quarta-feira, 13 de setembro de 2017

O QUE É O TEATRO DO OPRIMIDO E O TEATRO LEGISLATIVO?



 O Teatro do Oprimido é teatro na acepção mais arcaica da palavra: todos os seres humanos são actores, porque agem, e espectadores, porque observam. Somos todos espect-actores. (…) Creio que o teatro deve trazer felicidade, deve ajudar-nos a conhecermos melhor a nós mesmos e ao nosso tempo. O nosso desejo é o de melhor conhecer o mundo que habitamos, para que possamos transformá-lo da melhor maneira. O teatro é uma forma de conhecimento e deve ser também um meio de transformar a sociedade. Pode nos ajudar a construir o futuro, em vez de mansamente esperarmos por ele.

Augusto Boal, in Jogos para atores e não atores







O Teatro do Oprimido (TO) é uma metodologia de trabalho político, social e artístico e é um género teatral criado por Augusto Boal, encenador, dramaturgo e teatrólogo brasileiro. Bebendo as suas influências quer numa análise crítica sobre a evolução histórica do teatro, quer nos métodos pedagógicos de Paulo Freire, o TO propõe toda uma nova forma teatral que assenta na abolição da relação tradicional espectador/actor, para colocar no centro da prática dramática o espect-actor – não mais o espectador passivo, mas um interveniente na cena teatral. A base do TO é a exploração de situações de opressão e a valorização da capacidade criadora e criativa de todas as pessoas, em particular dos oprimidos. Isto acontece porque, depois do problema apresentado (uma pergunta ao público, sob a forma de teatro), os espect-actores podem substituir as personagens oprimidas e podem mudar a história, não apenas sugerindo como devia ser, mas actuando e confrontando-se com as outras personagens.



No Teatro Legislativo, exploramos uma história concreta que exprime um problema. Identificam-se os conflitos que estão em jogo e os obstáculos à resolução da situação. Esses obstáculos podem ser variados: pode ser um comportamento individual ou colectivo, pode ser uma relação de poder e pode ser uma lei ou um conjunto de leis que impede as pessoas de acederem aos seus direitos ou que consagra uma relação injusta, de desigualdade, de opressão ou de exploração. O Teatro Legislativo é a utilização da metodologia do Teatro do Oprimido para mudar a lei, discutindo as alterações necessárias às leis que existem a partir de histórias concretas, mas também testando as formas de organização colectiva que são necessárias para construir uma relação de forças diferentes que imponha uma lei mais justa.



O Teatro Legislativo é uma forma de humanizar a política: quando temos pessoas concretas e com nome à nossa frente, sabemos que a violência, o desemprego, a discriminação, são marcas reais em corpos verdadeiros, e não apenas conceitos abstractos para discursos inflamados. O Teatro Oprimido – e, dentro dele, um projecto de Teatro Legislativo – é uma das formas possíveis de democratizar a política: ele não requer que as pessoas possuam qualquer linguagem técnica (o que muita gente chama por vezes da “linguagem dos políticos”) para se exprimirem. Ele impele as pessoas a falarem da sua vida através da sua própria presença – corpo, voz, movimento – e facilita por isso a expressão das pessoas num código que não as põe à partida em desvantagem, relegando-as para a categoria de “incompetentes políticos”, mas que as reconhece como as mais competentes na expressão da sua realidade. Por último, o Teatro do Oprimido (e, dentro dele, o Teatro Legislativo) é uma forma activa, entusiasmante e envolvente de discutir política porque despoleta o debate a partir da humanização da discussão e de uma história concreta. Desinstitucionaliza o debate político e abre novos espaços de conflito e de alternativas.


Fonte:






terça-feira, 8 de agosto de 2017

FÁBIO DE OLIVEIRA RIBEIRO ESCREVEU...



A PERSONAGEM FANTÁSTICA 





Aristóteles foi um dos primeiros teóricos a debruçar-se sobre a questão da personagem. Partindo do conceito de “mimesis”, ele enfatizou a semelhança entre os seres fictícios e o homem. Além disso, como assinala Fernando Segolin, o Estagirita “fala-nos também de uma personagem possivelmente humana, dotada de uma humanidade ideal.” Como a semelhança entre a personagem fantástica e o homem ou entre ela e uma humanidade ideal só é possível depois de um elaborado processo de associações através das quais o leitor decodifica a metáfora do texto, desde logo percebe-se a inadequação do conceito aristotélico para defini-la. 



O ser fantástico representa em si mesmo uma quebra das expectativas, uma subversão da “mimesis”. Para entendê-la, será, portanto, necessário compreender esta subversão. Tratando das interações entre retórica e ideologia, Umberto Eco assinala que “toda verdadeira subversão das expectativas ideológicas é efetivada na medida em que traduz em mensagens que também subvertam os sistemas de expectativas retóricas. E tôda subversão profunda das expectativas retóricas é também um redimensionamento das expectativas ideológicas. Nesse princípio se baseia a arte de vanguarda, mesmo nos seus momentos definidos como “formalista”, quando, usando o código de maneira altamente informativa, não só o põe em crise, mas obriga a repensar, através da crise do código, a crise das ideologias nas quais ele se identificava.”


Eco nos dá uma pista importante para entender a personagem fantástica. Sua inadequação ao conceito de “mimesis” aristotélico denuncia tanto a crise deste conceito, como também da própria língua. Incapaz de exprimir a mensagem do artista em razão de sua coerência, a língua é subvertida através da quebra de expectativas e o fantástico é instaurado no texto através da personagem anti-mimética. Rompendo as expectativas do discurso, ela questiona profundamente a idéia que o homem tem de si mesmo. Nesse sentido, pode-se dizer que a literatura fantástica é altamente ideologizada em virtude das características da personagem do gênero. Aliás, é o trabalho de construção da personagem que confere a marca distintiva da literatura fantástica.



O conceito de personagem formulado por Aristóteles é capaz de ajustar-se às mais diversas personagens literárias. Qualquer que seja a escola, a personagem sempre refletiu ou procurou refletir um aspecto do homem ou de uma humanidade ideal. Tanto D. Casmurro de Machado de Assis, quanto Werther de Goethe e Otelo de Willian Shakespeare retratam o homem apaixonado. O João da Paz de Érico Verisimo também. Só que o último é um não homem. Um morto que se levanta do caixão e retorna a Antares para denunciar como foi morto por tortura e tentar proteger a esposa e o filho que está por nascer. Assim, não é possível estabelecer qualquer relação entre ele e Bentinho, Werther e Otelo. O amor que João da Paz sente por Rita Paz é de uma natureza distinta do experimentado pelas outras personagens citadas. O amor de que fala Érico Verisimo é capaz de vencer a morte. É óbvio que isto se trata de uma metáfora, afinal a morte é absoluta e ninguém retorna dela. Todavia, Verisimo quer nos dizer que existem sentimentos mais fortes, mais delicados que o desejo de Werther por Carlota e o ciúmes de D. Casmurro por Capitu e de Otelo por Desdemona. É destes sentimentos que a personagem fantástica nos fala. João da Paz quebra as expectativas que temos do amor. Seu amor por Rita Paz é capaz de transcender o desejo e o ciúmes, por isso mesmo, só poderia partir de um morto. E é aqui que realidade e ficção se interpenetram no texto. Afinal, para amar é preciso despojar-se do egocentrismo e isso equivale a morrer. De alguma forma. Verissino poderia muito bem tratar do tema através de uma personagem mimética. Mas será que fazendo isto o texto surtiria o mesmo efeito?



Geralmente considera-se plana a personagem que recebe do meio “sua linguagem, seus gestos, seu porte, seus hábitos e mesmo seus modos de pensar e sentir. Por isso, funciona como uma espécie de índice social.” 3. A personagem redonda, ao contrário, obedece aos seus próprios impulsos e apresenta modificações ao longo da narrativa.


Esta distinção, útil para classificar as personagens miméticas, é um tanto problemática quando tratamos de personagens fantásticas. É claro que as mesmas podem representar um padrão, mas apenas simbolicamente. Afinal, como desde logo representam uma quebra das expectativas, sempre deveriam ser consideradas redondas. Mesmo quando sua conduta permanece inalterada, a personagem fantástica está sujeita a transformações, como é o caso de Dona Rebeca em “A mulher azul” de Jorge Miguel Marinho. Neste conto a tensão não decorre das modificações da personagem, mas da forma como ela passa a ser vista pelos familiares à medida que muda de cor (envelhece). Às vezes, a conduta da personagem indica que ela é aparentemente redonda. Este é o caso, por exemplo, de Dora em “O complexo de Ephedron”, do mesmo autor. Porém, à medida que se transforma em homem, Dora se torna aquilo que sempre foi: uma pessoa desconhecida para o esposo. Como então qualificá-la, plana ou redonda?


Analisando o papel que cada ser fictício desempenha na narrativa, Propp concluiu que “a personagem nada mais é que um feixe de funções, constituído pelos predicados que designam suas ações ao longo da intriga.” 4. O conceito de Propp pode muito bem ser aplicado à personagem fantástica, por dois motivos. Primeiro, Propp não parte da noção aristotélica de mimesis. Todo e qualquer ser fictício, mesmo o não mimético como é o caso do ser fantástico, pode ser considerado um feixe de funções na narrativa. Segundo, este teórico não se preocupa em qualificar as ações das personagens para classificá-las, antes classifica-as apenas segundo as funções que desempenham no texto. Além destas duas grandes virtudes, a teoria de Propp abre caminho para um estudo mais profundo da personagem fantástica. Ele procurou identificar as funções das personagens no texto e é nele, na sua linguagem, que devemos buscar as raízes dos seres fictícios não miméticos segundo Umberto Eco.



Feito este pequeno esforço teórico, cremos ser possível esboçar uma definição provisória para a personagem fantástica. Fantástica é a personagem que rompe com o conceito aristotélico de mimesis, subvertendo as expectativas ideológicas para cumprir uma função ideológica, que é obrigar-nos a repensar o homem, o mundo e a linguagem. Por isso, este tipo de personagem não pode ser qualificada como plana ou redonda. Estes dois conceitos são inadequados para definir suas ações, porque, como vimos, a personagem fantástica pode ser redonda quando plana e plana quando redonda.





BIBLIOGRAFIA

SEGOLIN, Fernando Personagem e Anti Personagem, Cortez & Moraes 
Ltda., São Paulo, 1978

MOISÉS, Massaud A criação literária, 3ª edição, Melhoramentos, São
Paulo, 1970

ECO, Umberto A estrutura ausente, Edusp, São Paulo, 1971.



Perfil do Personagem

            


Para criar um personagem consistente, procure responder às questões abaixo...

1. O que quer o personagem (força direcional > vontade)?

2. Quão forte é a sua vontade de conseguir o que deseja?

3. Os desejos dos outros personagens entram em conflito com os dele?

4. Existe conflito no personagem entre vontade e contravontade? Os demais personagens intensificam ou amenizam esse conflito? De que forma?

5. São os temores do personagem baseados em problemas reais ou apenas imaginários? Ele tem visão clara de si mesmo e sua situação ou auto-avaliação falha de alguma forma?

6. O personagem responde aos acontecimentos e aos outros personagens de maneira apropriada ou excessiva?

7. O personagem representa de alguma forma os problemas universais da humanidade através do que ele crê, do que faz, ou do que lhe acontece? Entre tais temas estão, p. ex., morte, sucesso, justiça, fé, responsabilidade pessoal, honra, beleza, ambição, orgulho, amor? O autor aborda de forma satisfatória o tema?

8. Qual a expressão corporal do personagem que sugere o texto? Por exemplo, ele espalha seu corpo para fora ou se encolhe para dentro de si mesmo? Sua face é tensa, franzida para baixo ou relaxada para cima? Seus movimentos são livres e fáceis ou são presos e restritos? Tem cacoetes ou uma área do corpo que revela sua tensão?

9. O personagem age e se movimenta da mesma forma quando está sozinho e quando acompanhado, ou existem mudanças ainda que sutis em seu comportamento? De que forma você interpreta tais mudanças?

10. Você acredita no seu personagem?



terça-feira, 4 de julho de 2017

RODRIGO SUZUKI CINTRA ESCREVEU...




PRÍNCIPE E A MANDRÁGORA: 

FILOSOFIA POLÍTICA E TEATRO EM MAQUIAVEL




“Um amante infeliz,



um doutor pouco astuto,



um frade de má vida,



um parasita fértil em malícia,



hoje serão o vosso passatempo”



Maquiavel – A Mandrágora





Dizem que o papa Leão X, quando assistiu a apresentação da peça A Mandrágora de Maquiavel, teria aprovado e parabenizado o autor pela perspicácia do enredo. Talvez o papa não tenha percebido o real alcance e impacto da referida peça para a moralidade e os costumes. O texto, aclamado por cardeais, reis, príncipes e burgueses, não era, de forma alguma, ingênuo. Maquiavel denunciava, de forma meticulosa, porém indireta, todos os hábitos corruptos, vícios e imoralidades de seu tempo. De alguma maneira, Maquiavel parecia estar pregando uma peça nos espectadores: o riso era permitido, mas até que ponto não estariam rindo de si mesmos?



A comédia A Mandrágora foi escrita no começo do século XVI e é considerada a melhor peça do teatro italiano da Renascença. Maquiavel, seu autor, também escreveu a obra mais importante do pensamento político renascentista: O Príncipe. É muito comum que se analise as duas obras separadamente, como se não tivessem qualquer espécie de conexão. O que de fato nos parece que acontece é uma situação singular: Maquiavel escreve na Mandrágora elementos de seu pensamento político. Em outras palavras, acreditamos poder enxergar por trás da forma artística da peça de teatro um conteúdo de cunho político.



Esta sugestão de leitura da peça, como uma forma artística que condensa temas advindos da política de Maquiavel, não é, obviamente, a única leitura possível. O ganho com a leitura política de uma obra de arte é, certamente, a possibilidade de se explorar novas dimensões para a linguagem do discurso político. A arte, nesse caso, o teatro, pode servir de meio de comunicação de um discurso do poder ou sobre o poder. Cabe analisar quais são as estruturas dramáticas, como são construídos os personagens, qual é a trama da peça, de modo a compreender por que A Mandrágora também pode ser lida a partir do olhar da política.



A história da peça é conhecida.



Tudo começa com uma disputa trivial: onde as mulheres são mais bonitas? Na França ou na Itália? Calímaco ouve então sobre a fama de certa mulher de ser belíssima e virtuosíssima em Florença. Seu nome é Lucrécia. Fica tão perturbado com o relato sobre esta mulher, que resolve ir a Florença. Lá, se apaixona terrivelmente por ela, desejando possuí-la de qualquer maneira, nem que seja por uma única noite.





Messer Nícia e Lucrécia têm um problema sério: não conseguem ter filhos. É em torno dessa incapacidade que gira a ação da comédia.



Ligúrio é um malandro profissional. Um papa-jantares. É ele quem vai ajudar Calímaco a conseguir alcançar, custe o que custar, seu objetivo de deitar-se com Lucrécia. Ligúrio e Calímaco tecem então a trama. Calímaco se fingirá de doutor em medicina, especializado em casos de esterilidade. Através do “latinório”, Calímaco consegue convencer Messer Nícia de que é um esplêndido médico a quem se deve confiar sem temer ser enganado.



Calímaco fala então de uma certa poção meio mágica feita a base de Mandrágora que infalivelmente fará com que Lucrécia esteja apta a ter filhos. O problema é que, e aí vai a esperteza de Calímaco, o “remédio” tem um efeito colateral mortífero. O primeiro homem que se deitar com Lucrécia após ela ter tomado a poção deveria morrer dentro de oito dias. A solução então seria a de encontrar um vagabundo qualquer que, desavisado e levado a pancadas até a casa de Messer Nícia, “fizesse o trabalho” de se deitar com Lucrécia após a ingestão da poção.



Messer Nícia quer tanto ter filhos e é tão apalermado que concorda com a empreitada. O difícil é convencer Lucrécia, mulher de virtude, a se deitar com um outro homem qualquer. Ligúrio resolve dar dinheiro a Frei Timóteo para que ele, através da força da persuasão da Igreja, consiga convencer Lucrécia a se deitar com outro homem.



Tudo segue conforme o plano e Calímaco, disfarçado, é arrebatado de madrugada, como se fosse um vagabundo, para ir ter com Lucrécia na casa de Messer Nícia. Lá, resolve contar tudo a Lucrécia que, conformada, diz ser tudo obra dos céus (a astúcia de Calímaco, a patetice de seu marido e a maldade do confessor). Agora Lucrécia, a virtuosa, se entregará ao adultério. E todos seguem felizes, sem que Messer Nícia suspeite, nem por um segundo, de que foi enganado.



Antes de analisarmos a estrutura dramática da peça, é preciso, primeiro, situar historicamente o escritor em seu tempo. Isto porque Maquiavel, apesar de ter escrito uma obra política que ainda causa impacto nos tempos atuais, era um homem de seu tempo – da Renascença. Este período, como bem se sabe, foi um período sobretudo de transições. Mudanças profundas no modo de vida europeu ocorreram a partir século XV. Uma urbanização crescente, um crescimento do comércio e uma valorização da cultura. O Renascimento, conceito criado como oposição à Idade Média, desponta como forma de vida que modifica o plano social, econômico, cultural e político. As crenças medievais começavam a sucumbir frente a uma certa emancipação da ciência, das artes e da religião. Maquiavel contribuiria com a separação da política. O Príncipe representa uma separação da política com relação a moral e a religião, coisa que nunca tinha sido feita antes desse pensador. O que Maquiavel faz, inicialmente, é encontrar um objeto preciso para esta política: o poder.



Pode se dizer, sem engano, que O Príncipe é uma obra sobre o poder. Talvez a primeira obra da história que cuida do poder como elemento central. Nesse sentido, Maquiavel pode ser considerado o precursor da Ciência Política que nasce com a modernidade. Não se tratava mais, como se pensava a política anteriormente, de estudar o tipo ideal de Estado, mas sim de se compreender o poder no centro das discussões políticas e da instituição do Estado. Maquiavel discute as maneiras de se ganhar o poder, de se manter no poder e de perder o poder. Um manual para o governante. Assim, a primeira pergunta para a análise de A Mandrágora a partir da política poderia ser a seguinte: Como podemos identificar em A Mandrágora as estruturas de poder?



O poder em A Mandrágora é exercido por homens comuns e não pelo príncipe. É preciso relacionar as ações que Maquiavel destaca como sendo características do governante com as ações dos homens comuns que exercem alguma função de comando. Dessa maneira, podemos identificar, em primeiro lugar, o poder de Calímaco. Ele é o patrão, tem muito dinheiro, e faz com que outros personagens, como o interesseiro Ligúrio, por exemplo, orbitem ao seu redor e dependam de seus caprichos. Mesmo quando travestido de especialista em medicina, ele ainda pode ser considerado uma figura de poder. No caso, o poder pelo conhecimento das técnicas para a fertilidade. Outro tipo de poder que é caracterizado na comédia é o da Igreja, representada por Frei Timóteo. Este personagem tem uma enorme influência sobre os outros crentes da história e se utiliza da função religiosa para benefícios próprios. Mesmo Messer Nícia detém um certo poder. No caso, o de chefe de família, determinando os rumos da vida doméstica com Lucrécia. Além disso, este personagem representa o poder econômico ascendente da burguesia.



A emancipação da política frente à moralidade e à religião, um dos temas centrais de O Príncipe, também aparece na comédia de Maquiavel. De fato, o personagem Calímaco está disposto a fazer qualquer coisa para obter o que deseja, mesmo que tenha que ir contra a moralidade tradicional ou os preceitos religiosos. Nas palavras de Calímaco:





“Preciso tentar qualquer coisa, seja grande, seja perigosa, prejudicial ou infame. Antes morrer do que viver assim. Se pudesse dormir à noite, se pudesse alimentar-me, se pudesse conversar, se pudesse achar prazer nalguma coisa, teria mais paciência em esperar pelo tempo. Mais o caso não tem remédio. Se alguma decisão não alentar a esperança, é certo que morrerei; e, sabendo que devo morrer, nada me atemoriza mais e prefiro tomar qualquer decisão, ainda que absurda, cruel ou nefanda.” (Grifo nosso) [1]




Traçando um paralelo com a conquista do poder político, a conquista da mulher amada simboliza igualmente um tipo de poder. Temos um personagem que consegue alcançar seus objetivos. É nesse sentido que Calímaco pode ser considerado um personagem maquiavélico por excelência. Ele não poupará esforços para atingir sua meta [2]. Calculista, tecerá planos mirabolantes, arquitetará jogos de engano, simulará amizades, falseará até mesmo sua própria identidade, tudo para conquistar a mulher amada. Sua ação passa por cima da moralidade cristã tradicional que simplesmente não faz sentido para o mundo real e concreto dos homens. Maquiavel acreditava, profundamente, que o homem não era bom por natureza. Os homens, para este autor, são egoístas e ambiciosos e não tendem a mudar este comportamento. No capítulo XVII de O Príncipe ele diz: “É que os homens geralmente são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ambiciosos de dinheiro.”[3] – e isto, em todos os tempos.



Assim é que o príncipe, na opinião de Maquiavel, pode mentir, matar, roubar e enganar. O que importa é a conquista e manutenção do poder. Ser bom, generoso e sincero pode ser uma condição agradável, mas somente leva à ruína aqueles que pretendem governar. Há vícios que à primeira vista podem parecer desagradáveis, mas que, no fundo, acabam se transformando em virtudes pois permitem ao príncipe chegar ao poder ou se manter estável no governo. O personagem Calímaco de A Mandrágora parece agir conforme as recomendações que podem ser lidas no texto político de O Príncipe.



Existem dois conceitos na obra O Príncipe que parecem caracterizar a construção dos personagens de A Mandrágora: a fortuna e a virtù[4]. Fortuna e virtù dividem a vida dos homens. A fortuna é a chave de êxito da política, mas corresponde aquela parte que não pode ser governada pelo homem. Ela proporciona a ocasião, a oportunidade, que deve ser aproveitada pelo homem de virtù. Ela pode ser a sorte ou o azar de um homem. A virtù, por outro lado, era saber aproveitar o momento mais propício para a ação.



Maquiavel, no Príncipe, utiliza uma metáfora para explicar os dois conceitos, a metáfora do rio. A fortuna é um rio impetuoso que pode devastar tudo que o homem criou. Porém, o homem de virtù pode se prevenir usando diques e barragens para que o rio não destrua tudo que encontra pela frente.



É preciso não confundir virtù com virtude. Virtude, no sentido cristão, prega a bondade que será recompensada nos céus. A virtù de Maquiavel pode se antepor veementemente contra a bondade e não é uma esperança de salvação, mas uma ação efetiva do homem na Terra, em busca do poder. Um príncipe de virtù não depende dos outros, que são instáveis e aproveitadores, mas de si mesmo. A leitura desses conceitos de Maquiavel por Lefort é extremamente original. Segundo este filósofo:





“Certamente essa virtù é definida como antítese da Fortuna; é o poder de subtrair-se à desordem dos acontecimentos, elevar-se acima do tempo que, como aprendemos, enxota tudo à sua frente, é agarrar a Ocasião e, portanto, conhecê-la, é enfim, segundo a palavra do autor, introduzir uma forma numa matéria“[5]





Pode-se dizer que a virtù diz respeito ao tamanho da ambição do homem e de sua capacidade de estar à altura de sua própria ambição.



Certamente Calímaco, personagem principal da comédia de Maquiavel, é um homem de virtù. Ele sabe se aproveitar da fortuna, no caso, o fato de Messer Nícia e Lucrécia não conseguirem ter filhos, em benefício próprio. A fortuna parece estar do seu lado desde o início da peça. Porém, é somente por ser um homem de virtù que Calímaco conseguirá o amor de Lucrécia. Ele tece um plano extremamente bem calculado e o executa no momento mais apropriado para a ação.



Ligúrio, o aproveitador, também pode ser considerado um homem de virtù dentro da estrutura da peça. Apesar de ser um personagem secundário, são seus planos que acabam convencendo Calímaco de que é possível a conquista de Lucrécia. Como malandro profissional, Ligúrio também se aproveita da paixão de Calímaco por Lucrécia para receber benefícios em troca de seus conselhos. Ele se aproveita da fortuna, no caso, o fato de Calímaco estar profundamente apaixonado por uma mulher casada, para conseguir benefícios.



Messer Nícia, por outro lado, pode ser considerado o exemplo do homem sem virtù. Ele é uma figura engraçada porque quer ser astuto, malandro, onde existem astuciosos maiores. Ele tem um objetivo, ter um herdeiro, mas não consegue perceber que está sendo enganado pelos outros personagens. Sua patetice é considerável e Maquiavel parece ter construído este personagem tendo em vista seu caráter cômico. Como conhecedor das leis, era de se esperar que Messer Nícia fosse um personagem mais astuto, mais articulado. Mas o fato é que ele representa, de certa maneira, toda a classe burguesa ascendente do tempo de Maquiavel. A risada do público era sincera quando este personagem entrava em cena, mas, no entanto, talvez existisse um riso meio nervoso, afinal, Maquiavel destilava toda a crítica à burguesia na construção desse personagem caricato.



Para Maquiavel, que era um tanto quanto machista, como podemos perceber pela leitura de O Príncipe, era impossível que uma mulher pudesse ter uma posição de comando, ou determinar completamente os rumos de sua própria vida. Assim é que Lucrécia não pode ser pensada, de forma alguma, como uma personagem de virtù. Este atributo estaria destinado apenas aos homens. No entanto, há algo de interessante no comportamento de Lucrécia ao longo da peça. Ela inicia a comédia como uma mulher belíssima que é completamente inacessível, afinal era casada e virtuosíssima – seguia os ditames da Igreja Cristã –, e termina a peça como uma mulher que se entrega a uma relação de adultério. Podemos ler nessa atitude de Lucrécia uma certa crítica aos costumes. Mesmo sendo uma mulher virtuosíssima, como reiteradas vezes Maquiavel nos faz acreditar, ela vai, até o fim da peça, alterar seu comportamento frente à moralidade cristã. Obviamente, isto é um pensamento tipicamente maquiavélico: mesmo os virtuosos podem sucumbir aos vícios. Uma das falas finais da comédia traduz de maneira muito interessante essa transformação de Lucrécia:



“Já que a tua astúcia, a tolice de meu marido, a ingenuidade de minha mãe e a maldade de meu confessor me levaram a fazer aquilo que, sozinha, nunca faria, quero julgar que tudo provenha de uma disposição do céu, que assim determinasse, e não me sinto suficiente para recusar o que o céu quer que eu aceite. Portanto, eu te tomo por senhor, patrono e guia; é meu pai, meu defensor e quero que sejas todo o meu bem. E aquilo que meu marido quis por uma noite, entendo que o tenha sempre. Procurarás, por isto, tornar-te seu compadre, virás esta manhã à igreja e, dali, depois, almoçar conosco. Dependerá de ti frequentares a nossa casa a teu talante e poderemos estar juntos a todas as horas e sem suspeitas.”[6]





Frei Timóteo já é um personagem mais complexo. Ele entende desde o início o embuste de Ligúrio e Calímaco e apesar disso resolve se associar a estes personagens. Tudo em troca de dinheiro. O que ele justifica, prontamente, meio que enganando a si mesmo, ser dinheiro necessário para ajudar os outros. Em algumas passagens da peça ele chega quase a se arrepender do papel que irá tomar dentro dos planos de Calímaco, mas, logo após, ele sempre distorce ligeiramente os fatos e suas ações de modo a tornar seu comportamento menos reprovável [7]. Sua argumentação para que Lucrécia se deite com outro homem é uma sucessão de interpretações distorcidas da tradição cristã. E, em algumas passagens, temos a nítida impressão de talvez estarmos lendo o livro errado e, ao invés da leitura de A Mandrágora, estarmos lendo O Príncipe, como no exemplo abaixo, que faz parte da argumentação para que Lucrécia siga o seu conselho:



“Há muitas coisas que, de longe, parecem terríveis, inadmissíveis, estranhas; mas, quando delas nos acercamos, revelam-se humanas, aceitáveis, corriqueiras. Por isto se diz serem os sustos maiores do que os males.” [8]



A passagem em que Frei Timóteo argumenta com Lucrécia é, certamente, um dos pontos altos da comédia. Dois argumentos religiosos, devidamente distorcidos, sobressaem ao meio da conversa. Em primeiro lugar a proposição de que é “a vontade é quem peca e não o corpo” [9]. Segundo esta proposição, Lucrécia continuaria virtuosa mesmo depois de deitar-se com outro homem, pois, seria apenas o seu corpo e não sua vontade que estaria em jogo. Como a frase aponta para o livre-arbítrio, o homem só é responsável por aquilo que efetivamente desejou. Lucrécia não tinha interesse em ter com outro homem e, por isso, estaria plenamente absolvida, ou melhor, não teria cometido pecado algum. Em segundo lugar vem o argumento machista, típico de Maquiavel, que consiste no seguinte: pecado é Lucrécia descontentar seu marido. De acordo com esta argumentação, a mulher deve obedecer ao marido em todas as situações. O que poderia parecer um pecado, dormir com outro homem, é afastado na medida em que corresponde à vontade do próprio marido de Lucrécia. Curiosamente, é um caso de adultério plenamente consentido. Claro que seria preciso ser um perfeito palerma para aceitar tal situação, como é Messer Nícia, mas ao mesmo tempo seria também necessário uma mulher extremamente influenciável para ser convencida com esse argumento tão desajeitado.



Não é preciso muito para perceber que Maquiavel concentrava em Frei Timóteo toda uma crítica à Igreja Cristã. Desde sua corrupção – Frei Timóteo forja seu conselho à Lucrécia pelo dinheiro de Calímaco – até um questionamento profundo da utilidade de seus preceitos para o mundo real, o mundo da prática e da ação, onde vivem homens reais que, em sua média, são egoístas e ambiciosos. Melhor, Maquiavel denunciava que a própria Igreja, exclusiva portadora do discurso da moralidade na época, era ambiciosa e egoísta. Como A Mandrágora era uma comédia, o curioso era que ao rir dos argumentos de Frei Timóteo, de sua corrupção, a plateia estava, ao mesmo tempo, rindo da Igreja. E bem sabemos que o riso é uma forma de contestação.



O fim da peça é extremamente original para os padrões da época. Nas comédias, depois das atribulações, o final era geralmente uma grande festa, quase sempre de casamento [10] em que tudo ficava resolvido e as artimanhas eram elucidadas, os enganos eram desfeitos e os personagens bons triunfavam de alguma maneira e os maus pagavam caro por suas maldades. Ocorre que A Mandrágora não é uma comédia, por assim dizer, convencional. Seus personagens são complexos e temos dificuldade em estabelecer o bem e o mal. Certamente mentir, ser corrupto, se entregar ao adultério, parecem inicialmente ser coisas ruins, mas, ao mesmo tempo, quem poderia negar que nos identificamos, ao longo da peça, com Calímaco e suas artimanhas para conquistar a mulher amada? Por outro lado, Messer Nícia é o personagem que não faz mal a ninguém, tem um objetivo legítimo e, ao mesmo tempo, quem poderia negar que seu fim – a ignorância completa de que está sendo e será enganado – contenta as plateias, em geral.



Ele em nenhum momento percebe que é vítima de um embuste. Talvez Maquiavel quisesse demonstrar com esse personagem que o mundo é duro, cínico, prático, é um lugar onde somente sobrevivem os mais espertos. A peça parece pôr em xeque nossa moralidade tradicional ao inviabilizar uma leitura plana e segura do bem e do mal que parecem se inverter constantemente ao longo dos atos. O fim de Messer Nícia, ser traído por sua mulher, é um exemplo claro da aplicação de conceitos da política de Maquiavel na peça: “…um homem que quiser fazer profissão de bondade é natural que se arruíne entre tantos que são maus.” [11]



Não é à toa, portanto, que Maquiavel ficou conhecido por suas ideias políticas não convencionais. Em geral, quando falamos desse escritor, logo o associamos a palavras como falsidade, astúcia, cálculo, perfídia. De fato, essas palavras parecem realmente apontar para o pensamento de Maquiavel. Suas ideias causaram um impacto tão grande no pensamento político ocidental, que a maioria dos países incorporou um adjetivo em seus dicionários para caracterizar certas condutas humanas: maquiavélico. É muito comum, inclusive, que se atribua uma frase – “Os fins justificam os meios.” – ao escritor que, apesar de efetivamente, como se viu, resumir seu pensamento, nunca foi escrita em suas obras. É na Mandrágora, uma peça de teatro, e não nas obras políticas do autor que, entretanto, podemos encontrar uma frase que se aproxima o mais possível da famosa suposta frase imoral de Maquiavel. A frase é dita por Frei Timóteo e assim reza: “Além disso, deve-se, em todas as coisas considerar o seu fim…” [12] Levando esta frase a sério, talvez poderíamos dizer com certa segurança, que o fim de discutir o poder, a moral, a religião estava plenamente sendo obedecido por um meio, na verdade, um meio de comunicação não convencional para o discurso político: o teatro. Como para Maquiavel, qualquer meio pode ser legítimo, desde que se alcance o objetivo proposto, A Mandrágora certamente correspondeu às expectativas do autor. Mas claro que para isso é preciso enxergar a referida peça para além do conteúdo estético, que, por sinal, tem o seu valor, e encontrar na trama e construção dos personagens os elementos de poder que caracterizam a vida política.



BIBLIOGRAFIA



ARAÚJO, Rafael. “A mandrágora: poder, liberdade e condição humana” In: Arte e Política, organizado por Miguel Chaia. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007.



LEFORT, Claude. “Sobre a lógica da força” In: O pensamento político clássico, organizado por Célia Galvão Quirino e Maria Teresa Sadek R. de Souza. São Paulo: TAQ Editor, 1980.



MAQUIAVEL, Nicolau. A Mandrágora. São Paulo: Abril Cultural, 1976.



___________. O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural,1973.



SADEK, Maria Tereza. “Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtù” In: Os clássicos da política – vol. 1, organizado por Francisco C. Weffort. São Paulo: Editora Ática, 2006.



NOTAS




[1] MAQUIAVEL, Nicolau. A Mandrágora. São Paulo: Abril Cultural, 1976, p. 29-30.

[2] Cf. ARAÚJO, Rafael. “A mandrágora: poder, liberdade e condição humana” In: Arte e Política, organizado por Miguel Chaia. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007, p. 122.

[3] MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural,1973, Cap XV, p. 76.

[4] É preciso esclarecer que “fortuna” não tem qualquer significado monetário para Maquiavel. Assim como “virtù” também não pode ser entendida como “virtude”, pois, não diz respeito a uma excelência moral ou disposição para o bem. Para evitar a confusão entre o conceito de “virtù” de Maquiavel e a “virtude” no sentido cristão, usaremos o original italiano “virtù” para se referir ao conceito de Maquiavel e “virtude” para falar da moralidade cristã. 

[5] LEFORT, Claude. “Sobre a lógica da força” In: O pensamento político clássico, organizado por Célia Galvão Quirino e Maria Teresa Sadek R. de Souza. São Paulo: TAQ Editor, 1980, p. 44.

[6] MAQUIAVEL, Nicolau. A Mandrágora. São Paulo: Abril Cultural, 1976, p. 134-135.

[7] Como no seguinte exemplo: “Falam a verdade os que dizem que as más companhias levam o homem à forca. E, a miúdo, acaba uma pessoa saindo-se mal, quer por ser demasiado complacente e bondosa, quer por ser demasiado malvada. Sabe Deus que eu não pensava em causar mal a ninguém. Estava na minha cela, rezava o meu ofício, cuidava dos meus devotos. Surgiu-me pela frente esse diabo do Ligúrio, que me fez molhar o dedo num erro, onde acabei por mergulhar o braço e o corpo todo, sem que ainda saiba aonde irei parar. Consolo-me, todavia, pensando que, quando uma coisa a muitos importa, muitos são os que devem cuidar dela.” (MAQUIAVEL, Nicolau. A Mandrágora. São Paulo: Abril Cultural, 1976, p. 111)

[8] MAQUIAVEL, op. cit., p. 83

[9] MAQUIAVEL, op. cit., p. 83

[10] MAQUIAVEL, op. cit., p. XXII.

[11] MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural,1973, Cap XV, p. 69.

[12] MAQUIAVEL, A Mandrágora. São Paulo: Abril Cultural, 1976, p. 83.





Rodrigo Suzuki Cintra é filósofo e escritor. Doutor pela USP, Pós-doutor pela Universidade de Coimbra, Portugal. Escreve literatura e ensaios. É membro do Coletivo Zagaia.


Revista #1 Edição 2011


quarta-feira, 21 de junho de 2017

RELEMBRANDO A PASSAGEM DO BERLINER ENSEMBLE PELO BRASIL EM 1997






O encontro entre o Brasil e o Brecht genuíno se deu tardiamente em São Paulo. A companhia teatral Berliner Ensemble apresentou dias 9 e 10 de outubro de 1997 no Teatro Anchieta-Sesc Consolação, a peça "A Resistível Ascensão de Arturo Ui" (Der aufhaltsame Aufstieg des Arturo Ui), de Brecht, em alemão, com tradução simultânea. 




Na quarta, dia 8, às 20h, no Instituto Goethe (rua Lisboa, 974, tel. 011/280-4288), aconteceu uma mesa-redonda intitulada "Brecht e o Berliner Ensemble", com participação do ator Martin Wuttke (que interpreta Ui na montagem do BE), o diretor e ator Stephan Suschke, atual diretor da companhia, e os diretores brasileiros Fernando Peixoto, Marcio Aurélio e Sergio Cavalho. 

O BE trouxe 47 pessoas, entre atores, diretores, cenógrafos e técnicos. 

Foram encontros tardios porque as utopias sociais passaram tanto para um lado como para outro. No Brasil, a classe teatral andava desencantada em busca de soluções mercadológicas. 





Os alemães já não têm pelo dramaturgo Bertolt Brecht (1898-1956) a devoção do passado. Há quem diga que deve tudo, inclusive texto, a sua parceira e mulher, Helene Weigel (1900-1971). Os dois fundaram em 1949 o Berliner Ensemble. Atualmente experimenta uma crise de identidade e de patrocínios. Ainda assim, continua a produzir sucessos. "Arturo Ui" foi a peça de maior êxito em Berlim no ano passado. 






Se o evento tivesse acontecido na década de 50 ou ainda no começo da de 60, teria tido impacto idêntico ao da Europa capitalista. Esta recebia a visita constante do grupo, que agia como embaixador da cultura alemã oriental. Ou até maior, porque provavelmente os diretores e elencos locais buscariam soluções esteticamente mais interessantes do que o estilo do Teatro do Oprimido, Oficina ou Arena, aqui praticado. 




O BE foi fundado na trilha do sucesso de "Mãe Coragem e seus filhos". A princípio, a companhia não tinha sede. A inauguração oficial do grupo se deu em 12 de novembro de 1949, pouco mais de um mês depois da fundação da República Democrática Alemã. As encenações se fundamentavam no distanciamento crítico, os cenários na penumbra e a utilização de alta tecnologia para a época de ponta, com iluminação programada, som amplificado e truques de palco. Brecht desejava forjar um teatro político, baseado na representação da sociedade em transformação, na dependência de classe da natureza humana, na dialética e na poesia do cotidiano. De sucesso em sucesso, acabou ganhou uma sede em 1954, ocupando e rebatizando o Theater am Shiffbauerdamm. Quando Brecht morreu, o teatro passou a funcionar como propaganda do comunismo alemão, sob a coordenação de Helene. Em, 1959, "Arturo Ui" foi representada pela primeira vez. Uma segunda montagem aconteceu em 1971, com a qual o BE fez sucesso em Paris. 




Ainda nos anos 70 Brecht e o BE viraram fósseis da arte politizada. Então assumiu a direção da companhia a diretora Ruth Berghaus. Seu objetivo foi questionar a dramaturgia ideológica. O fato resultou em sua substituição, em 1977, pelo conciliador Manfred Wekwerth. Nessa época, a contribuição do diretor e dramaturgo Heiner Mülller (1929-1995), discípulo não muito ortodoxo de Brecht, foi essencial para desautomatizar a tradição realista-socialista do elenco e dos direotores. O BE passou de teatro estatal para companhia em 1993, com direçãode Mathias Langhoff, Fritz Marquardt , Peter Zadek, Peter Palitasch e Heiner Müller.





A figura dominante foi Müller. Na sanha de infundir experimentalismo, ele terminou criando um catálogo de desencanto apocalíptico, forçando os elencos ao sacrifício e à ascese. Era um Antunes Filho sem crenças. Sua última direção aconteceu com "Arturo Ui", estreada em Chicago em julho de 1995. Morreu de câncer durante a temporada berlinense, em 28 de dezembro de 1995. A montagem estrelada por Wuttke, hoje com 35 anos, aluno de Müller, é mais uma desconstrução do que a fábula edificante e anti-hitlerista proposta por Brecht. "O interessante não é Brecht como iluminista´´, disse, à época dos primeiros ensaios de "Arturo Ui´´, no inicio de 1995. "O importante é despertar a incompreensão´´. 





Mas nem mesmo o autor era muito convicto dos resultados didáticos da obra, escrita em 1941 durante o seu exílio na Finlândia. Tanto que ele preferiu não fazê-la representar. "Arturo Ui´´ só viria a ser encenada três aos depois da morte do dramaturgo, tendo o ator Ekkehard Schall no papel-titulo. A montagem foi elogiada pela crítica oficial como "uma exemplo maravilhoso e inesquecível de teatro político´´. Brecht se referia ao enredo da peça como "a história do gângster que todos nós conhecemos". Mascara uma paródia a Hitler. Conforme o subtítulo, é "uma parábola´´. Trata da trajetória do gângster Arturo Ui, pontífice do cartel da couve-flor da folclórica Chicago dos anos 20. Nascido no Bronx, Ui inicia como lacaio, mas vai eliminando os amigos e concorrentes, até conquistar a chefia. A luta de poder de Ui remete à ascensão de Hitler. Ele assassina a concorrência e fica famoso. Quer naturalmente galgar mais postos e se revela descontente com a repercussão e a falta de memória do povo: "Ninguém mais fala de mim. A cidade não tem memória. A fama aqui tem vida curta. Dois meses sem assassinato, e já se esquecem da gente (folheando os jornais). Quando a mauser se cala, cala-se a imprensa. Mesmo que eu forneça assassinatos, não posso nunca ter certeza de que isso será publicado. Pois não é a ação que vale, mas sim a influência. E esta depende da minha conta bancária. Resumindo: as coisas chegaram a tal ponto que à vezes eu tenho vontade de largar tudo´´. Vilão grotesco e vitimizado, Ui provoca a empatia do público. Brecht queria evitar a situação e enfiou uma voz em off para concluir a peça numa advertência edificante: "Vocês, porém, aprendam como se vê em vez de olhar fixo, e como agir em vez de falar e falar. Uma coisa dessas chegou quase a governar o mundo! Os povos conseguiram dominá-lo, porém, que ninguém saia por aí triunfando precipitadamente - é fértil ainda o colo que o criou!´´ . Müller limou esta parte e deixou Wuttke criar um tipo clownesco e levemente stalinista. Sempre irônico, o diretor intuiu também o efeito deslocador da peça e procurou explorar o charme natural do ditador. "Se Hitler se torna incompreensível, revela-se como força da natureza. Quem quiser entendê-lo não pode ter preconceito. É preciso aprender a espantar-se com ele´´. 





Müller quis provar que nem sempre os conflitos são sociais e fundados na luta de classes, como gostaria Brecht. Constrói uma cena irreal, com elementos de paródia e alegoria. Os gestos dos atores têm a brusquidão das marionetes. Os objetos parecem mais vivos do que o elenco. Na pele de Ui, Martin Wuttke extrapola no histrionismo e na brincadeira vocal. Não compõe Ui imitando diretamente Hitler como, por exemplo, Charles Chaplin no filme "O Grande Ditador´´, de 1940, paródia a Hitler quase contemporânea da realizada em escrita por Brecht. Wuttke recondiciona o tipo, tira-lhe o bigode, altera o cabelo e lembra um antor pop. Refunde um Hitler-Stalin contemporâneo, que provoca gargalhadas, paixões e indignação.




Luís Antônio Giron