40 idem) "É essa imaterialidade da operação visual que a torna tão propícia ao espírito. Ela prepara os olhos para a transferência ao intelecto, começando por usurpá-los - o pensamento fala com a linguagem do olhar - e terminando por serem usurpados por ele - o espírito dirá que os olhos não sabem ver." O pensamento usurpou na Filosofia o olhar. Desde o nascimento desta, ainda consoante Chaui, (p.40) " (...), no afã de decifrar o enigma do olhar, a filosofia cindiu o que nossa atitude fideísta mantém unido: a crença na simultânea passividade e atividade da visão. Doravante, ou a visão depende das coisas (que são causas ativas do ver), ou depende de nossos olhos (que fazem as coisas serem vistas)". Além disso, o seu equívoco se dá também quanto à concepção da Noite. Não nos esqueçamos de que esta é prenhe de vida, (Histórias das Idéias e Crenças Religiosas vol I p. 230) além de ter sido para ela que Zeus foi perguntar "como organizar o cosmos , para que se tenha um todo com par-tes distintas?" A noite, antes de ser um obstáculo para o conhecimento, também encerra em si o saber. Logo, surge-nos a dúvida: quem está na Lethé ou na Alethéia ? 

Édipo não quer ver e formular o discurso, esquece-se de que a visão depende de nossos olhos, e de que "(p.40 idem Chaui) Entre todos os instrumentos [que servem para a alma prever] os deuses modelaram primeiro os olhos portado-res de luz e os implantaram no rosto pela seguinte razão. Um fogo tendo a propriedade de não queimar e sim de brilhar com doce luz, decidiram que seria o corpo próprio de cada dia. Porque o puro fogo dentro de nós é parente daquele, fizeram com que escoassem através dos olhos, ... )". Não conseguindo entender que ele possuía em si essa qualidade de ver, atribui a Tirésias e a Creonte uma trama contra o poder, criada pela ambição humana. Se assim não fosse pergunta a Tirésias: "Por que não informaste o povo, quando aqui estava a cadela, com as suas cantigas, indicando-lhes a forma como dela se libertarem?".(p.126-ER) Não compreende que ao Inteligível não cabe dizer sobre a existência, mas sobre a essência. E esse, na forma de Tirésias diz: " ... tu tens na verdade olhos, mas não vês...", e a seguir: " Por agora teus olhos vêem a luz, mas em breve só verás sombras." (127) Isto é, Tirésias vaticina o que ocorrerá com Édipo. Assim como ele, verá, e ao ver cegar-se-á como sentença por ter olhos e mesmo assim não ter visto. Assim como o vidente, verá com o olhar da Mente, não mais será afetado pelas coisas. Essa abarcará os olhos. 


O CONFRONTO ENTRE PASSADO E PRESENTE: LAIOS - ÉDIPO. 

Após revoltar-se contra Creonte, Édipo explica a Jocasta o porquê de sua decisão de bani-lo de Tebas. Para ele, como vimos anteriormente, Creonte tramara tudo com Tirésias para destroná-lo, fazendo com que perdesse a posição de inconsciente coletivo do povo tebano. 

Jocasta, na tentativa de retirar de Édipo qualquer culpa da morte de Laios, começa a revelar-lhe o passado. Turba-se, no entanto, o nosso personagem, quando sua esposa começa a lhe resgatar a memória. "Que profunda turbação trouxeram ao meu espírito as tuas palavras!" Que inquietação apoderou-se de mim." (p.137 ER). 

Ao resgatar o passado, ao seguir o fio de Ariadne, Édipo começa a sair do labirinto e seus olhos começam a ver. Notemos que Jocasta diz: "O que é que te inquietou, no que eu disse? É necessário olhar, agora, para o passado?" (p.137). 

Resta-nos saber com que olhos é que se olha o passado e em que lugar está depositado para que se possa vê-lo. Que olhar é esse que é capaz de estar acima do próprio tempo a ponto de colocar presente e passado frente a frente. Vejamos o que nos tem Parmênides a dizer em seu (Fr. I, 33-37 Diels): "Afasta o teu pensamento desta via de investigação e não te faças impelir sobre ela pelo costume de deixar-te guiar por um OLHO QUE NÃO VÊ, por um ouvido que retumba e pela palavra: julga porém com a Razão." (Dic. Abbagnano, p. 792). 

Eis com que olhos agora vêem Édipo. Não vê o pas-sado com os olhos, posto que este é um fogo que só clareia o presente; o seu ver é o resultado não do senso comum como nos cita Heráclito: "É preciso seguir o que é universal, isto é: comum a todos; e somente a Razão é comum; (...) " (Fr. 2 Diels - Abbagno p. 792). Édipo, agora, não está mais no âmbito da particularidade, mas lida com dados da Mente; bebe agora da fonte de Mnemósina; trabalha com dados universais. As conclusões a que chega não ficam no âmbito apenas da particularidade, mas suas conclusões são comuns a todo o povo tebano. 

Quanto mais adensa o diálogo entre Édipo e Jocasta, mais aquele se vê ofuscado pelo brilho da Verdade, haja vista que percebeu que vivia no mundo das sombras. Começa a sair da Caverna, de seu senso-comum, do mundo das aparências e a enfrentar a realidade. E essa constatação o leva a dizer a Jocasta: "Terrível desânimo se apodera de mim, ao pensar que o adivinho vê CLARO." (p. 138 ER). Ei-lo a notar que vivia na Lethé e não Tirésias. Aos poucos a realidade começa a configurar-se, a tomar forma, mas a Luz que desvela a Verdade não lhe permitira ainda associar o que via, quando habitava o mundo das sombras, à realidade. É somente com a chegada do mensageiro a anunciar a morte de seu pai adotivo Pólibo, de Corinto, que Édipo percebeu que andou em círculo. Ao invés de ir adiante, retornou; e ao retornar chocou-se com o passado. Na luta deste com o presente, obviamente sobrevive este. 

Édipo estava desenraizado, participava dum inconsciente coletivo que não era seu, e ao tentar fugir dele, cumpre o que o Oráculo vaticinara. O presente, ao invés de caminhar para frente completando o seu ciclo, na pessoa de Édipo, para tornar-se passado, retornou e rompeu o fio de Ariadne. 

Everaldo P.G. Rocha (O que é Mito, Brasiliense pp. 205, 206) cita-nos que: " Essa estranha cadeia fatal é, no fundo, a marca da tragédia para a antiga Grécia. Homens, como deuses da dor, lutando inutilmente contra desígnios de deuses que, como homens sem dor, forjam destinos em que ambos - homens e deuses - se revezam implacavelmente. Em outras palavras, na tragédia de Édipo, o antagonismo entre ordem divina e a ordem humana está principalmente expressa na ideia de que os homens são sujeitos de suas vontades, mas o que estas vontades realizam concretamente são as vontades dos deuses e não as dos homens. No limite, vemos que os homens fazem o que querem, contanto que este querer seja o dos deuses. " (p. 205 -206). Mais a seguir o mesmo autor no cita: " Quando penso que estou fazendo minha vontade, estou, de fato, cumprindo a vontade alheia. A vontade dos deuses. Um jogo de vontades com cartas marcadas, sem apelação ou escapatória." (Idem p. 206). 

Ora, se tudo está no mundo das Idéias, Apolo nada vaticinou. Quando consultado, simplesmente, significou, isto é, deu signos tanto a Laios quanto a Édipo, signos estes utilizados pelo demiurgo para criar o Mundo Sensível. O Oráculo nada vaticinara, apenas dissera a ambos que o Mundo Sensível está em constante mudança. Não houve uma imposição dos deuses, antes sim, uma manifestação da realidade tal qual é, posto que lhes foram relevados, simplesmente o ser das coisas. 

Laios, ao saber que seria destronado, tenta evitar isso. Não admitia perder a posição de eterno presente de Tebas. E o que o Oráculo lhe revelara era que ele um dia seria substituído pelo seu filho. Mas ele não aceita passar o trono, transformar-se em passado, não aceita o Devir, o que é natural no Mundo Sensível. Esqueceu-se de que o passado não podia matar o presente, no máximo feri-lo deixando a sua marca. Em momento algum, ambos estavam sob a determinação ou a vontade dos deuses, antes sim, sob a determinação do eterno Devir das coisas, ao qual Laios não quis subordinar-se. 


O RESGATE DO CICLO GREGO: JOCASTA. 

Édipo, agora, está diante do passado, este desvela quem Édipo é. Cumpre-se o árduo "Conhece-te a ti mesmo" . Nosso personagem vê, através da figura dos anciãos. É chamado o "boieiro" o qual comprova a descendência de Édipo. Jocasta sai apressada e entra no palácio. Um mensageiro sai do palácio e comunica: "Só duas palavras. Num momento se dizem, num mo-mento se escutam: a nobre Jocasta está morta." (p.156 ER). A seguir, ainda na fala do mensageiro, ao se referir ao desespero em que se encontrava Édipo em busca de sua mãe e mulher diz-nos: "... pedia-nos uma arma, , queria que lhe disséssemos onde estava a sua mulher; não sua mulher, mas aquela dupla mãe onde se geraram ele e os seus filhos." (p. 156-ER).. 

Tebas havia perdido os laços com o passado; nela existia apenas o eterno presente; o ciclo grego precisava ser retomado, e somente uma pessoa poderia retomá-lo: Jocasta. Ela era a única ponte que Édipo tinha com o passado, por isso "aquela dupla mãe". Eis por que não ocorre para os gregos a questão do incesto. Caso Édipo se unisse a alguém do presente, seria a consolidação da eterna presentividade. Somente Jocasta possuía o ventre que resgataria o ciclo do eterno Devir. O presente, portanto, se une ao passado e retoma o fio de Ariadne, na figura dos filhos de Jocasta e Édipo. 

Observemos que na fala do mensageiro temos: "A nobre Jocasta está morta." Em momento algum pesa sobre ela, por parte dos tebanos, um crime de incesto; isso porquanto a figura da mãe, para os gregos, é o da "Magna Mater". A mulher, consoante Duby e Perrot, "imita a terra" no ato da reprodução. (p. 49 História das Mulheres na Antiguidade -). Já num segundo momento temos, também, pela fala do mensageiro, Jocasta sendo dada como " ... aquela dupla mãe onde se geraram ele e os seus filhos". Cabe-nos ver nesta fala duas coisas importantes. A primeira é que Jocasta é vista como dupla mãe. Isso se dá posto que ela pariu o presente, na figura de Édipo, transformando-se no inconsciente coletivo do povo tebano e posteriormente resgatando o ciclo através dos filhos que tem com Édipo. Já a segunda coisa a ser observada, é o advérbio de lugar utilizado para designá-la: "onde". Jocasta deixa de ser uma pessoa e transforma-se num lugar; isso ocorre porque a mãe é vista como a Grande Gê, ou seja, a Mãe-Terra. Não nos esqueçamos também de que, para os Gregos, consoante Duby e Perrot, (p.50) "... a mãe existe. Os gregos a veneram." A mãe para eles é como uma deusa, ela "... é tudo (ou o todo) ... a Ideia reguladora de tudo. Neste aspecto ela garante perfeitamente a origem, porque ela é a origem." (p.53 - Hist. das Mulheres) Portanto, a única pessoa que poderia novamente originar o ciclo grego era Jocasta. Somente ela possuía essa ponte com a Totalidade . Notemos, pois, que o texto cita-nos que a mãe é a Origem e que também é Ideia. Se era Ideia e Origem, logo, ela era a essência de todas as coisas. Jocasta representava o princípio gerador de todas as coisas, portanto, encerrava em si, a Totalidade. Ela era a Grande Gê que estava por detrás de todo DEVIR. 

Assim podemos vê-la, posto que Severino nos cita que "Nos primeiros pensadores gregos, a evocação do sentido inaudito da Verdade é também (e não podia deixar de ser) um dirigir-se à Totalidade das coisas..." (p.20 -A Filosofia Antiga -Severino) Se a busca da Verdade é, também esse dirigir-se para a Totalidade, Édipo só descobre aquela ao deparar-se com a mãe; isto é, com aquela que abarcou tanto o seu presente quanto o seu passado. Ela continha em si a Verdade, posto que nela estava a possibilidade de retomada do ciclo grego, bem como nela também estava a própria essência do que era Édipo. 



A "INTELIGIBILIDADE" : CEGUEIRA DE ÉDIPO. 

"Agora vereis, nas trevas, os que nunca devíeis ter visto: e também os que ansiastes conhecer." (p. 157 ER) 

Ao presenciar a terrível cena de Jocasta, enforcada, diz-nos o mensageiro que Édipo " ... retira os alfinetes de ouro com que, como adorno, ela segurava os vestidos, empunha-os e vai cravá-los nas órbitas, gritando que o fazia para a não ver a ela, nem aos males de que sofria, nem ainda aos que ele mesmo povoou." Ao abrirmos o Dicionário de Símbolos (p. 434 - Cirlot) temos: "O ouro é a imagem da luz solar e, por conseguinte, da inteligência divina." Fora afetado pelo "Pháos" recebera o dom dos deuses. Contemplara a "Totalidade, e ao vê-la cegara-se para a Realidade Sensível; fora além desta. A Mente terminou por usurpar o olhar e, após, disse que os olhos não sabiam ver, furtando-lhe a "Luz": "Agora vereis nas Trevas..." (p.157). A partir de então passou a ver com o olhar de Tirésias; via metafisicamente, já não mais necessitava do terceiro elemento externo a si: "Pháos" . Esta fora abarcada pelo olhar da "Mente", que por si só se auto-ilumina com as "Idéias". A lembrança, a memória tornou-se a única coisa visível para Édipo: "Ai de mim, e de novo, ai de mim! Como se crava, em mim, o aguilhão da lembrança dos meus males!." (p.,158 -ER). Agora Édipo vê com os olhos desgarrados dos velhos. Não possui olhos, mas vê, uma vez que seu olhar apoia-se em modelos pré-existentes e eternos. Édipo, a partir de então, participa do "Mundo das Idéias" , contempla a "Totalidade", não mais o que o "lumem" lhe permite ver num presente. Transforma-se em Atemporalidade, haja vista que a "Mente" é capaz de mergulhar no tempo, sem a este estar sujeita. Édipo agora conhece posto que conhece. Cita-nos Mircea (p. 170 - História das Idéias) VolIII) que "Para Platão, conhecer equivale, em última análise, a lembrar-se." Se assim o é, Édipo lembrou-se, bebeu do Lago de Mnemósina. Sua vida não é mais um caos, transformou-se em um "Kósmos", (Conjunto das coisas que saíram da desordem ou do Cháos)* (p. 21 - Severino) 

O ciclo metafísico foi cumprido. Édipo chegou ao Inteligível, sofreu o processo de ascese, não mais porque os deuses vaticinaram. Da mesma forma que adivinhara o segredo da "Esfinge", assumindo-se enquanto ser em Devir, ao responder que era "O Homem"; precisava Saber e saber-se, e o conhecimento somente se dá quando o homem olha de dentro para fora e não ao contrário. Édipo, não mais recebeu a Verdade" a partir dum oráculo, essa se construiu a partir da Memória resgatada. 

No capítulo "Os Labdácidas: o Mito de Édipo.", (p.269 - vol. III Mitologia Grega) Junito ratifica os argumentos anteriormente desenvolvidos neste trabalho, no capítulo VIII. " Do ponto de vista simbólico, todavia, a cegueira que Édipo se infligiu possui um sentido mais profundo. As trevas externas geram a luz interna. A (anagnórisis) " ação de reconhecer" e de reconhecer-se começa efetivamente a existir quando se deixa de olhar de fora para dentro e se adquire a visão de dentro para fora. Mergulhado externamente nas trevas, o herói se encontrou. Se Édipo, porque sabia, conquistou o poder, a hipertrofia desse mesmo poder sufocou-lhe o saber. Sua cegueira estabeleceu em definitivo a ruptura entre o saber e o poder: cego, o herói agora sabe, mas não pode." 

Édipo perdeu o poder em Tebas, mas ganhou o saber. Sai da condição de poder Temporal para Atemporal. Reconhece a si e a Tebas. Não está mais desenraizado. A história de Tebas cumpriu o ciclo de crescimento: sofreu o ritual de passagem. De Cadmo a Édipo, a história de Tebas foi a história da fuga, e de apropriação indébita do poder. Tebas foi sempre comandada por reis que podiam mas não sabiam. " Cego, o herói agora sabe (formulou o seu discurso), mas não pode." (p. 269 - Junito - Vol. III - Já citado) 



CONCLUSÃO 

"Qual o animal que, possuindo voz, anda, pela manhã, em quatro pés, ao meio-dia, com dois e, à tarde, com três?" 

(Junito p. 261 - V. III - Mitol. Grega) 

Severino, em sua obra (p. 19 - A Filosofia Antiga) cita-nos que "O mito não pretende ser uma invenção fantástica, mas sim a revelação do sentido essencial e total do mundo." Ora, o que vimos até então foi Sófocles, através de Édipo-Rei, buscar a essência do mundo tebano através do "Mythos", isto é, por intermédio da palavra. Esta é reveladora da "RES em si" , ou seja, da essência da realidade, ou da manifestação da Ideia; por isso Édipo teria que construir o seu discurso. Este lhe não foi dado nem pelo cego Tirésias, nem pelo Oráculo. Da mesma forma que ele decifrou o enigma da Esfinge, teria que por si só formular o discurso, identificando-se, e a Tebas. 

Não podemos negar que em Édipo-Rei ainda não temos um pensamento epistêmico, mas é inegável que a busca do "Sa-ber" (Sophia), do "Lógos (Razão), da "Alethéia" (Verdade) já se configura nessa peça. 

Por outro lado, se "Philosophia" significa "o interesse pelo saber" (p. 20 - Severino vol 1) e se "Sophia" ecoa tal como o adjetivo Saphés (claro, manifesto, evidente, verdadeiro) e se o sentido de pháos é luz, então filosofia significa o interesse por aquilo que se encontra sob a luz. (Apud p. 20 - Severino); e, se Édipo tem que ser iluminado, tem que buscar a Verdade, ele tem que se portar como um filósofo. Tem que buscar aquilo que está sob a luz, aquilo que é verdadeiro, que se manifesta. A partir desse pressuposto podemos dizer que a obra Édipo-Rei não se limita apenas a uma recriação da realidade, como vê Platão a obra literária, mas nela Sófocles já ensaia uma problemática maior, que é a busca do Verdade; problemática essa que é um discurso de sua época. 

Sófocles, ao buscar a essência da realidade, através de seu personagem, centra a atenção nas idéias que fecundam a sua época. Notemos, pois, que nosso dramaturgo nasceu em Colono, cerca de 495 a.C; já Heráclito em 549? - 475?, enquanto Parmênides 515/510? -435. Sófocles viveu exatamente no período em que as teorias de ambos os filósofos foram expostas, e delas ele se apropria para levar Édipo a sair da obscuridade, centrando sua atenção em dois mundos: o dos olhos que possuem luz, mas não vêem, e o dos olhos que não possuem luz mas vêem. O primeiro mundo apresenta uma realidade que está em constante movimento, como nos comprova o fragmento 61 de Plutarco "No se puede entrar dos veces en el mismo rio - según Heráclito -, ni tocar dos veces la misma sustancia mortal según su manera de ser; sino que, por la intensidad y rapidez de su cambio, se dispersa y se recoge de nuevo, se acerca y aleja." (p. 23 - Los Filósofos Antiguos). por isso os olhos não conseguem reter a essência da realidade, mesmo havendo luz, visto que se as coisas não são sempre as mesmas, é impossível se obter conhecimento verdadeiro face à sua constante mudança. 

Já o segundo mundo é o de Parmênides (p. 28 - F. Antiguo) manifestado no fr. 8 "Ya no nos queda más que um relato posible, el de la vía de que "es". A lo largo de esta via hay numerosísimas señales: que el ente es ingénito e in-destructible, entero, unigénere, inmoble y perfecto. Ni "fue" jamás, ni "será", puesto que "es" ahora todo junto, uno y continuo (v.1-6)" , ou seja, é o mundo imobilidade, não criado, que não é suscetível de mudanças. Desse mundo é possível o conhecimento, e foi nele que Édipo foi buscar o a sua história, o conhecimento de seu passado, a sua essência. Esses mundos, os quais estão em jogo na peça de Sófocles, foram posteriormente conciliados por Platão (429/427 -348/347), em Mundo Sensível e Mundo Inteligível, respectivamente. 

Sófocles utiliza-se do Mito, mas para deste fugir. Notemos que a condição " Sine qua nom" para que Édipo seja iluminado, é que ele "Veja", parta da contemplação da realidade e vislumbre, isto é, que o pensamento atravesse, sem se distrair, a infinita riqueza das coisas, dirija-se ao Todo, que percorra o confim extremo, para lá do qual nada existe e consiga vislumbrar a reunião em conjunto das coisas mais diferentes e mais antitéticas, a sua reunião numa suprema unidade. (*) (Apud - Severino pp. 21,22). Mas isso só poderia ocorrer a partir do momento em que Édipo praticasse a ascese, sem a ajuda dos deuses, assim como ele decifrou o enigma da Esfinge. Foi essa exigência imposta pelo dramaturgo que fez com que Tirésias se calasse. Édipo tinha que transcender o Sensível para deixar de ver as coisas de forma fragmentária e abarcar a Totalidade, haja vista que ele representava a Totalidade Tebana; o mundo enquanto restringido à Tebas. 

O problema edipiano é o problema da Verdade, e "A evocação do sentido inaudito da verdade implica que nos dirijamos não a esta ou àquela dimensão particular da realidade, mas ao Todo, para questionar qual será a Verdade inegável. Apenas se nos deixarmos levar até aos extremos confins do Todo é possível que com ela nos deparemos." (p. 22 Severino.) Mas Édipo, num primeiro momento, não fez isso. Ao desvendar o enigma da Esfinge pensou que detinha a Verdade. Esta não estava no homem, tampouco nesse mundo da Corrupção, ela estava para além do homem, assim como o problema tebano estava para além de Édipo. A problemática era uterina, por isso ela parte do útero, de Delphos o qual "tinha uma pré-história como local oracular muito antes de Apolo ... os gregos ligavam-lhe o nome a delphús, "útero". A cavidade misteriosa era uma boca, um stómios, termo que designa também a vagina. (...) Por símbolo do umbigo, estava carregado de sentido genital; mas era sobre-tudo um "Centro do Mundo".(p.247- Mireca) Por isso os personagens de Sófocles partem de Delphos e a ele sempre recorrem para obterem a Verdade. Mas o útero precisa ser fecundado, ele não se manifesta gratuitamente, da mesma forma que é preciso contemplar a realidade e transcendê-la, não ficar somente nela, haja vista que na realidade há laivos da Ideia; há Tirésias no Mundo. Em suma, o mundo não está totalmente desprovido de Ser, " As coisas são habitantes do Todo, não apenas no sentido, mais forte, de que a origem da qual provêm e o termo final que, ao partirem, atingem, estão eles próprios contidos no Todo." (p. 28 - Severino - vol. 1) Mas onde estava essa Totalidade, essa essência à qual Édipo deveria atingir? Na Mente, na Memória. Por isso ele tinha que resgatar todo o seu passado, e este, por não estar diante dos olhos sensíveis, por não estar afetado pela luz, não podia ser passível de conhecimento. Somente a Mente, atemporal e iluminada é capaz de ver além do presente. 

Édipo, enfim, sai de sua Caverna, sofre o processo de habituar-se à "Lux" de Ser que é iluminado e transforma-se em "Lumen". Tanto Tebas, quanto Édipo, agora, têm seu passado, e aquela o seu inconsciente coletivo resgatado, posto que o ciclo grego fora retomado, quando da saída de Édipo do poder. A "Physis" tebana volta a ser esse eu "nasço", " sou gerado", de maneira que Tebas volta a ser o reino dos seres que nascem (e, portanto, morrem), ou seja, volta a ser um Mundo do Devir. (Apude p. 24 - Severino) 

Através da análise da obra Édipo-Rei pudemos constatar que a grandeza de Sófocles reside, exatamente, na capacidade de antecipar a conciliação platônica das teorias de Parmênides e de Heráclito; já, a virtude de Platão consiste em ter ido além de Sófocles, ao sistematizar o pensamento grego e lançar a problemática para o Mundo da Epistéme, enquanto aquele ficou no Mundo da Representação. 



FONTE:

 


MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO 

CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DO PARANÁ 

DEPARTAMENTO ACADÊMICO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO (DACEX) 



REVISTA DE LETRAS Nº 01/96 

Publicação anual do DACEX 

Editor - chefe: Luiz C. Serrone 

Conselho Editorial: Adão de Araújo 

Célia Regina Crestani 

Paulo Juarez Rueda Strogenski