terça-feira, 26 de março de 2019

DIDEROT E O TEATRO





Denis Diderot (1713-1784)


(Louis Michel van Loo - Retrato de Denis Diderot pintado em 1757)


Paradoxo do Comediante





Diderot foi e ainda é muito contestado por suas idéias e trabalhos. Se lhe 
resta um mérito indiscutível, talvez seja este: foi o primeiro a escrever um 
ensaio relevante sobre o trabalho do ator. O "Paradoxo do Comediante" já um tanto superado, ainda resiste como registro e provocação, como obra 
precursora de um debate que viria a ser central em nosso século. A seguir, 
um pequeno trecho do Paradoxo, obra construída em forma de diálogos:


"PRIMEIRO - Um grande ator não é nem um piano-forte, nem uma harpa, nem um cravo, nem um violino, nem um violoncelo, não existe um acorde que lhe seja próprio; mas ele toma o acorde e o tom que mais convêm à sua parte. E sabe executar todas. Tenho em grande conta o talento de um grande ator: esse 
homem é raro, tão raro e talvez maior que o poeta. Aquele que na sociedade se propõe a tal, e tem o infeliz talento de agradar a todos, não é nada, não tem nada que lhe pertença, que o distinga, que entusiasme uns e que canse os outros. Ele fala sempre, e sempre bem; é um adulador profissional, é um grande cortesão, é um grande ator. 

SEGUNDO - Um grande cortesão, acostumado desde que respira ao papel de um fantoche maravilhoso, toma toda a espécie de formas, segundo a vontade do fio que está entre as mãos do seu senhor.
 
PRIMEIRO - Um grande ator é outro fantoche maravilhoso cujo fio é seguro pelo poeta, e a quem ele indica a cada verso qual a forma verdadeira que deve tomar."




Feita essa introdução, leia o artigo de 

Porfírio Amarilla 

(Filósofo pela USP/FFLCH)



A verdade paradoxal do Comediante em Diderot 




Um dos aspectos mais relevantes das obras de Diderot (1713-1784) é a questão que ele propõe sobre as atividades do teatro francês e do ator de teatro. Para o primeiro, Diderot irá investir criticamente contra a estética que se apresenta, isto é, o teatro francês é inócuo, não suscita emoções, é convencional e incapaz de criar uma ilusão naquele que ao assiste e, por isso, peca pela artificialidade que se apresenta ao público. Ainda, regido por regras arbitrárias, o teatro francês é racional, discursivo e se expressa apenas para poucos espectadores, "escrito em um estilo alambicado, obscuro, tortuoso, empolado, está cheia de idéias comuns" (Diderot, René. Paradoxo sobre o comediante in A Filosofia de Diderot, Editora Cultrix, p. 165) 

Embora se encontrem opiniões sobre os textos de Diderot que convergem para sentidos opostos, umas dizendo que a sua obra é entrecortada por inclinações opostas, outras dizendo que as inclinações se alteram no decorrer dos escritos, pois os objetos mudam e por isso as idéias, que por si só são pontos de reflexão e plenas de atividades, mudam de acordo com a complexidade do objeto, há uma insistência e constância nas suas concepções teóricas. Para Diderot, em toda a sua trajetória, a função do teatro continua a mesma, isto é, a arte cênica é a imitação da própria vida; a realidade com qual a platéia deve se fundir, um a outro, a ponto de tomar para si a ficção pela realidade. O teatro ultrapassa a barreira do preconceito e do mero entretenimento, Diderot acredita que este deve transtornar o espectador ao ponto de abalar e causar-lhe um efeito duradouro, uma impressão que não se dilua após o espetáculo. O filósofo e dramaturgo participa um teatro como meio de comunicação, inspirado e desempenhado a favor de uma moral social, que possa agir sobre o público a partir de uma estética bem elaborada que suscite emoções de certo modo permanente no espectador, fazendo vir à tona a finalidade comum das artes, que é: "fazer com que o homem ame a virtude e odeie o vício" (Matos, Franklin de, O Filósofo e o Comediante, Ed UFMG, p.29). 

Desse modo, nesta trajetória, surge uma dramaturgia na obra de Diderot que promove a observação da natureza, não da natureza por ela mesma, mas uma observação refletida sobre modelos ideais, que ao reproduzi-los autor e ator se apliquem com ênfase na movimentação estilizada ao que é natural e ao abandono da proporção e da simetria. Pois, se por um lado o discurso elaborado é agradável aos ouvidos, por outro ordena as coisas e inibe as paixões. Assim, "compete à natureza dar as qualidades da pessoa, a figura, a voz, o julgamento, a sutileza. Compete ao estudo dos grandes modelos, ao conhecimento do coração humano, à prática do mundo, ao trabalho assíduo, à experiência e ao hábito do teatro, aperfeiçoar o dom da natureza. " (Diderot, opus cit, p. 165). Embora, como comenta o professor Franklin de Matos, este movimento da estética de Diderot nasça de um conceito de mimesis que se baseia na sensibilidade, espontaneidade, entusiasmo e se inclina, devido à experiência, quer como dramaturgo, quer como critico de arte; para a frieza, tranqüilidade e penetração, Diderot não abandona a sua crítica principal ao teatro clássico francês e a proposta de uma reforma da cena teatral. 

Para o segundo, retomando: o ator, Diderot afirma: "o comediante que representar com deliberação, com estudo da natureza, com imitação constante segundo algum modelo ideal, com imaginação, com memória, será um e o mesmo em todas as representações, sempre igualmente perfeito, tudo foi medido, combinado, apreendido, ordenado em sua cabeça (...)Ele não será desigual: é um espelho sempre disposto a mostrar objeto e a mostrá-los com a mesma precisão, a mesma força e a mesma verdade" (Diderot, opus cit, p. 167-168). Em suma, o autor pode ser em si mesmo verdadeiro sendo outro. À medida que o ator se apresenta frio, tranqüilo e compenetrado, mais ele terá o controle e domínios das suas emoções e assim, formando o paradoxo, ele poderá representar (imitar) de modo verdadeiro as emoções da personagem diante do público. 

O teatro é visto, neste momento das reflexões de Diderot, como um teatro das inflexões, que privilegia os componentes pré-verbais, isto é, a desarticulação de idéias, os monossílabos, os ruídos, os gritos, o que coloca a palavra em segundo plano com a ascensão das emoções. Mas isto não tira das mãos do poeta o valor da sua composição? Não, apesar do paradoxo que se forma mais uma vez, desde que o teatro seja visto como a voz do discurso do poeta, este movimento em verdade aproxima o ator da energia das palavras e das cenas que são postas aos seus cuidados, o verdadeiro palco, afirma Diderot, "é a conformidade das ações, dos discursos, da figura, da voz, do movimento, do gesto, com um modelo ideal imaginado pelo poeta, e muitas vezes exagerado pelo comediante. Eis o maravilhoso" (Diderot, opus cit, p. 175). Ainda que nenhuma língua seja capaz de dar conta da delicadeza e diversidade de uma emoção, as palavras do poeta, na perspectiva de Diderot, emergem da motricidade corporal com que o ator as representa no palco, a emoção brota da realidade observada e escrita pelo poeta, que pode agora indicar a energia passional que o seu texto exprime. O paradoxo de Diderot envolve duas "verdades" que aparentemente se afastam, mas que, de fato, se harmonizam a favor da perfeição. A perfeição das obras se medem pelo seu poder de iludir (Matos, Franklin de, opus cit, p.38), isto é, a cena de teatro perfeita é aquela que o público toma como verdadeira, sendo em si uma ilusão. 





segunda-feira, 18 de março de 2019

UM CREDOR DA FAZENDA NACIONAL, de Qorpo Santo




(Qorpo Santo - por Edu Oliveira)


UM CREDOR DA FAZENDA NACIONAL

Qorpo-Santo


PERSONAGENS:
Credor
Porteiro
Um Major
Um Contínuo
Empregados da repartição
Outro credor
Leopoldino ,Contador
Chefe de secção
Sr. Barbosa


ATO PRIMEIRO


UM  CREDOR – (entrando em  uma repartição pública; para o Porteiro) – Está o Sr.
Inspetor?
PORTEIRO – Está; mas não se lhe pode agora falar.
CREDOR – Por quê?
PORTEIRO – Está muito ocupado!

CREDOR – Em quê?

PORTEIRO – Tem gente aí com ele.
CREDOR – Quem é?
PORTEIRO – Um Major!

CREDOR – Demorar-se-á muito?

PORTEIRO – Ignoro.
CREDOR – Pois diga-lhe que lhe quero falar!
PORTEIRO – Não posso ir lá agora.
CREDOR – Quantas horas estarei eu aqui à espera que o Sr. Major saia para que eu entre!
(Passeia) .(O MAJOR, saindo e encontrando-se com o Credor.) 

CREDOR (para o MAJOR) – Oh! O Sr. por aqui! Julgava-o quem sabe onde! Disseram-me que tinha ido para Rio Pardo há dias!
MAJOR – Tenho tido aqui numerosos afazeres, por isso não sei quando irei.
CREDOR – Fique certo que sinto o mais vivo prazer em vê-lo no gozo da mais perfeita
saúde.

MAJOR – Onde é aqui a tesouraria?

CREDOR – Na Tesouraria estamos; mas o Tesoureiro está lá embaixo.

PORTEIRO – Lá, não; lá está o pagador!

CREDOR – Ah! Então é cá em cima; porém nos fundos; creio que na última sala.
MAJOR – Então para lá vou. (Segue.)
CREDOR – Agora entro eu. (Dirigindo-se à repartição.)
PORTEIRO – Está lá o Sr. Leopoldino Contador!
CREDOR – Ë célebre! Então vou à secção respectiva saber se foi informado o meu
requerimento! (Caminha, e entra.)
PORTEIRO – Que diabo de homem este! Tem vindo mais de um cento de vezes à
repartição... se há de...
CONTÍNUO – Faz ele muito bem [em] vir cá ! Deve-se-lhe, por que não se lhe há de
pagar?
CONTÍNUO – Homem; isso é verdade! Qual a razão por que esta repartição há de paliar meses e anos!?
PORTEIRO – Custa a crer a retardação de pagamento ou a preguinha, segundo dizem
alguns empregados!
CONTÍNUO – O caso é que ele tem procedido sempre com a maior prudência!
PORTEIRO – Isso é verdade. Mas quantos terão sofrido pela falta de cumprimento de
deveres de alguns funcionários públicos?
CONTÍNUO – Ë verdade! Tem havido tantos males, que enumerá-los talvez fosse
impossível.
PORTEIRO – Mas tu sabes o que os empregados querem? Talvez não saibas. Pois eu te digo: 
                          – Acabar com a Monarquia  Constitucional e Representativa!
2º - Pôr termo às repartições públicas; isto é, acabarem com todas estas
imposturas!
3º- Mudar a forma de governo para República.
                        4º- Fazerem uma liga entre todos que...
CONTÍNUO – (pondo as mãos na cabeça e puxando as orelhas) – Estás louco! Homem! D’onde vieram-te esses pensamentos!? Se não mudas de modo de pensar, vais parar à Caridade.
PORTEIRO – Ah! Tu não ouves! És surdo!  Não vês. Tens olhos e não enxergas!
Ouvidos, e não ouves! Só falas! Tu verás a revolução que em breve se há de operar! Olha; eu estou  vendo o dia em que entra por aqui uma força armada; vai aos cofres, papéis. e rouba quanto neles se acha. Acende um facho, e laça fogo em tudo quanto é papéis.
CONTÍNUO – (a correr) – Ih! Ih! Ih! Parece que já estou ouvindo o tinir das espadas! A voz do canhão troar. Deus meu! Acudi-me! Ai! Que eu morro! (Cai sentado.)Ai! Ai! Estou cansado! Fadigado! Quase... Meu Deus! Quantas mortes vos aprazerá  ainda  fazer!? Quando vos compadecereis de vossos entes ainda que maus!? Quando se aplacará a vossa ira!?  Quando se saciará a vossa vingança! Céus! Que vejo! (Como amparado com as mãos;  pondo o corpo de lado; ao ouvir o som da trovoada que em cima se faz.) Ah!...
PORTEIRO -  (querendo acudi-lo) – Não é nada, companheiro e amigo! São os primeiros preparativos para a estralada que logo mais terá de ver e ouvir. Tranqüiliza o teu coração. Ainda não desceram raios, fogo, e tudo o mais que se há preparado para grande revolução! Começará de cima; e descerá à terra, como a saraiva em certos dias chuvosos. (Ouve-se nova trovoada; relâmpagos.)
CONTÍNUO – (melhorando pouco; e levantado-se)- Acho-me um pouco mais animado? Parece-me que isto não é comigo. Que dizes? Hem? (batendo no ombro do porteiro.) Que diabo, pois eu nada fiz, o que devo temer!? Sou muito pusilânime.

PORTEIRO – Tu sempre foste um poltrão. De tudo te assustas; de tudo tens medo! Diabo! (Empurra-o) Toma juízo! Deixa-te de...

CONTÍNUO – Ora, ora! E não entendo o que é ter juízo, pelo que vejo, e pelo que ouço. Vivo em minha casa. Trabalho incessantemente em proveito meu, e da minha

família. Não ofendo a pessoa alguma! Sucede-me isto! Dizei-me: - O que é ter juízo?

PORTEIRO – Ter juízo é cometer... e... ai!ai! (pondo as mãos no rosto) que também estou ficando doente!

CREDOR (voltando) – Ainda hoje não recebo dinheiro! Prometeu-me um Empregado, e a mais um indivíduo que espera... Como de... (Sai.) Veremos se se pode receber segunda-feira!

UM DOS EMPREGADOS Por que razão não se há de pagar a este homem!?

OUTROEu sei disso!?

CREDOR –(voltando) – Não    tenho melhor resolução a tomar, que a de sentar-me em

uma das cadeiras desta repartição e nela esperar até que se me pague.

CERTO INDIVÍDUO – Então, por quê?
CREDOR -  Ora, porque!? Porque não dou um passo que não encontre um ,que não
 me peça o aluguel da casa. Outro, que não me peça... que não me fale!...
O INDIVÍDUO – Tudo isso é bom!
CREDOR – É ; é; para certos indivíduos; para mim é péssimo! Nunca gostei de ser 
atacado em casa, quanto mais pelas ruas da cidade! Todos os que compelem a
honra, ou aos que desejam viver com seriedade, - a essas cenas, - deveriam em minha opinião ficar condenados a idênticos; ou a outros procederes piores, contrários à sua vontade, ou desejos.
O INDIVÍDUO  (com a mão querendo fazer uma cruz) – Resquié d’impace! Resquié
d’impassere; Amem! Amem! N’amem! N’amem! (Saindo). E vou m’embora (Sai)

  

ATO  SEGUNDO

  

Salão em que trabalham diversas secções


CREDOR (entrando) – É a vigésima... não me lembro se quinta ou sétima vez que venho a esta casa haver aluguéis de casa! E talvez ainda hoje saia sem dinheiro! (À parte: ) Mas eles hão de se arranjar! (A um dos empregados, o Contador: ) Vossa Senhoria faz-me o obséquio de dizer se está despachando o conteúdo, ou quer que seja, quando a um requerimento que aqui tenho?
CONTADOR – Será... (lendo)  Castro... Car... Cirilo, Dilermando!?
CREDOR – Não! É um requerimento meu, assinado – José Joaqim de Qampos Leão,
Qorpo-Santo.
CONTADOR – Ah! Esse está no chefe da quarta secção.
CREDOR – Bem, então lá irei.(Dirigindo-se ao chefe: )Faz-me o obséquio de dizer se já está despachado um requerimento que aqui tenho?
CHEFE (apontado) – Fale ali com o Sr. Barbosa.
CREDOR (dirigindo-se a este) – Ainda não encontrou o que procurava a meu respeito?

BARBOSA – Ainda não! Há aqui tantos papéis!

CREDOR – Ora, com efeito! Pois tanto custa ver um ofício da Presidência, ou ver o
assentamento que em virtude desse ofício deve existir no livro competente? Isto é, no mesmo em que se acham debitados tais aluguéis!? (Senta-se.)
CHEFE – V. Exa. Não adianta nada em esperar aqui! Antes atrasa o serviço para conseguir o que quer; deixe estar que está se trabalhando!
CREDOR – Eu, nem venho interromper, nem venho adiantar! Mas apenas saber! Parece-me cousa tão simples; tão fácil...
BARBOSA – São três ofícios da Presidência que o Sr. Inspetor quer ver! Não é um só.
CREDOR – Srs., eu já sei o que hei de fazer, o que os Srs. querem! Voltarei em tempo!
(Ao sair, encontra-se com outro.)     
O OUTRO – Então, não!? (Dá-lhe uma caixa de fósforos.)
CREDOR – Estou doente; e assim fico todas as vezes que venho a esta casa, e dela saio
sem dinheiro!
O OUTRO – Então fico eu pelo Sr.! (O Credor sai; e o Outro entra.)
O OUTRO – Muito custa esta casa pagar a quem deve! Faz-se uma dúzia de requerimentos para se obter um despacho! Cada requerimento leva outra dúzia de informações! O despacho definitivo obtém-se por milagre! E a paga ou dinheiro que a alguém se deve – quase à força, ou pela força!
UM DOS EMPREGADOS – (para esse Indivíduo) – Com efeito! O Sr. é audaz de mais!
O OUTRO – Não! Não é por audácia! É apenas referir o que se passa... o que é verídico!
EMPREGADO – Sim; mas nós não temos culpa!
O OUTRO- Nem eu inculpo a alguém! Mas receio, Srs., que os numerosos incômodos que tenho sofrimento, pelo procedimento que esta repartição para comigo – vai tendo; os vexames; as faltas; as privações; e até as enfermidades que tem me causado e numerosos outros transtornos, farão de repente com que se espalhe fogo nestes papéis – e tudo se incendie (Toca uma caixa de fósforos numa mesa; esta incendeia-se; ele a atira para as mesas de um dos lados; faz o mesmo à outra, e atira para outro lado; enquanto os empregados trabalham para apagar o fogo em alguns papéis que começam a incendiar-se, ele sai.)


(Já se vê que há descompostura; repreensões; atropelamento, carreiras em busca d’ água; ligeireza para se-apagar; aparecimento de alguns outros empregados, ao ouvirem o grito de fogo, etc.

Pode acabar assim; ou com a cena da entrada do Inspector, repreendendo a todos pelo mal que cumprem seus deveres; e terminando por atirarem com livros e penas; atracações e descomposturas etc.)


Por


José Joaquim de Campos Leão Qorpo-Santo.

Em Porto Alegre, de 26 a 27 de Maio de 1866.



Fonte:
LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo). "Um Credor da Fazenda Nacional". Teatro Completo, Guilhermino César (org). Rio de Janeiro : Serviço Nacional de Teatro/ Fundação Nacional de Arte, 1980. p. 137-145 (Clássicos do Teatro Brasileiro, 4).

Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por:
Selma Suely Teixeira - Curitiba/PR

Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para .

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domingo, 10 de março de 2019

LUKASZ GIERANCZYK ESCREVEU:




A IMAGEM EM AÇÃO 

(Honoré Daumier)

O essencial na dramaturgia é imaginar os grandes sentimentos humanos, vivenciá-los e passá-los para o texto através das ações dos personagens. (Luís Alberto de Abreu)* Se você quer aprender a escrever uma peça de teatro pode começar se acalmando: você tem a vida inteira para aprender! Isso quer dizer que não existem regras fixas a serem decoradas. Quer dizer também que existem tantas maneiras de escrever uma peça que se passa a vida inteira aprendendo não como fazer uma peça, mas como fazer melhor! Isso quer dizer também que, no fundo, no fundo, todos nós sabemos como fazer uma peça de teatro. Só não descobrimos essa verdade. Ou não acreditamos nela. Esse foi o jeito que aprendi. E foi esse o jeito que a maioria dos dramaturgos aprenderam. Como é que se faz um ator? Cursando uma escola ou não, um ator só se faz entrando num palco, não é? Com um dramaturgo não é diferente. Como tudo na vida, dramaturgia se aprende fazendo, botando a mão na massa. Bem, então, se não há regras fixas, se todos sabemos fazer uma peça de teatro e se dramaturgia aprende-se fazendo, é só pegar lápis e papel ou uma máquina de escrever ou um computador e sair fazendo? Não. E repito: pode ir se acalmando! E pode ir se preparando para fazer uma coisa que não é difícil mas exige muita atenção e muito trabalho. Em compensação é uma aventura emocionante. AÇÃO! 
(Jean-Antoine Watteau)

Você vai assistir a uma peça, vê, no palco, aquele bando de atores falando, discutindo e acha tão empolgante que resolve, ao chegar em casa, também escrever a sua. Afinal, uma peça de teatro não passa de personagens conversando uns com os outros, certo? Errado! E esse é o mais grave erro que, em geral, se comete. Teatro não é texto, não é diálogos (pelo menos, não é só isso). Teatro é ação! Pronto, começou a complicar! Não, a coisa não é complicada. Só é preciso, repito, um pouco de calma para se entender o que é, de fato, uma peça de teatro. Isso é importante para não se escrever uma “conversa” ou uma poesia ou um conto e imaginar que isso seja uma peça de teatro. É preciso, antes, limpar a área (E isso dá algum trabalho!) para a gente saber que, no final das contas, fazer dramaturgia é algo muito simples. E que no fundo, no fundo, de uma forma ou de outra, todos sabemos como fazer uma peça de teatro. Voltemos ao assunto. O que é ação? Ação é o que se faz. Um grande crítico e estudioso inglês, chamado Eric Bentley definiu o teatro simplesmente como “o que umas pessoas fazem a outras pessoas”. E aqui chegamos a alguma coisa. Fazer algo a alguém ou a si mesmo pressupõe conflito e quanto mais significativo for esse fazer maior a intensidade desse conflito. É diferente alguém fazer outra pessoa comprar um litro de leite na padaria ou fazer alguém matar seu grande amigo. Uma peça de teatro trata desse segundo fazer, desse fazer coisas difíceis, importantes, significativas. Teatro, necessariamente é assim, porque teatro é uma forma breve, concisa, sintética. No curto espaço de tempo de uma, duas ou três horas vislumbramos a trajetória de toda a vida de um personagem. E, como temos pouco tempo, escolhemos as ações mais significativas da trajetória desse personagem, pois são as ações mais significativas que melhor revelam a vida dessa personagem. Voltando: ação é fazer coisas a outros ou a si mesmo. E, principalmente, é fazer coisas significativas. Antes de prosseguir é bom esclarecer: a ação teatral é, fundamentalmente, interna, do coração, da alma. Portanto, não confunda movimentação, correria sobre um palco com ação. Uma pessoa pode estar imóvel sobre uma cadeira e, mesmo assim, vivendo uma ação intensa. Como? Uma lembrança de uma ação passada pode Ihe inspirar uma mágoa intensa ou uma grande felicidade. Bem, aqui chegamos ao ponto central: no interior de nós mesmos. É aí, na morada das nossas mais profundas emoções e alegrias, é onde nasce uma peça de teatro. De resto, é onde nasce qualquer arte. Começou a entender por que eu dizia, a princípio, que, no fundo, todos sabemos como escrever uma peça? Grandes emoções e alegrias. É disso que trata a arte dramática. Se somos capazes de perceber em nós mesmos essas grandes emoções e alegrias estamos prontos para a arte dramática. Só fica faltando aprender a comunicá-las às outras pessoas com a intensidade que as sentimos. E para esse aprendizado temos a vida inteira. IMAGINAÇÃO, IMAGEM EM AÇÃO! Bem, você já sabe que o mais importante numa peça não são os diálogos. Os diálogos são um meio importante para revelar uma série de ações dos personagens. A essa série de ações dá-se o nome de enredo. O enredo, segundo o filósofo Aristóteles, o primeiro que escreveu sobre a estrutura de uma peça de teatro, é a alma da Tragédia. Na comédia, embora esta possua formas diferentes de estruturação, o enredo é também muito importante. Então, comecemos por ele. E, para começo, esqueça o filme que assistiu, a peça que leu, a novela que viu. O processo artístico começa dentro da gente mesmo, na investigação de nossa própria sensibilidade. Procure uma imagem. É necessário que seja uma imagem humana porque teatro é feito através de personagens e atores. É necessário que seja também uma imagem significativa, ou seja, que esse ser humano, cuja imagem você vê, esteja num momento de grande intensidade. Veja o rosto desse ser humano, olhe em seus olhos e abra sua sensibilidade para compreender o que ele está sentindo e o que o levou a este momento intenso. E o que ele vai fazer a partir daí. Pronto, você já está começando a partir de si próprio, a estruturar o seu enredo. Isso quer dizer que para se escrever uma peça é preciso antes, sensibilizar o que está sentindo seu personagem. Sentindo como o personagem, imaginando passar pelos mesmas dificuldades, pelas mesmas grandes emoções e alegrias por que passa um personagem é a melhor forma de começar aprender a fazer uma peça de teatro. É o personagem que nos ensina, é nessa íntima relação com ele que aprendemos. 


FINALMENTE 
(Aristóteles)

O espaço é pequeno e o assunto é extremamente extenso, Mas como afirmava o filósofo grego Heráclito “o ser humano não precisa saber muitas coisas, precisa saber o essencial” O essencial da dramaturgia na minha opinião é imaginar os grandes sentimentos humanos e passar por eles, vivê-los de alguma forma. Se conseguimos isso o passo seguinte é comunicar esses grandes sentimentos através de personagens, ações, palavras, música e espetáculo. O caminho é extenso mas para isso temos a vida toda, Técnica, método, macetes, todo o resto vem com o fazer. E se me permitem alguns conselhos eu os dou porque também me foram dados e me foram muito úteis; leiam os autores clássicos, Eles sabem mais do que nós e, com eles, apuramos nossa sensibilidade que é a melhor forma de aprender. Aprenda com eles mas faça do seu próprio jeito. 

E para quem quiser aprofundar a reflexão sobre a estrutura de uma peça de teatro indico dois livros que para mim foram essenciais: A Poética, de Aristóteles (Os pensadores, Abril Cultural) e A Experiência Viva do Teatro, de Eric Bentley (Zahar Editores) E para finalizar um pensamento de Goethe; 

“Tudo o que quiseres ou te sentires capaz de fazer começa! A ousadia tem gênio, poder e magia.”