quinta-feira, 3 de novembro de 2016

O DRAMATURGO DEVE FUGIR DA VISÃO INGÊNUA DA REALIDADE



Neste blog, enfocamos prioritariamente o teatro, quando falamos de dramaturgia. Mas todas as artes cênicas dependem de um roteiro dramatúrgico, devidamente adaptado às suas características. Um show de música – seja popular, rock, samba, sertanejo etc. ou clássica -; um espetáculo de dança – seja balé clássico ou dança popular; um desfile de escola de samba ou um desfile militar (a passarela ou a rua tornam-se palco); um desfile de modas e até mesmo a festinha das crianças na pré-escola – tudo depende de um roteiro prévio e, por isso, existem ali elementos dramatúrgicos. Pensa-se o espetáculo, a apresentação, da melhor forma possível para que agrade e comova os espectadores.

(The Globe Theatre - desenho de autor não identificado)

Melhor forma: essa a palavra chave. E cito, aqui, como aliás, uso em quase todo o texto que se segue, os ensinamentos do mestre Chico de Assis, o dramaturgo de “Missa Leiga”, sua peça mais conhecida, mas principalmente o grande professor de dramaturgia que ele foi, durante os vários anos do SEMDA – Seminário de Dramaturgia do Arena. A melhor forma é a forma ideal para um determinado espetáculo de dramaturgia. Existe a melhor forma para se escrever para teatro, assim como existe a melhor forma para se escrever um roteiro de show de rock. Contrariar a melhor forma é, quase sempre, fracassar. É claro que a busca da “melhor forma” não inibe a criatividade, a inovação; ao contrário, o desafio do roteirista é exatamente este: dentro da melhor forma, ousar e buscar a surpresa, o encantamento do espectador.

(Chico de Assis)

E usamos acima, de propósito, a palavra “ousar”. Dizia Chico de Assis – e enfatizava sempre isso – que um dos piores males de um roteirista, de um dramaturgo, é a “visão ingênua” do mundo, é não ter capacidade de ver com profundidade o drama humano, não enxergar o abismo, o caos, os elementos que realmente tiram o espectador de sua zona de conforto e o leva a sair da sala do teatro diferente de como entrou. Você nunca será o mesmo depois de ver, mesmo que pela enésima vez, um HAMLET!



Quando invejamos o cinema premiado de nuestros hermanos argentinos, devemos observar que, em primeiro lugar, algo que salta os olhos: a excelência de seus roteiros. Não há filme argentino que não ouse ir fundo na experiência humana, que seja ingênuo em relação à visão de mundo do autor ou das personagens, a ousadia de aprofundar/verticalizar essas personagens de tal modo que, ao final de um filme argentino, o espectador é diferente daquele que entrou no cinema.



Claro que, no Brasil, há filmes de roteiros excelentes e de boa qualidade técnica. Infelizmente, não a maioria. Mergulham nossos roteiristas na ingênua visão de uma das piores espécies de dramaturgia existente: a comédia de costumes. A busca do riso fácil, os personagens estereotipados, as situações que se resolvem como num passe de mágica ou de forma artificial, enfim, há uma série de problemas que têm causado um mal muito grande à nossa dramaturgia voltada para o cinema.



Novelas de televisão. Esse um tema caro à maioria da população, por seu apelo e por sua capacidade de atração de público. Eis uma seara que tem apresentado alguns bons frutos dramatúrgicos, a despeito da longa duração, a despeito do fato de ser uma “obra aberta” aos interesses de patrocinadores e do sucesso de público, medido diariamente por institutos de pesquisa. Não vou citar nomes, para não cometer a injustiça de esquecer vários. Aliás, só vou lembrar um só nome: Dias Gomes. Se você pretende escrever novelas, suas obras devem merecer um estudo aprofundado, pela capacidade de leitura da realidade e de bons diálogos, além, claro, da criatividade, um elemento essencial a uma boa novela de televisão.

(Dias Gomes)


Enfim, termino esse breve texto reafirmando o que eu acho mais importante num roteiro dramatúrgico de qualidade: a visão de mundo do autor. Uma visão de mundo que não deve nunca ter um olhar ingênuo da realidade. E isso só se consegue com amadurecimento (que é algo pessoal, que é algo que cada um alcança até mesmo em idades diferentes e só o tempo oferece) e preparo através de leituras, desde o jornal diário e revistas até livros de filosofia, ciências e tudo o que lhe cair nas mãos. Ou seja, erudição que se transformará, com o tempo, em conhecimento e conhecimento que se transformará naquilo que os alemães chamam de weltanschauung, filosofia de vida, visão de mundo, mundividência. Um roteiro com uma visão de mundo - implícita ou explícita - de seu autor constitui a melhor forma de uma dramaturgia de qualidade. Ponha a sua visão de mundo, a sua maneira de ver a vida e tudo que nos rodeia, em qualquer roteiro que você escreva, desde o esboço de uma festinha de seu filho na pré-escola até o texto teatral de sua vida.



quinta-feira, 26 de maio de 2016

LEDA GALVÃO ESCREVEU...




TEATRO CONTEMPORÂNEO

(Caminho de Damasco, de Strindberg, cena expressionista - 1922)


O Teatro Contemporâneo tem início em 1831 quando Alexandre Dumas monta a peça Antony e sacode Paris. Mais tarde , escreve peças históricas , como por exemplo , A Torre de Nesle.

Alexandre Dumas Filho , adapta em 1849 seu romance Dama das Camélias para o teatro , mas a censura só permite que seja representado em 1852. Durante trinta anos Dumas Filho será o autor mais representado na França.

O término da 1ª. Grande Guerra (1914-1918), entretanto , foi o marco de um grande número de tendências teatrais que visavam como tema-base o engajamento do homem contemporâneo dentro do seu contexto histórico . Luigi Pirandello em Seis Personagens à Procura de um Autor apresenta o homem como um ser angustiado.

O estilo pirandeliano encontrou grande receptividade no meio teatral francês . Mais tarde , o Existencialismo teve em Jean-Paul Sartre e Albert Camus seus principais representantes.

O Surrealismo foi representado por Jean Cocteau. Jean Genet, com O Balcão foi o que mais se aproximou das idéias revolucionárias de Antonin Artaud, o teórico do teatro surrealista.

No pós-surrealismo destaca-se Samuel Beckett, com Esperando Godot.

Eugéne Ionesco cria o anti-teatro em A Cantora Careca em 1950, e sua peça O Rinoceronte é uma grande obra de sátira social.

O Teatro do Absurdo desenvolve-se nos Estados Unidos e Edward Albee retoma em Quem Tem Medo de Virginia Woolf a tradição do drama naturalista.

Na Inglaterra, Harold Pinter em suas peças O Importuno e Volta ao Lar coloca em seus personagens o problema da solidão humana no final da existência.

O Teatro Épico , que teve como objetivo não afastar o expectador da realidade social mas sim estimulá-lo a agir dentro dela, teve em Brecht seu expoente máximo.

Na Alemanha, a influência de Shakespeare se faria sentir nas obras de Goethe na sua mocidade, e que depois se converteria a um classicismo sui generis greco-alemão, tendo sido Fausto o coroamento dessa sua fase artística. Schiller também foi um dos grandes dramaturgos alemães embora realistas e retóricos de todos os tempos o contestem.

Ainda na Alemanha, em 1922 o drama expressionista se desenvolve, usa visões simbólicas e abstratas e se define como oposição ao Naturalismo.

No período de entreguerras (1918-1942), os autores do Expressionismo exploram os estados psicológicos mórbidos e a luta do homem contra a desumanização da sociedade industrial . O mais famoso encenador dessa época é Leopold Jessner, e dentre os dramaturgos destaca-se Georg Kaiser.

Outros dramaturgos contemporâneos , difíceis de enquadrar em determinadas tendências, foram o espanhol Casona, o francês Anouihl e o inglês John Osborne.

 Dramaturgos

(Brecht)

Dario Fo (1926- ) -  Italiano. Peças teatrais : Morte Acidental de um Anarquista , O Diabo Com Tetas , Um Orgasmo Adulto Escapa do Zoológico , Brincando Em Cima Daquilo, Mistério Bufo , Diário de Eva, O Fabuloso Obsceno .

Giovanni Verga (1840-1922) - Italiano. Peças teatrais : Os Malavoglia, Mestre Dom Gesualdo, Novelas Rústicas.

Giuseppe Giacosa (1847-1906) - Italiano. Peças teatrais : O Jogo de Xadrez , O Marido Amante de Sua Mulher , Tristes Amores . Em co-autoria com Luigi Illica escreveu libretos para as óperas de Giácomo Puccini.

Luigi Capuana (1839-1915) - Italiano. Peças teatrais : As Camponesas, Era Uma vez , Jacinta , O Marquês de Roccaverdina.

Luigi Pirandello (1867-1936) - Italiano. Peças teatrais : Uma Coisa Séria , Como Antes , Melhor Do Que Antes ,O Homem , A Besta e a Virtude , O Prazer da Honestidade , Vestir os Nus , Assim é, Se Lhe Parece, Seis Personagens à Procura de Um Autor , Henrique IV, Esta Noite Se Improvisa , O Homem Com a Flor na Boca ( monólogo ), A Verdade de Cada Um , Quando Se É Alguém , Lázaro , A Nova Colônia , Gigante das Montanhas ( inacabada ).

Ugo Betti (1892-1953) - Italiano. Peças teatrais : Corrupção No Palácio da Justiça, Crime na Ilha das Cabras , A Rainha e os Rebeldes, Os Nossos Sonhos .

Albert Camus (1913-1960) - Francês. Peças teatrais : Calígula, Oração Para Uma Negra (em co-autoria com Faulkner).

Alfred Jarry (1873-1907) - Francês. Peças teatrais : Ubu-Rei (uma série de peças).

Alexandre Dumas (1802-1870) - Francês. Peças teatrais : Antony, A Torre de Nesle, Kean ou O Gênio da Desordem, Os Três Mosqueteiros, O Conde de Monte Cristo , Catarina Howard, Ricardo D´Arlington, David de la Pelleterie.

Alexandre Dumas Filho (1824-1895) - Francês. Peças teatrais : A Dama das Camélias , Questão de Dinheiro , O Estrangeiro , Denise, Francillon.

Antonin Artaud (1896-1948) - Francês. Peças teatrais : O Teatro da Crueldade , Heliógabale, Os Cenci, O Teatro e seu Duplo , Pra Dar um Fim no Juízo de Deus.

François Billetdoux (1927 - ) - Francês. Peças teatrais : A Noite, à Noite, O Comportamento do Casal Bredhurry.

Georges Bernanos (1888 1948) - Francês. Peças teatrais : Diálogo das Carmelitas , Sob o Sol de Satanás, Diário de um Pároco de Aldeia , A Alegria .

Henri de Montherlant (1896-1972) - Francês. Peças teatrais : O Caos e a Noite , A Rainha Morta, Port-Royal.

Jacques Audiberti (1899-1965) - Francês. Peças teatrais : O Mal Corre, A Formiga no Corpo , A Guilhotina.

Jean Anouilh (1910-1987) - Francês. Peças teatrais : Orquestra de Senhoritas, O Baile dos Ladrões, Antígona, O Amor Punido, O Viajante Sem Bagagens, A Cotovia, Beckett ou A Honra de Deus.

Jean Cocteau (1889-1963) - Francês. Peças teatrais : A Máquina Infernal, A Voz Humana (monólogo ), A Máquina de Escrever , O Belo Indiferente.

Jean Genet (1910-1986) - Francês. Peças teatrais : Nossa Senhora das Flores, Querelle, As Criadas, Splendid´s, O Balcão, Os Negros, Les Paravents, Journal du Vouleur, Ela, As Boas.

Jean Giraudoux (1882-1944) - Francês. Peças teatrais : A Louca de Chaillot, Intermezzo, A Guerra de Troia Não Acontecerá.

Jean-Paul Sartre (1905-1980) - Francês. Peças teatrais : A Mosca, Entre Quatro Paredes, As Mãos Sujas, Mortos Sem Sepultura, A Prostituta Respeitosa, Os Sequestradores de Altona, O Diabo e o Bom Deus, O Tempo e a Gente, A Náusea. 

Jean Tardieu (1903- ) - Francês. Peças teatrais : A Testemunha Invisível, Dias Petrificados, Uma Voz Sem Ninguém, Os Amantes do Metrô .

Marcel Achard (1899-1974) - Francês. Peças teatrais : Quer Brincar Comigo?, João da Lu , Patate, A Idiota .

Marcel Aymé (1902-1967) - Francês. Peças teatrais : A Égua Verde, A Cabeça dos Outros, Clérambard, Lucienne e o Açougueiro .

Marcel Pagnol (1895-1974) - Francês. Peças teatrais : Topaze, A Mulher do Padeiro, Trilogia : Marius, Fanny, César.

Théodore de Banville (1823-1891) - Francês. Peças teatrais : Odes Funambulescas, Gringoire.

Vitorien Sardou (1831-1908) - Francês. Peças teatrais : Madame Sans-Gène, Pátria, Thermidor, Tosca .

Arthur Adamov (1908-1970) - Francês de origem russa. Peças teatrais : A Invasão, Paródia, Todos Contra Todos, Paolo Paoli, Pingue-Pongue, O Professor Taranne.

Eugène Ionesco (1912-1994) - Francês de origem romena. Peças teatrais : A Cantora Careca, A Lição, Vítimas do Dever, O Rinoceronte, As Cadeiras, O Rei Está Morrendo.

Ernst Toller (1893-1939) - Alemão. Peças teatrais : Uomo Massa, Os Destruidores de Máquinas, Transfiguração, A Deusa Cega .

Fassbinder (1945-1982) - Alemão. Peças teatrais : As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, Katzelmacher, O Soldado Americano, O Mercador das Quatro Estações, Lili Marlene, O Casamento de Maria Braun.

Frank Wedekind (1864-1918)  - Alemão. Peças teatrais : O Despertar da Primavera, O Espírito da Terra, A Caixa de Pandora, Assim é a Vida.

Gerhart Hauptmann (1862-1946) - Alemão. Peças teatrais : Os Tecelões, O Sino Submerso .

Goethe (1749-1832) - Alemão. Peças teatrais : Fausto, Torquato Tasso, Werther, Egmont, Wilhelm Meister.

Heiner Muller (1929-1995) - Alemão. Peças teatrais : Cimento, Hamlet-Machine, A Missão, Quartett, Filocteto, Horácio.

Heinrich Böll (1917-1985) - Alemão. Peças teatrais : A Honra Perdida de Katharina Blum, Retrato de Grupo Com Uma Dama, Bilhar de Nove e Meia.

Peter Weiss (1916-1982) - Alemão. Peças teatrais : Ponto de Fuga , A Instrução, Marat-Sade, Trotski no Exílio , Discurso Sobre o Vietnã.

Schiller (1759-1805) - Alemão. Peças teatrais : Don Carlos, Intriga e Amor, Wallenstein (trilogia dramática ), Maria Stuart, Guilherme Tell, Os Salteadores, A Donzela de Orleãs.

Tankred Dorst (1925- ) - Alemão. Peças teatrais : Era Glacial , Toller, Dorothea Merz.

Peter Handke (1942- ) - Austríaco. Peças teatrais : A Angústia do Goleiro Diante do Pênalti, A Mulher Canhota, Viagem pelo Lago Constança.

Isaac Bábel (1894-1941) - Russo. Peças teatrais : A Cavalaria, Contos de Odessa, A Lei .

Leonid Andrèiev (1871-1919) - Russo. Peças teatrais : A Vida de Um Homem.

Íon Caragiale (1852-1912) - Romeno. Peças teatrais : Noite Tempestuosa, A Carta Perdida, Vingança .

Brendan Beham (1923-1964) - Irlandês. Peças teatrais : O Refém, Confissões de Um Revolucionário Irlandês.

John Synge (1871-1909) - Irlandês. Peças teatrais : O Playboy do Mundo Ocidental, À Sombra do Vale, Cavaleiro do Mar.

Samuel Beckett (1906-1989) - Irlandês. Peças teatrais : Esperando Godot, Fim de Jogo , A Última Gravação , Dias Felizes , Ato Sem Palavras I, Trio Fantasma, Improviso de Ohio, Eleutéria.

William Yeats (1865-1939) - Irlandês. Peças teatrais : A Terra dos Desejos do Coração, A Condessa Cathleen, O Vento Entre os Juncos, O Elmo Verde, Deirdre, A Ampulheta, Quatro Peças Para Dançarinos .

Bjornstjern Bjórson (1832-1910) - Norueguês. Peças teatrais : Os Recém-Casados, A Bancarrota Fora de Nosso Alcance .

Lájos Zilahy (1891-1974) - Húngaro. Peças teatrais : Dois Prisioneiros, O Anjo da Cólera, O Desertor .

Molnár (1878-1952) - Húngaro. Peças teatrais : Liliom, Os Meninos da Rua Paulo (adaptação do romance do mesmo nome ).

Slawomir Mrózek (1930 - ) - Polonês. Peças teatrais : O Elefante, Tango .

Karel Capek (1890-1938) - Checo. Peças teatrais : O Caso Makrópulus, A Salamandra (adaptada do romance de ficção científica do mesmo nome).

Leif Panduro (1923- ) - Dinamarquês, Peças teatrais : Bella, Uma Vida Boa, O Louco, O Amante Mal Agradecido, Adeus , Thomas.

Arnold Wesker (1932- ) - Inglês. Peças teatrais : A Cozinha, Raízes, É de Jerusalém Que Estou Falando.

Francês Goodrich e Albert Hackett - Peças teatrais : O Diário de Anne Frank (adaptada do romance do mesmo nome ).

Harold Pinter (1930- ) Inglês. Peças teatrais : O Criado, O Colecionador, O Mensageiro do Amor, Festa de Aniversário, O Inoportuno, Uma Ligeira Dor, O Quarto, O Filho Pródigo, Velhos Tempos .

John Osborne (1929- ) - Inglês. Peças teatrais : Epitáfio Para George Dillon, O Comediante, Lutero, Um Patriota Para Mim.

Peter Shaffer (1926- ) - Inglês. Peças teatrais : A Real Calçada ao Sol, Equus, Amadeus.

Graham Greene (1904- ) - Inglês. Peças teatrais : O Living Room. Grahan Greene é mais conhecido por seus romances Nosso Homem em Havana e O Americano Tranquilo .


Friedrich Dürrematt (1921- ) - Suíço. Peças teatrais : A Visita da Velha Senhora, O Casamento do Senhor Mississipi, Rômulo, o Grande .

Max Frisch (1911- ) - Suíço. Peças teatrais : Andorra,Biedermann e os Incendiários .

Alfonso Sastre (1926- ) - Espanhol. Peças teatrais : A Mordaça, Morte no Bairro, O Corvo , O Sangue de Deus .

Fernando Arrabal (1933- ) - Espanhol. Peças teatrais : A Grande Cerimônia, Cemitério de Automóveis, O Arquiteto e o Imperador da Assíria, O Jardim das Delícias, Piquenique no Front.

José Zorsela (1817-1893) Espanhol Peças teatrais : Don Juan Tenório.

Ramón Del Valle-Inclán (1864-1935) Espanhol Peças teatrais : A Marquesa Rosalinda, Os Cornos de Don Frioleira, Tirano Banderas.

Rodolfo Usigli (1905-1979) Mexicano Peças teatrais : Três Comédias Apolíticas, O Gesticulador , Jano É Uma Garota .

Andrew Weber - Norte-americano. Peças teatrais : Jesus Cristo Superstar, Hair.

Bob Wilson (1943- ) - Norte-americano. Peças teatrais : Abertura, A Vida e a Época de Joseph Stálin, Carta à Rainha Vitória, O Valor do Homem, Einstein na Praia.

Clifford Odets (1906-1963) - Norte-americano. Peças teatrais : Esperando por Lefty, Paraíso Perdido, A Vida Impressa em Dólar.

Edward Albee (1928- ) - Norte-americano. Peças teatrais : Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, Três Senhoras Altas, O Sonho Americano, A Morte de Bessie Smith, A Caixa de Areia, Um Equilíbrio Delicado .

Elmer Rice (1892-1967) - Norte-americano. Peças teatrais : Nós, o Povo, Dia do Julgamento, Proibido Para Crianças, Entre Dois Mundos .

Samuel (Sam) Shepard (1943- ) - Norte-americano. Peças teatrais : A Criança Enterrada, A Mão do Assassino, Louco de Amor .

William Saroyan (1908-1981)  - Norte-americano. Peças teatrais : Os Inquilinos da Caverna, Meu Coração Está Nas Montanhas .

José Saramago (1922- ) - Português. Peças teatrais : Que Farei Com Este Livro?, A Noite, A Segunda Vida de Francisco de Assis.


Wole Soyinka (1934- ) - Nigeriano,. Peças teatrais : Os Julgamentos do Irmão Jero, Os Moradores do Pântano, A Dança das Florestas, O Leão e a Jóia, A Colheita de Kongi.



quinta-feira, 19 de maio de 2016

AUGUSTO BOAL ESCREVEU...


O PROJETO PROMETEU

SEGUNDA PARTE DO ENSAIO 
“ESTÉTICA DO TEATRO DO OPRIMIDO”






No início deste ensaio falamos em nomear  Conjuntos – nomeemos, pois, este conjunto estético: Projeto Prometeu, em homenagem ao Titã que ensinou os humanos a fazer o fogo, que ele havia roubado aos deuses que só o queriam para si mesmos.

O Projeto visa desenvolver, nos integrantes de grupos de oprimidos organizados com os quais trabalhamos, todas as formas estéticas de percepção da realidade. Nele, quatro são as vertentes principais:

A PALAVRA

Nosso objetivo não é o de transformar todo cidadão em escritor de best-sellers de aeroporto, mas sim de permitir que todos tenham domínio sobre a maior invenção humana: a palavra, a linguagem simbólica.

As palavras, por serem símbolos – uma coisa que está em lugar de outra - precisam ser preenchidas com as esperanças, desejos, necessidades, experiências de vida de cada cidadão. A palavra é uma coisa, e o sentido que lhe damos é outra, nem sempre coincidentes.

Sabemos que toda palavra vem carregada com os desejos do emissor. Sabemos, também, que cada receptor tem as suas próprias estruturas de recepção-tradução.

Quando uma empregada doméstica ouve a palavra Maria, essa palavra vem associada a uma ordem imperativa: Maria, faz o jantar; Maria, lava a roupa; Maria, varre a casa; Maria, faz isso, faz aquilo. Maria passa a ser o prenúncio de uma ordem.
Um bater de continência em posição de sentido!

Quando, porém, Maria escreve o seu próprio nome porque, sobre si mesma, muito tem a dizer, ela se re-descobre e pode associar seu nome, Maria, ao amor, ao prazer, à política. Assumir seu nome - e a ele dar seus próprios valores - é uma maneira de se assumir como sujeito. Escrever é uma maneira de dominar a palavra, ao invés de ser por ela dominado.

Neste Capítulo, são três as vertentes principais:

O QUE MAIS ME IMPRESSIONOU NOS ÚLTIMOS ANOS – os participantes são convidados a escrever uma curta narrativa sobre um fato pessoal, íntimo, ou, pelo contrário, de interesse nacional, impossível de esquecer. Ao contrário da Declaração de Identidade, voltada para o interior do sujeito, esta é uma oportunidade para se refletir sobre uma visão panorâmica que cada um tem do mundo em que vive. Não basta narrar o fato - deve-se revelar de que maneira única esse fato o impressionou. Algo pessoal. Se a primeira tentativa ficar na simples narração, deve-se insistir em que o participante vá fundo na sua memória e revele impressões mais subjetivas. No debate, sim, deve-se relacionar essas impressões pessoais ao significado social e político do evento.

Sugestão - Uma prática interessante consiste em colocar na parede, ou fazer circular entre os presentes, os textos escritos, sem que conste a autoria da cada um.

Pergunta-se depois qual foi o texto que mais impressionou cada participante e por que razão. Só então se perguntará quem escreveu cada texto e se pedirá que o autor comente os comentários feitos sobre sua escrita. Todos devem intervir narrando fatos da mesma natureza e tentando descobrir a conexão entre eles.

DECLARAÇÕES DE IDENTIDADE: cada participante deverá, três vezes, declarar em poucas linhas quem é, tendo, porém, destinatários diferentes: a pessoa amada, a vizinha, o chefe do qual depende o seu emprego ou função, o presidente do país ou outra autoridade, o povo em geral... Alguns preferem se declarar ao gato, ao cachorro, ao seu jardim, ou ao seu prato de comida: também serve.

A cada vez que declara ser quem é, como a nossa identidade também nos é dada pela relação com os outros – nenhum de nós está encerrado dentro de si mesmo – o escritor descobre identidades que existem, são suas, porém em desuso ou insuspeitadas. Descobre sua multiplicidade e riqueza.

A Declaração de Identidade significa um mergulho dentro de si.

- “É uma maneira de nos dar coragem para falarmos em voz alta o que escrevemos em silêncio” – disse um participante de um dos nossos grupos.

POESIA - Cada participante deverá escrever um poema, seguindo sua intuição. Como estímulo, não como regra, podemos propor etapas, o participante:

a. escolhe um tema que o emocione – emoção é necessária. Pode ser os olhos da pessoa amada ou um buraco no sapato; o sorriso do recém-nascido ou os preços do supermercado;

b. escreve uma página com tudo que lhe desperta emoções e reflexões; as frases devem ser menores do que a largura do papel;

c. elimina as palavras inúteis como artigos e advérbios terminados em “mente”, que tornam as frases pesadas; a arte de bem escrever é a arte de saber cortar;

d. organiza a frase de maneira a criar ritmo; deve ler o texto em voz alta, observando se a leitura é embalada por um ritmo interno;

e. o poeta deve substituir, quando necessário, a última palavra de cada verso criando uma rima, se for seu desejo, mesmo sabendo que rimas não são necessárias à poesia;

f. eis o poema.

Se este processo não der resultados, inventem outros. Em arte, regras são apenas sugestões e não leis imperativas.

A IMAGEM

Devemos desenvolver nossa capacidade de ver e não apenas olhar. A criação de imagens produzidas por nós e não apenas pela natureza nem pelas máquinas, serve para mostrar que o mundo pode ser re-criado.

O participante intervém para mudar a realidade, como quando os pintores rupestres pintavam bisontes, ursos e mamutes em suas cavernas com a intenção, não apenas de admirar sua obra pictórica, mas para melhor estudar esses animais ferozes.

Embora eu não seja testemunha ocular da História, juro que os demais cavernícolas se juntavam em torno do pintor para estudarem formas de atacar as feras: a pintura estimulava a mímica, o teatro, a dança...

A pintura e a escultura são formas de se re-estruturar o mundo, de re-inventá-lo – é natural que pintores e escultores sintam-se deificados pois refazem e corrigem o trabalho da divindade...

As atividades básicas de Imagem deverão ser:

ESCULTURA E PINTURA – Cada grupo deverá produzir uma criação coletiva sob o título de Ser Humano No Lixo, utilizando os elementos do lixo limpo de suas comunidades ou locais de trabalho. Cada escultura deverá mostrar uma ou mais figuras humanas no trabalho, no lazer, no amor, em diálogo ou na solidão, como queiram.

Além do lixo limpo, poderão usar cola, barbantes, arames, madeira, e outros elementos que sustentem a escultura. Deverão fazer também pinturas com o mesmo tema. Este é o ponto de partida: outros temas devem ser buscados no âmbito de interesses do grupo: o trabalho, a casa, a rua, o futuro.

FOTOGRAFIA – As mãos são, depois do cérebro, o que mais de humano existe em cada um de nós.

Cada participante deverá fazer, ou pedir que façam, três fotos das suas mãos ou das mãos de pessoas que trabalham na mesma profissão, ou vivem na mesma comunidade.

Que fazem as mãos? Trabalham com a enxada, com o volante de um carro, a vassoura ou um teclado de computador, ou com as teclas de um piano? Acaricia um rosto, um copo, um corpo? Lavam pratos, agridem, ou jogam cartas? Traduzem em gestos seus pensamentos? São expressivas ou mecanizadas?

O fotógrafo deve fazer o que o fotografado quer, e não o que gostaria de fazer. O fotógrafo traz o seu conhecimento técnico de usar a câmera para que a foto reproduza o desejo do participante.

Outros temas podem ser: opressão, a casa onde moro, família, o mundo, meu trabalho, meu lazer... O tema é importante; mais importante é o diálogo que se deve instaurar sobre as imagens produzidas, as formas de percepção de cada imagem, as ideias que cada imagem provoca, lembranças, desejos...

RE-FORMANDO A FORMA – Apresenta-se uma imagem bem conhecida, como a bandeira nacional, a silhueta de uma garrafa de refrigerante ou a de um acidente geográfico (Pão de Açúcar, Corcovado), o símbolo de um fast-food, a forma de um campo de futebol, o perfil de uma cidade, um item publicitário em que se associa um corpo de mulher a uma bebida alcoólica, etc. Os participantes deverão refazê-la ou transformá-la – colorindo, re-estruturando suas linhas, eliminando ou adicionando linhas e cores -, de maneira a dar uma opinião sobre a figura e seu significado.

O SOM

A Música é a forma pela qual o ser humano se relaciona com o Universo, seus ritmos e sons aleatórios. É uma forma pela qual se relaciona consigo mesmo, com os seus ritmos cardíacos, respiratórios, circadianos (o sono, a fome...), e com a melodia do seu sangue nas veias.

A Música é o contato do ser humano com o seu coração e com o Cosmos.

Justamente por isso, o poder econômico encarcera a música em seus festivais, empresas fonográficas, distribuidoras, etc., favorecendo sempre ritmos padronizados que podem ser dominados por esse poder. Oitenta por cento da música que se ouve pelas rádios tem a missão de entorpecer a mente dos seus ouvintes. Os ritmos alucinantes têm a missão de alucinar, que é uma das melhores formas de se esconder a realidade opressiva.

Na Estética do Oprimido o que se busca não é aprender os ritmos que andam por aí, à solta, mas sim redescobrir e conectar-se com os ritmos internos de cada um de nós, com os ritmos da natureza, do trabalho e da vida social.

A partir dos jogos A Imagem da Hora, Jogo das Profissões, Máscaras e Rituais, e outros, os participantes poderão escolher qualquer atividade repetitiva de suas vidas profissionais ou cotidianas, e transformá-las em dança:

a) os atores mostram os gestos mudos repetitivos, mecanizados – inconscientes, às vezes - do seu trabalho profissional ou de um segmento de suas vidas cotidianas; deve ser uma atividade que o seu corpo esteja habituado a executar de forma mecânica;

b) ampliam esses gestos, eliminando os detalhes não significativos, e magnificando os essenciais. Forma-se, assim, uma sequência de movimentos essenciais. Cada ator deve procurar ver aquilo que o movimento cotidiano esconde – ver como cada movimento atua sobre o seu corpo, como o excita, estimula ou faz sofrer. Penetrar do único e não apenas reproduzir o óbvio. Esse movimento deve ser a espinha dorsal da dança a ser construída. Todos os demais a ele se referem. O grupo pode escolher apenas um, dois ou mais desses ritmos internos – o importante é que os sintam.

c) lentamente, transformam o movimento em dança, introduzindo ritmo; o grupo deve inventar a música que combine com essa dança usando, sempre que possível, instrumentos inventados a partir de objetos em uso nos locais de trabalho ou na comunidade do grupo. Todos os instrumentos musicais que existem foram construídos, não se encontravam prontos na natureza: muitos outros podem ser inventados. Inventemos!

d) depois de já terem a sequência de gestos rítmicos, deve-se imaginar uma cena da vida desses personagens: um encontro amoroso, um pedido de aumento de salário, um casamento, uma greve, uma reunião familiar... Os atores deverão contar a história escolhida, utilizando os gestos e movimentos rítmicos de sua dança;

e) como forma de ensaio que ajude os atores a criar a dança, o diretor deve pedir que ora tornem bem lentos seus movimentos, câmara bem lenta, ora bem rápidos; quando existir som, que seja o mais baixo possível, apenas audível, e o mais alto que se possa ,– sempre fazendo com que a passagem de um extremo ao outro seja lenta e não aos saltos.

Os participantes deverão criar ritmos e melodias a partir do que percebe no seu corpo em repouso e nas diferentes atividades diárias, nas relações entre o seu corpo e o mundo. É importante evitar ritmos conhecidos.

SINESTESIA – É a percepção simultânea de sensações diferentes, ou a sua tradução de uma em outra. Exemplo: sentimos o gosto do chocolate mesmo quando o vemos à distância. Devemos pedir aos participantes que, ao verem um quadro ou uma foto, inspirando-se nela, escrevam um poema ou um texto. Ao ler um poema, pensem em uma música. Ao ouvirem uma música, pintem os sons que ouviram.

CULTURA E ERUDIÇÃO - Todas estas propostas visam a desenvolver a criatividade individual de cada participante e a sua capacidade de trabalhar em grupos. No entanto, não é nossa proposta fazer tábula rasa da cultura acumulada pela Humanidade, como se de nada valesse do que até agora foi feito. Seria tolice.

Por isso, devemos oferecer aos nossos grupos a possibilidade de conhecer as nossas fontes culturais, nacionais e regionais, bem como a de outros países e de outras épocas.

Na Palavra, temos, os nossos escritores posteriores às invasões portuguesas do século XV, pois muito pouco sobrou da literatura oral indígena anterior. Temos também uma vasta produção literária de cordel. E temos excelentes escritores modernos.

No Som, a música brasileira continua vigorosa, apesar do predomínio, nos meios de comunicação, de ritmos importados de fácil assimilação e baixo custo.

Cada uma das nossas principais regiões criou dezenas de ritmos e danças, algumas sob a influência dos europeus, outras autóctones.

Na Imagem, além dos extraordinários pintores modernos mais conhecidos, temos a arte dos escultores de barro - indígenas e gente pobre do Nordeste. Temos até, para espanto da maioria, uma bela arte rupestre na região do Piauí: há vinte mil anos já se pintava em nossa terra nas paredes de nossas cavernas.

Além da nossa Cultura, devemos expor nossos grupos à arte Erudita: aquela criada por outros povos em outras épocas, desde Beethoven e Bach, até à flauta mágica e a flauta andina. Esse Diálogo também será fértil.

A ÉTICA

O Teatro do Oprimido é um teatro ético e, nele, nada pode ser feito sem que se saiba por que, e para quê. Os participantes do Projeto Prometeu devem saber porque fazem o que fazem. O significado ético de cada ação é tão importante como a ação em si.

A TEORIA – Não se trata de dar aulas sobre Ética, mas de estudar momentos essenciais da Humanidade quando decisões históricas ou interpretações do Mundo, éticas ou antiéticas, foram tomadas. Palestras, testemunhos, teses, diálogos, etc. Por exemplo, a época dos filósofos pré-Socráticos que revelavam a inquietude dos seres humanos em relação ao sentido da vida, às relações humanas e à substância do Universo; as Invasões Ibéricas no século XVI na América Central e do Sul, que resultaram no genocídio de civilizações indígenas; o acordo de Bretton Woods, que instituiu o dólar como moeda universal; a guerra do Golfo e a do Iraque, o Vietnã.

A PRÁTICA; A SOLIDARIEDADE – A superioridade moral dos Bombeiros em relação aos PMs, no Brasil, deve-se a vários fatores, sendo um dos mais importantes o conteúdo dos ensinamentos que recebem os soldados. PMs aprendem a atirar, prender, bater, destruir; bombeiros, além de apagar o fogo, aprendem os primeiros socorros, aprendem a salvar vidas, a prestar serviços à comunidade. É no fazer que o ser humano se faz.

Esta parte da Ética será constituída por ensinamentos práticos de solidariedade – e deverá ser posta em prática e não apenas aprendida!!! Cada participante deverá colaborar concretamente para alguma obra ou ação coletiva de sua comunidade que esteja sendo feita.

Hoje, muitos grupos que praticam TO na Índia, os Jana Sanskriti, logo depois de cada espetáculo em uma comunidade, perguntam em que podem ajudar essa comunidade e o fazem: faz parte do seu fazer teatral.

A MULTIPLICAÇÃO SOLIDÁRIA – Cada grupo deverá organizar outros pequenos grupos ao quais possam transmitir o aprendido, dentro da ideia de que só aprende quem ensina, buscando o Efeito Multiplicador.

Isto é uma verdade científica, neurológica: ao aprender, o indivíduo mobiliza os neurônios necessários à percepção e à retenção do que lhe é ensinado; ao ensinar, mobiliza circuitos neurônicos de muitas outras áreas, expande e fixa o seu conhecimento, re-avalia o aprendido ao tentar explicá-lo.


Esta é uma proposta inicial. Para que seus resultados sejam avaliados deveremos, durante anos, realizar trabalhos e experiências nos mais diversos campos, cidades e países onde é usado o Teatro do Oprimido.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

AUGUSTO BOAL ESCREVEU...


A Estética do Oprimido
Ensaio 





1. Conjuntos Analógicos, e Conjuntos Complementares

A Natureza jamais produz dois seres idênticos: nem dois grãos de areia, nem os fios da minha barba ou gêmeos univitelinos, nem impressões digitais ou duas gotas de chuva, nem as árvores da floresta, nem seus galhos e folhas, nem as estrias de cada folha... nada é absolutamente idêntico a nada. Todas as coisas
Inanimadas e todos os seres vivos são sempre únicos, irrepetíveis, mesmo se
clonados.

Para seres semoventes, humanos ou animais, com um mínimo de vida psíquica, seria impossível viver dentro dessa infinita diversidade se não pudessem organizar a sua percepção do mundo e simplificá-la. Ficaríamos paralisados se tivéssemos que ver e ter consciência de tudo que olhamos; escutar e ter consciência de tudo que ouvimos; tocar e ter consciência de tudo que sentimos, cheiramos e gustamos - tal o acúmulo catastrófico e torrencial das informações recebidas. A Natureza é vertiginosa, mas nós não podemos viver essa vertigem.

Felizmente, a Natureza permite a criação de aparências simples das realidades complexas, através da construção de Conjuntos Analógicos e Conjuntos Complementares. Embora simplificações excluam complexidades, outro jeito não há, e somos forçados a realizar o processo psíquico da formação de Conjuntos para nos podermos guiar e viver neste mundo.

Quando, pela primeira vez, o bebê abre os olhos, olha tudo que os seus olhos alcançam e, olhando tudo, nada vê: apenas a cor cinza. Aos poucos, na medida em que o seu nervo ótico começa a ser estimulado pela luz e pela sombra, organiza sua percepção visual distinguindo linhas retas e curvas, profundidades e cores.
Quando deixa de olhar tudo ao mesmo tempo, é quando realmente começa a ver – e vê Conjuntos.

Nenhum peixe é absolutamente igual a outro peixe, mas os peixes se assemelham: eis o cardume. Nenhuma rosa é igual à outra rosa, mas todas se parecem, vermelhas, brancas ou amarelas: eis o roseiral. Nenhuma cor é homogênea em toda a extensão do objeto colorido, mas pode-se abstrair as diferenças que, ao microscópio, existem, claras e profundas. 1

Um astronauta disse que a Terra é azul; nós dizemos que a noite é negra, vermelho o sangue em nossas veias e plúmbeo o céu de chuva.... Sabemos que não é assim: nenhum milímetro é igual a outro.

Por analogia, podemos perceber e formar Conjuntos Analógicos, homogêneos, que englobam seres semelhantes, mas não iguais – isto é, Unicidades - em um todo maior, como o coro de um balé, o coral de uma ópera, um batalhão de soldados ou a farinha de um mesmo saco.

Podemos perceber, também, Conjuntos heterogêneos, feitos de elementos Complementares. Não existem dois rios iguais em seu percurso, mas em todos corre água: no caudaloso Amazonas ou no riacho do Ipiranga. Suas margens são diferentes, mas todas oprimem a água que neles corre. As pedras, no leito do rio, são desiguais no peso e na forma, mas parecidas, mesmo quando feitas de matérias diferentes, orgânicas ou minerais.

Margens, águas, pedras, plantas, flores e peixes formam um aglomerado de coisas inanimadas e de seres vivos, heterogêneos, mas que podem ser percebidos como Conjuntos: podemos ver este rio sem nos determos em cada um dos elementos únicos que o compõem. Podemos nomear como rio todos os Conjuntos que podem ser percebidos como semelhantes a este. Todos os rios têm a identidade dos rios e sabemos de qual acidente geográfico estamos falando quando falamos do Nilo egípcio ou do Arroyo de la Sierra2 de José Marti.

Podemos perceber a floresta como um Conjunto de árvores semelhantes, mesmo sabendo que não são iguais; o rebanho, como Conjunto de animais da mesma espécie, mesmo tendo cada um o seu feitio, seu focinho e sua fome; podemos ver a multidão como um Conjunto de seres humanos - embora nenhum deles seja igual a nenhum de nós.

Até mesmo cada indivíduo, ou cada coisa, é um Conjunto heterogêneo feito de elementos Complementares: temos cabeça, tronco e membros, artérias e veias, pelo e pele; uma pedra tem muitas cores, mesmo quando é cinza, e ricas variações formais em sua superfície, mesmo quando roliças.

Assim, simplificando a nossa percepção da Natureza, podemos viver sem sobressaltos: Unicidades podem ser sistematizadas em Conjuntos Analógicos de seres e coisas semelhantes, ou em Conjuntos Complementares de coisas e seres dessemelhantes. Nessa simplificação, perde-se a riqueza das diferenças e das identidades únicas que, por infinita, é inacessível.

Essa simplificação, obra do nosso imaginário e não da multifária Natureza, funciona como couraça que nos permite o acesso apenas às aparências do real3 e, sobre elas, podermos predicar.

Para que nos possamos comunicar entre humanos, esses Conjuntos devem ser nomeados: nomeamos montanha todas as protuberâncias da terra que beijam o céu, mesmo sabendo que nenhuma montanha é igual à outra montanha, nenhuma nuvem igual à outra nuvem, nenhum sonho igual ao meu. Nomeamos mar - mar de gente bêbeda no Réveillon, mar de flores ao vento, mar de ondas raivosas - todas aglomerações onduladas de água, girassóis ou gente.

Nomear significa tentativa de imobilizar. O Nome é a fixação, no tempo e no espaço, do que é fluido, do que não pode parar nem ser parado, nem no espaço, nem no tempo.

Tudo é trânsito, mesmo eu, quando me nomeiam Augusto Boal. Qual? Sou quem era antes de escrever esta última linha ou aquele que ainda não escreveu a próxima? Sou um rio de Crátilo4: em mim, correm águas que não corriam, e outras correram e jamais voltarão rio acima: escondem-se no mar.


NOTAS:

1 A floresta não está contida em nenhuma das árvores que a compõem, mas não existiria sem elas. A cidade não é nenhuma de suas ruas e praças, mas, sem elas, não haveria cidades.
2 “El arroyo de la sierra me complace más que el mar” - (“O riacho da montanha me agrada mais que o mar”) - versos de Guantanamera, poema de José Marti, poeta e revolucionário cubano, herói da guerra de libertação nacional contra os espanhóis
3  Os Conjuntos se referem apenas à percepção sensorial do mundo e se organizam em Estruturas ficcionais, imaginárias, que se constituem através da intervenção da palavra e dos símbolos – da palavra gramatical, como Léxico e, sobretudo, como Sintaxe. Estruturas são Conjuntos de Conjuntos inter-relacionados por analogia ou complementaridade: Estrutura Moral, Política, Social, Familiar, Ritual, Comportamental, etc.  As Estruturas se sustentam pelas relações de Poder, que representam, no campo humano e animal, o mesmo papel das forças do Universo (gravitacional, eletromagnética, e as chamadas interações forte e fraca, que ocorrem nos núcleos atômicos.) Todas as relações humanas são estruturadas pelas relações de Poder em suas variadas formas - políticas, sociais, psicológicas, culturais, carismáticas, sexuais, etc. - que determinam valores. Estes valores, que são abstrações, determinam comportamentos concretos.

4 Ninguém pode me ver duas vezes como sou, em cada instante fugaz da minha vida, como fugazes são todos os instantes... e a vida. Jamais serei o mesmo a cada segundo que me foge. Aqueles que me veem agora, jamais serão iguais a si mesmos em dois segundos sucessivos da trajetória dos seus caminhos. Não sou: estou sendo. Caminhante, sou devir. Não estou: vim e vou. Hesito: para onde? Escolho meus caminhos, se puder; sigo em frente, se obrigado!


2. Palavras São Meios de Transporte

Palavras designam Conjuntos, mas ignoram Unicidades. Negros e brancos, homens e mulheres, proletariado e campesinato... são Conjuntos imaginados, mas que não existem como concreção. São, mas não existem. O que existe, corporeamente, é este negro e aquela branca, esta mulher e aquele homem, esta camponesa e aquele operário e, mesmo assim, em trânsito, em devir, em tornar-se, em vir a ser e em deixar de ser. A cada instante, nenhum destes é o mesmo no seu permanente devir.

Os Conjuntos, dada a força que os unifica, podem reagir como se unicidades fossem: um comando militar ou um time de futebol, uma família unida ou um sindicato em greve. Um Conjunto é sempre mais do que a soma de suas unidades – é sinergia.

As palavras - os Nomes, sobretudo - são indispensáveis para que seja possível a troca, o diálogo, porém são significantes polissêmicos que, ao serem percebidos pelo receptor, perdem grande parte dos significados que motivaram o emissor.
Quando pronunciadas pelo emissor, as palavras são significantes com significados ricos das experiências desse emissor, das suas memórias, desejos e imaginações; no trânsito, esses significantes mudam seus significados, como  Crátilo: discípulo de Heráclito, filósofo grego pré-socrático, século V-VI AC, que dizia que ninguém pode entrar no mesmo rio duas vezes porque, na segunda, já serão outras águas que por ele estarão passando, já não será o mesmo rio. Crátilo extremava Heráclito, dizendo que ninguém pode atravessar o mesmo rio sequer uma única vez, pois que as águas estarão sempre em movimento: em que água estará entrando?
Eu extremo Crátilo: quem sou eu, aquele que atravessa?

Um caminhão que, de uma cidade a outra, trocasse sua carga: ao chegar ao receptor, as palavras estarão carregadas das experiências deste e não daquele5. Mesmo que chegue ao seu destino a carga intocada, o receptor tem os seus próprios aparelhos de recepção-tradução, que traduzem e traem a mensagem recebida. Traduttore, tradittore – dizem os italianos: tradutor, traidor.

As palavras são um meio de transporte, como ônibus e caminhões. Da mesma maneira como os ônibus transportam pessoas e os caminhões carga, as palavras transportam nossas ideias, desejos e emoções. Com a mesma palavra pode-se dizer – na frase escrita, com a sintaxe e, na falada, com a linguagem da voz: timbre, tom, volume, pausas, etc. – exatamente o contrário daquilo que afirma e jura o dicionário.6

A primeira coisa que um meio de transporte transporta é a si mesmo: podemos apreciar a beleza de um avião a jato, de um trem maria-fumaça, ou de uma palavra inusitada: mas, para melhor compreende-los, é preciso examinar o que levam dentro.

A palavra é um todo que não é nada. É um traço que riscamos na areia; um som que, como delirantes escultores, esculpimos no ar. Um traço que as ondas levam; um som que se dissolve na brisa.

Areia, nós a sentimos na mão; o vento, no nosso rosto. E as palavras... onde estão? Em nenhum lugar, pois não existem: apenas são.

As palavras não estão em nenhum lugar e estão em toda parte. Palavras são o vazio que preenche o vazio que existe entre um ser humano e outro. Nós, rasgando a areia ou cortando o ar, nesse vazio depositamos nossas vidas, desejos, medos e coragem, sensações e emoções: eis a palavra.

Preenchemos o nada com o tudo que somos: somos as palavras que dizemos, e as palavras somos nós, transformados em sons e traços.

Para que as palavras adquiram um sentido mais preciso e menos permissivo, é necessário vesti-las: na tragédia grega, com máscara, coturno e manto; nos templos, com sua liturgia; no exército, com hierárquica disciplina; no cinema, com iluminação, ângulos e figurinos. Na vida cotidiana, com nossas roupas, gestos culturais, timbres, ritmos da fala, fisionomias...

Para que sejamos capazes de apreender o Uno e não apenas os Conjuntos aos quais pertence, alguma outra mediação se torna necessária para evitarmos as imprecisões de darmos o mesmo nome, boi, a cada membro da boiada, pois esse gado é feito de unicidades bovinas irrepetíveis, não de massa açougueira. Cada boi tem a sua personalidade própria: é Uno – Mimosa, Estrela... A boiada é uma sinergia.

Palavras são obra e instrumento da razão: temos que transcendê-las e buscar formas de comunicação que não sejam apenas racionais, mas também sensoriais - comunicações estéticas. Atenção: esta transcendência estética da Razão é a razão do teatro e de todas as artes.

Não podemos divorciar razão e sentimento, ideia e forma. São sólidos casais, mesmo quando às turras, bicadas e cabeçadas.7

NOTAS:

5 Os significados dos significantes (que são as palavras), são diferentes do significado da palavra e do ato de significar. Quando significo algo a alguém, além dos significantes (palavras) que pronuncio, uso meu rosto, minha voz, meu olhar, meu corpo: este conjunto de significantes integra o meu significar que não está presente em nenhum dos elementos que o compõem – apenas no Conjunto de todos eles. Os Conjuntos possuem qualidades de que suas partes carecem.
6 “Nunca eu tivera querido/ dizer palavra tão louca. / Bateu-me o vento na boca / e depois no teu ouvido./ Levou somente a palavra / deixou ficar o sentido. /O sentido está guardado/ no rosto com que te miro, / neste perdido suspiro / que te segue alucinado, / no meu sorriso suspenso, / como um beijo malogrado.” – Canção, Cecília Meireles

7 A polissemia da palavra permite que, nestes tempos modernos, a palavra liberdade, por exemplo, seja usada para designar qualquer restrição que se faça à existência dos outros. Liberalismo significa ausência de quaisquer limites que restrinjam o poder econômico e protejam os destituídos. Democracia significa que todos os candidatos a uma eleição têm o mesmo direito de comprar tempo na TV e espaço nos jornais... se tiverem dinheiro para tanto.

3. Os Malefícios da Palavra

As palavras são tão poderosas que, quando as ouvimos ou pronunciamos, obliteramos nossos sentidos através dos quais, sem elas, perceberíamos mais claramente os sinais do mundo. Sua compreensão é lenta porque necessitam ser decodificadas, ao contrário das sensações, que são de percepção imediata – eis a principal diferença entre as linguagens simbólicas e sinaléticas, símbolos e sinais.

Se eu escuto uma palavra, seja qual for, necessito de um certo tempo para compreender o seu sentido e as intenções do meu interlocutor. Mas, se ponho o dedo em um fio desencapado, o choque elétrico que recebo não precisa de nenhuma tradução especial. Grito!

Os animais, que não falam nem trocam ideias entre si, mesmo quando necessário – como as vacas a caminho do matadouro, como dizia Bertolt Brecht -, dependem exclusivamente dos seus sentidos para sua percepção do mundo.

Quando os seres humanos, em épocas pré-históricas, começaram a balbuciar as primeiras palavras da Proto-Proto-Língua universal, começou a lenta degradação dos seus sentidos.

A suposta existência dessa língua universal primitiva, já mencionada na Bíblia, foi cientificamente defendida pelos linguistas norte-americanos Joseph Greenberg e Merritt Ruhlen, a partir de 1980.

Para eles, todas as línguas faladas no mundo, ontem e hoje, podem ser sistematizadas e reunidas em diferentes famílias (como, por exemplo, a família que reúne as línguas românicas, eslavas, germânicas...) Estas famílias são, hipoteticamente, originárias de uma única Proto-Língua, no caso, a assim chamada Indo-Européia que, talvez, tenha sido falada por uma população nômade a três ou seis mil anos antes de nós. Juntando-se esta e outras Proto-Línguas, forma-se uma imensa árvore genealógica com um tronco comum: a Proto-Proto-Língua, primeira língua universal. Tem sua lógica, mesmo para quem não acredita em Adão e Eva.

Um trágico exemplo dos humanos sentidos esmaecidos pelo surgimento da fala aconteceu no dia 26 de dezembro de 2004, quando poderosos tsunamis devastaram várias cidades da Ásia e da África, matando mais de trezentas mil pessoas. No entanto, no Parque Nacional de Sri Lanka, povoado por animais silvestres, nenhum deles morreu apesar da tremenda inundação provocada pelas poderosas ondas de doze metros de altura. Salvaram-se elefantes e chacais, pássaros e roedores, e até os desajeitados crocodilos conseguiram escapar. Todos fugiram a tempo para regiões mais elevadas quando perceberam as primeiras vibrações sísmicas e os primeiros longínquos ruídos do fundo do oceano que se abria. Só morreram os animais domésticos... já contaminados pelas palavras que ouviam, mesmo sem entendê-las.

Essa tragédia não tira o valor supremo da Palavra como refinado meio de comunicação, mas revela um deslocamento da fina percepção - dos sinais para os símbolos - que traz consigo algumas tristes desvantagens.

Asiáticos e africanos, enquanto subia o mar, esperavam por avisos simbólicos - palavras! -, através de telefones e megafones, TVs, rádios ou telegramas, sem atentarem para os sinais sísmicos que os seus corpos registravam, mas que não chegavam às suas consciências – sensações que não se transformavam em mensagens.

4. Processo Estético e Produto Artístico

O Artista é aquele que, como qualquer de nós, é capaz de ver Conjuntos onde analogias ou complementaridades unificam desiguais; por isso, pode viver em sociedade. Porém, ao não se deter diante da visão conjuntiva que usamos para perceber a realidade, através dos Conjuntos Analógicos ou Complementares, ou diante das palavras que usamos para nos comunicar – pois que as palavras são símbolos que designam Conjuntos -, o Artista avança, penetra no real e revela, em seu fazer estético (a busca, o trabalho, a tentativa, o erro e o acerto) e no seu  produto artístico (a obra de arte acabada), percepções e aspectos únicos dessa realidade encouraçada, blindada: percebe e revela unicidades escondidas pela simplificação da linguagem que as nomeia, e pelos sentidos que as agrupam, sem percebê-las.

O Artista penetra na unicidade do ser8, como se buscasse o seu complemento, ou como se buscasse a si mesmo: sua Identidade na Alteridade. O Uno busca o Uno, busca a si mesmo no Outro9.

Essa dinâmica percepção nunca se imobiliza, mas se intensifica ou diminui de intensidade, sempre fluida: tanto a percepção do artista ao perceber ou a fabricar a Coisa, como a do espectador ao fruí-la, ou a do amante ao amar.

Amores se conquistam e se perdem, ao sabor da vida... e do domínio que, sobre ela, possamos alcançar. Como a Arte, que não é nunca a mesma.

Embora apenas algumas pessoas sejam nomeadas com o adjetivo de Artistas, todo ser humano é, substantivamente, artista. Todos possuímos, em maior ou menor grau, a capacidade de penetrar em unicidades, fazendo arte ou amor. Somos capazes de encontrar o Uno.

É importante notar a distinção que aqui faço entre o fazer, isto é, o Processo
Estético, e o já feito, ou seja, o Produto Artístico. Para que este exista, aquele é necessário; mas não é necessário que o Processo Estético dê origem ao Produto
Artístico, que pode ficar inconcluso.

Para a Estética do Oprimido, mais importante é o Processo Estético que desenvolve as percepções de quem o pratica, embora seja bem desejável que se chegue ao Produto Artístico – a obra de arte acabada – pelo seu poder social, amplificador. O desejo de chegar à obra de Arte é estimulante – funciona como a busca do sonho, da utopia. Quando se chega a essa etapa, o seu autor recebe os benefícios do reconhecimento dos outros, o que o leva a tentar mais vezes.

Algumas formas dessas estruturas psicológicas genericamente chamadas de Loucura fazem quase o mesmo: desintegram os Conjuntos e se perdem, desesperados, na percepção de cada um dos seres e coisas que o compõem, sem que sejam capazes de formar novos Conjuntos.

Doentes há que veem os poros assustadores que nos tornam penetráveis, e são incapazes de ver a pele que nos protege o corpo. Ou formam Conjuntos de autonomia própria, que não são referenciáveis nem ao real, nem à nossa percepção coletiva.

O Processo Estético permite que o sujeito se exerça em atividades que lhe são habitualmente negadas, expandindo suas possibilidades expressivas e perceptivas.
Cada estímulo cerebral em uma área de atividade humana estimula áreas adjacentes: o cérebro é um ecossistema e não um disco duro de computador. É elástico e plástico. O Processo Estético, por essa razão, é útil em si mesmo, e mais útil se torna quando chega à produção de um Produto Artístico que possa ser compartido com outros sujeitos, igualmente empenhados em seus próprios
Processos Estéticos.

O Produto Artístico - a obra de arte - deve ser capaz de despertar, mesmo naqueles que não participaram do Processo Estético que lhe deu origem, as mesmas ideias, emoções e pensamentos que levaram o artista à sua criação.

É preciso deixar claro que o Processo Estético não é a Obra de Arte. Sua importância e valor consistem em estimular e desenvolver as capacidades perceptivas e criativas que estão atrofiadas no sujeito. Consiste em desenvolver a capacidade, por menor que seja, que tem todo sujeito de metaforizar a realidade.
Todos somos artistas, mas poucos exercemos nossas capacidades estéticas.

 NOTAS

8 Ao encontrar o Ser em sua unicidade - o artista, o espectador, ou o amante - defrontam-se com o Infinito. O objeto do amor é sempre Uno, porém toda Unicidade é um Conjunto, como veremos mais adiante: aí reside o Infinito, que é o encontro impossível em que cada Unicidade é um novo Universo (Nota 9). O amante busca o Uno, exceção feita ao patológico Don Juan que não ama ninguém: ama o amor, ama amar. Narciso, outro caso clínico, ama a si mesmo.

9 Nessa busca, encontra o Uno ou a maneira Una de criar novos Conjuntos que só o artista pôde perceber – à moda do louco - mas que podemos todos, através da sua arte, fruir. E, nela nos encontramos a nós mesmos, como Fernando Pessoa: “Ninguém a outro ama, se não que ama o que de si há nele, ou é suposto! ”


5. O Amor e a Arte


Arte é amor. A pessoa amada é o Ser Único, descoberto pelo amante e só por ele. Amando, nós o vemos e sentimos como insubstituível, irreproduzível. Amando, nós penetramos na unicidade do ser amado que, por sua vez, é um unouniverso complexo e em movimento constante. Justamente porque é constante esse movimento, o amor não o é. Por isso, Swan, o personagem de Proust, pode dizer, ao reencontrar seu antigo amor, já esquecido: - “Ela nem sequer é o meu tipo...” Não é, agora, mas, no tempo em que se perseguiram, e no percurso que percorreram juntos, foi!

O amor, que é uma experiência estética, embora fundado na realidade, é obra do imaginário: ao amar, amamos não apenas a pessoa que concretamente existe, mas as projeções que sobre ela fazemos – projeções que são produto e parte de nós mesmos. Nosso imaginário projeta, sobre a pessoa amada, vícios e virtudes que não lhe pertencem, mas que existem no nosso desejo ou no nosso medo.

Amar é Arte, e Arte é Amor. Estes dois processos – amar, e perceber esteticamente a unicidade de outro Ser, vivo ou Coisa - são absolutamente idênticos. Mais ainda: são a mesma coisa10.

Sendo idênticos, no Amor como na Arte, a nossa percepção do Outro, ou da Coisa, não se congela nem se imobiliza: o Amor é fluxo de corrente alternada - como pode ser a eletricidade e são as marés, porém sem a garantia dos ritmos constantes ou previsíveis - nunca igual a si mesmo, sempre ao sabor de constante variação.

É verdade que existem amores eternos – especialmente os que bem cedo terminam em espantosas tragédias sangrentas... - e obras de arte perenes, mas nem a pessoa amada, nem a obra admirada, são admiradas e amadas com a mesma intensidade constante, nem pelas mesmas razões a cada momento.

No amor e na arte, a única constante é a inconstância.

Ao contrário do que se diz, o Amor não é um encontro: é uma perseguição! Aquele ou aquela que está sempre mudando persegue aquela ou aquele que nunca é igual a si mesmo.

O amor não oferece nenhuma garantia de estabilidade, como sabemos e temos provado. Da mesma forma que devemos cultivar a Arte com amor, o cultivo do Amor é uma arte.

NOTA

10 Da mesma forma que o amor não é “...imortal, posto que é chama...” (Vinicius de Moraes) também a fruição da obra de arte não é a mesma a cada vez que com ela nos encontramos. Podemos descobri-la a cada vez ou, para sempre, perdê-la.


6. Arte e Conhecimento


Para encontrar o acesso a essas realidades últimas e únicas, existem os artistas, cujas atividades estéticas – isto é, sensoriais – surpreendem as unicidades e permitem conhecer a verdadeira realidade, sempre única. Na Arte, como Processo Estético, e na Obra de Arte, como coisa acabada, como Produto Artístico, o ser humano entra em contato com o real - como no orgasmo apaixonado ou no delírio.

Neste sentido, a Arte é uma forma especial de conhecimento, subjetiva, sensorial, não científica. Não é melhor que outras, mas é única. O artista, no exercício da sua Arte, viaja além das aparências do real e penetra nas unicidades escondidas pelos Conjuntos11; na Obra de Arte, sintetiza sua viagem ao âmago do real e cria um novo Conjunto - a Obra - que revela o Uno descoberto nesse mergulho; este, por analogia, nos remete a nós mesmos.

Quando escuto os primeiros severos acordes da Quinta Sinfonia de Beethoven, a trêmula ária Voi que sapete, do Querubim morzateano, ou a triste Donna traviata verdiana, em cada caso são acordes únicos que escuto, na anárquica infinitude dos sons e ruídos que explodem à minha volta. Alguma coisa única, escondida em algum único lugar de mim, desperta e vibra, e me faz vibrar, como um todo, como ser humano – isto é a Arte.

Vibramos como artistas ouvindo acordes únicos, estruturados de maneira única. Através desta unicidade chega-se, por analogia, a um novo Conjunto imaginário, ao qual chamamos plateia, formado por aquelas pessoas que alguma identidade - não racional, mas racionalizável - sentem com tais acordes, com Hamlet e Rei Lear, com o sorriso da Gioconda, os Santos do Aleijadinho ou com a Vênus de Milo que, necessariamente, não pode ter os braços que já teve. Se os ainda tivesse, seria outra – a ausência de braços revela a presença do tempo, que também fruímos.

O eu se transforma em nós – extraordinário salto. Em nós e em cada eu, descobrimos a descoberta que fez o artista. Quando somos capazes de dizer Nós, descobrimos o nosso mais abrangente Eu. Torno-me soma de todas as minhas relações e algo mais, como em qualquer sinergia.

Metaforicamente, sou sons e formas, sons e cores, sou Wagner e Velásquez.... Mesmo se jamais cantei como Valquíria e jamais pintei bêbedos ou meninas. A Arte redescobre e re-inventa a realidade a partir de uma perspectiva singular: a do artista, que é único, como é única a sua relação com o real, e o seu caminho de ver e sentir, do qual nasce a Obra de Arte, capaz de recriar, em cada um de nós, o mesmo caminho do artista. A realidade, tal como é vista pelo artista, só pode ser observada a partir da sua Obra, também única. 12

O cientista faz o mesmo, porém de uma perspectiva anônima que pertence a todos, e não depende da individualidade do solitário cientista. O Teorema de Pitágoras revela que, em um triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa é sempre igual à soma dos quadrados dos catetos, e isso acontece em qualquer país, a qualquer hora do dia ou da noite, no verão como no inverno, seja lá quem for o desenhista do triângulo ou a cor dos seus cabelos. Newton jurou que a matéria atrai a matéria na razão direta das massas e inversa do quadrado das distâncias, e isso é verdade, assim na terra como no céu, chova ou faça sol. Não importa que, mais tarde, Einstein tenha introduzido a ideia de que o espaço se curva quando próximo da massa de qualquer matéria – para nós, que vivemos com os pés na Terra, o melhor é nos afastarmos das macieiras...

A Ciência é uma Arte, mas Arte não é Ciência. A Arte não dá conta de toda a realidade verdadeira, mas é uma verdadeira realidade.


NOTAS

11 A árvore não deve esconder a floresta, como disse o poeta, mas a floresta também não tem o direito de esconder cada árvore que nela se perde; nem cada arbusto, nem cada ramo de flores, nem cada pétala de cada flor.

12 Quando, através do Amor ou da Arte, penetramos na unicidade de um Ser, penetramos no Infinito. Seria tolo imaginar que o Infinito seria apenas infinito para fora e para longe... Se é verdade que o Infinito é, ou existe, não pode tampouco ter limites para dentro: o Infinito não é apenas Infinito para além das estrelas e das Galáxias, mas também para dentro de cada átomo do nosso corpo. O infinitamente grande é exatamente igual ao infinitamente pequeno. O Infinito destrói os conceitos de grande e pequeno, longe e perto. Tudo está muito perto porque tudo é muito longe, e é pequeno por ser tão grande. Em cada fio dos meus cabelos existem trilhões de Vias Lácteas e de Sistemas Planetários, objetos siderais atraídos por vorazes buracos negros. Não podemos cair no mesmo erro que Parmênides (515 A.C. - ?), o filósofo grego que afirmava que o Universo era infinito em todas as direções e, portanto, teria um ponto de partida, e seria esférico... Ora, se começava
em um ponto determinado e tinha uma forma precisa - a esfera - seria finito, pois a forma é o limite do Ser com o Não-Ser e, como sabemos, o Não-Ser não é... Não é mesmo? Toda unidade é múltipla, em todos os sentidos e em todas as direções – isso é o Infinito. Os Conjuntos conjugam Unicidades mas cada Unicidade é um Conjunto: cada á-tomo (o indivisível) divide-se em prótons, nêutrons, elétrons, etc. Cada próton... cada quark... cada antiquark... cada penta-quark... O Infinito é a vertigem do pensamento!


7. Estética e Neurônios

A Estética do Oprimido se baseia no fato científico de que quando, em cada indivíduo, são ativados os neurônios da percepção sensorial - células do sistema nervoso –, esses neurônios não ficam lotados de barriga cheia, como bytes de um computador, armazenando informações estáticas. Eles não se esgotam nem se repletam - o saber não ocupa espaço, diz a sabedoria popular!

Ao contrário dos bytes solitários, os neurônios estimulados formam circuitos que se tornam cada vez mais capazes de receber e transmitir mais mensagens simultâneas - sensoriais ou motoras, abstratas ou emocionais - enriquecendo suas funções e ativando neurônios vizinhos para que entrem em ação, criando redes cada vez maiores de circuitos conjugados que nos fazem lembrar outros circuitos, estabelecendo relações entre circuitos que, entre si, mantenham alguma semelhança ou afinidade, o que nos permite criar, inventar, imaginar.

A imaginação é a memória transformada pelo desejo.

Os neurônios começam a ser produzidos no feto, de forma acelerada, já na terceira semana de sua vida uterina São todos iguais, sem nenhuma especialização. Dependendo do lugar onde se vão instalar, eles se especializam na função que devem ter onde se instalam: são plásticos. Se vão para o nervo auditivo, especializam-se em transmitir sons para o córtex cerebral; se no ótico, imagens; e assim por diante.

As mensagens recebidas pelo Córtex – sons, imagens, cheiros, gostos, sensações cutâneas, ideias, fisionomias... - transformadas em circuitos neurônicos, relacionam-se com outros circuitos já existentes em camadas mais profundas e estáveis do cérebro, e que são trazidos de volta ao Córtex, onde vão dialogar com as novas mensagens, diálogo do qual nascerão as decisões do sujeito.

Todos esses circuitos modificados retornarão às camadas sub-corticais onde irão influenciar a recepção de novas mensagens com as quais guardem alguma relação. Os primeiros sons influenciarão a recepção dos novos sons; as primeiras imagens, novas imagens; as velhas palavras serão confrontadas com novas palavras; velhos conceitos, com novos conceitos; primeiros valores, com valores novos.

Todos esses primeiros, arcaicos, não são imutáveis, e podem ser modificados, substituídos ou erradicados porque não são definitivos – nada no ser humano é definitivo! Mas influenciam.

8. A Invasão dos Cérebros

Se o cérebro de um telespectador se enche de filmes de inspiração holiudiana, vazios de ideias e repletos de força bruta, sua única forma de diálogo, é claro que esses tiros, bombas, explosões, socos e rajadas de metralhadora vão influenciar a posterior percepção do mundo desse infeliz espectador. Vão influenciar suas decisões.

Não é a violência em si mesma que causa danos aos espectadores, mas sim a carência de razões, de motivações para essa atividade física. No caso de Rambos e outros infra heróis dessa subespécie, a Empatia13 torna-se uma relação de pura animalidade irracional. O convívio com a brutalidade tende a formar brutamontes.
Uma pessoa que vivesse na selva em companhia de feras predadoras, sem a presença humana, como se humanizaria?

A violência, em si mesma, não é boa nem má. Será má quando desacompanhada de razões, quando reduzida a socos e pontapés sem subjetividades. Mas poderá ser didática quando racionalizada e reveladas suas causas e sua Ética.

A mediocridade desse tipo de cinematografia não se deve à falta de criatividade dos seus autores, mas sim à deliberada intenção de, pela mecânica repetição, bloquear o desenvolvimento intelectual metafórico das passivas plateias.

O maravilhoso filme de Stanley Kubrik, Full Metal Jacket, mostra com perfeição estética o processo ultra militar de socavar, no cérebro dos recrutas, peremptórias ordens de obedecer e matar. O que o genial diretor demonstra, em um exemplo militar, é o mesmo processo que acontece na TV civil, que não é civilizada.

Tememos a invasão da floresta amazônica por cobiçosas potências estrangeiras e por latifundiários autóctones que promovem queimadas e destruição. É certo: devemos temê-la! Muito mais perigosa, porém, é a invasão da comercial cinematografia holiudense que já domina e dirige a maior parte dos nossos sonambúlicos espectadores.

Não estamos falando apenas da TV, histérica, mas também da música: mesmo os países como o Brasil, em que cada região cria dezenas de fascinantes ritmos, são invadidos pela música massificada inventada ou distribuída pelas companhias transnacionais.

13 Lembro que a Empatia em Aristóteles estava intimamente ligada à Anagnorisis, quando o Protagonista explicava as razões dos seus atos e admitia seus erros – a emoção estava sempre vinculada à razão.

Da mesma forma que um sociólogo estadunidense quis decretar o fim da História, a indústria fonográfica quer agora decretar o fim da Música – esse fim trágico já foi inventado dez anos atrás, em Berlim: o techno, ritmo semelhante ao de uma desajeitada versão dos bate-estacas ou britadeiras de pedra, sendo que estas duas máquinas da construção civil são mais musicais, delicadas e sensíveis do que o monótono techno que, entre outros malefícios sanitários, descompassa marca-passos usados por doentes do coração, já tendo causado várias mortes em shows musicais ambulantes pelas ruas berlinenses.

Além dos filmes e da música, o restante da mídia escamoteia fatos políticos e econômicos de importância, dedicando-se ao supérfluo e ao insignificante. Além do fim da História, do fim da Música, do fim das Artes Plásticas, do teatro, do cinema e o fim dos movimentos sociais, os meios de comunicação querem decretar o fim do Pensamento.

Para que este desígnio se cumpra é necessário esvaziar as palavras, torná-las inócuas e, para isso, o primeiro passo consiste em surrupiar palavras como Liberdade e Democracia, dando-lhes um sentido exatamente oposto ao que conhecemos. Invocando a Liberdade e a Democracia, um país invade outros países, tortura e mata seus cidadãos, chama os resistentes de insurgentes, afirmando que assim o faz para restabelecer a ordem. Qual? Aquela pela força imposta.

Essa apropriação indébita de significados e significantes, esse proposital esvaziamento de todos os conteúdos da Palavra - que, podendo significar qualquer coisa acaba não significando nada! – tem por objetivo destruir a capacidade metaforizante dos cidadãos, sua capacidade de raciocínio imagético.

O envenenamento das palavras busca desorganizar a linguagem e impedir a formulação de pensamentos coerentes. Já não se sabe o que se diz quando se fala! Já não se sabe o que se escuta quando se ouve. A Língua, falada e escrita, torna-se misteriosa e inacessível – torna-se obstáculo à comunicação, exatamente o oposto daquilo para o qual foi criada.

Sem exageros catastrofistas, estamos mergulhados na Grande Guerra Mundial da Des-comunicação, insidiosa e sub-reptícia, quinta-coluna onipotente e onisciente. O objetivo claro dessa nova modalidade de guerra é o domínio, não de territórios geográficos, mas de cérebros.

É neste campo de batalha que se deve situar a Arte Popular. Todas as Artes. Temos que ser Aliados nesta guerra contra o fascismo do discurso unívoco.

Os adeptos da globalização econômica desejam o monopólio cinematográfico, fonográfico e de todos os meios de comunicação para que nos possam impor suas ideias e desejos, fazendo-nos crer que são nossos desejos e ideias. Temos que lhes impor uma outra Globalização: somos Sujeitos!

O teatro é também um meio de comunicação, embora mais complexo do que o simples noticiário radiofônico. Cada forma de comunicar possui seus próprios meios – alguns esclarecem os interlocutores e os ajudam a desenvolver suas percepções do mundo; outros, criam o medo.

O medo é uma potente arma que torna vulneráveis os espectadores: diante das telas, são incapazes de penetrá-la, agir, contra-atacar, defender-se. São imobilizados como cangurus olhando um foco de luz.

A violência nas telas não tem nada a ver com arte, e tem tudo a ver com terrorismo, cujo objetivo principal é criar a insegurança generalizada, criando imaginários ou verdadeiros focos de perigo, e escondendo sua origem: de onde virá o golpe mortal? De que trevas, de que esquina mal iluminada? Onde se esconde o algoz? Quem será a próxima vítima? Por que?

No sistema trágico, a Empatia se dava através do binômio Medo e Piedade. Medo, porque a catástrofe poderia acontecer a qualquer um de nós – éramos semelhantes ao herói, cujo infortúnio compreendíamos e sabíamos previsível e inelutável;  Piedade, porque admirávamos suas virtudes. Na filmografia holiudense, de natureza terrorista, a Empatia se dá pelo Medo e pelo Espanto: o inesperado, a surpresa, quando tudo é possível mesmo o impossível, mesmo sem causa. Através do Medo e do Espanto, as piores ideias maléficas podem ser inoculadas na plateia inerte.

A Empatia falsificada transforma-se em dócil Mimetismo.

Na Tragédia, a violência física se realizava fora de cena: Édipo arrancava seus olhos, fora de cena; Medeia jamais mataria seus filhos diante do aplauso frenético dos espectadores boquiabertos, comendo pipocas. Suas razões, essas sim, bailavam diante das plateias gregas que eram respeitadas como pessoas inteligentes e não como fanáticos espectadores de uma sangrenta luta de boxe tailandês.

Mesmo sendo um sistema coercitivo, a tragédia grega respeitava a inteligência, estimulava o pensamento e podia, como em Eurípides, provocar o debate e o questionamento da sociedade e seus valores. A tragédia grega era o balé das ideias, não o das balas perdidas!

É verdade que, em Shakespeare, a violência física chega, em cena, aos braços cortados e aos olhos furados, mas nunca desacompanhada de razões.

Os filmes holiudenses têm uma só temática: o direito pertence aos mais fortes que estão sempre com a razão, que são o Bem em sua cruzada contra o Mal – que são aqueles que pensam diferentemente.

Com este lixo ético despejado nos seus inocentes neurônios, os vulneráveis espectadores vão, mais tarde, receber as novas informações. Não nos podemos espantar diante de crimes do tipo Columbine14, que foram prenunciados e promovidos por esse tipo de cinema, nem podemos esquecer que as Torres Gêmeas de Nova York foram destruídas em um filme de ficção, antes de serem filmadas em chamas, na tragédia verdadeira15.

Mesmo que os filmes não mostrem brutalidade explícita - no caso das comedias ligeiras com final feliz - introduzem em nossas cabeças hábitos, costumes e até a maneira de falar dos cidadãos dos seus países: o vestir, o trabalho e o lazer, as relações amorosas e o uso do dinheiro, as opções morais e a razão de viver.

Na Organização Mundial do Comércio, alguns países defendem a chamada exceção cultural, não porque defendam a Cultura, mas porque, através dela – cinema, música, vídeos, CDs, DVDs e outras indústrias - o comércio impõe seus produtos através da imagem.

Não falo contra aquele sadio comércio que satisfaz necessidades do comprador – como as gostosas feiras livres, das quais sou adepto incondicional! – mas sim do comércio malsão que cria necessidades desnecessárias, invadindo nossas casas na tela, no rádio, nos jornais e na internet - criando adição.

Nunca o comércio foi tão invasivo e tonitruante, deixando longe o tempo em que me alegrava ouvindo a voz do peixeiro com cestas na cabeça, cantando as vantagens do camarão fresco e louvações à pescadinha...

A necessidade de uma Estética do Oprimido faz parte de nossa luta contra essa invasão cotidiana.


NOTAS

14 Famoso massacre em uma escola dos Estados Unidos onde um estudante, menor de idade, matou dezenas de colegas e professores.
15 Em novembro 2004, noticiou-se que nos Estados Unidos havia sido lançado um novo videogame no qual o usuário se coloca na posição onde estaria Lee Oswald e atira no carro em movimento de John Kennedy: quando acerta o alvo, o sangue se esparrama pelo asfalto virtual... Kennedy já foi assassinado, mas quem treina quer jogar... Outros políticos andam por aí em carro aberto...

9. A Metáfora Como Translação

A Metáfora, no seu sentido mais amplo de translação, inclui todas as linguagens simbólicas, entre as quais a Palavra, a Parábola e a Alegoria. Inclui todas as Artes que representam - não reproduzem – realidades. As Artes Plásticas usam o traço, o volume e a cor; a música, os sons e os silêncios; a dança, o corpo musical em movimento.

Ativando-se com novos estímulos os neurônios estéticos – aqueles que processam, conjuntamente, ideias e emoções, memórias e imaginações, sentidos e abstrações - ativa-se a criação de Metáforas, todas as Metáforas. Translações: criações de novas realidades.

O ser humano é o único animal capaz de criar Metáforas. Quanto mais metaforiza, mais humano se torna. Todas as artes são Metáforas e só os humanos são artistas.

Sem uma atividade metafórica autônoma – que é o que busca desenvolver a Estética do Oprimido – a inteligência se paralisa e o indivíduo se aproxima outra vez da condição de hominídeo, aquela com a qual começou a sua evolução! Faz tempo...16

Quero insistir em que os animais e os hominídeos não são capazes de atividades metaforizantes; não são capazes de transcreverem a realidade que os cerca e na qual se inserem, em outras formas. Os meios de comunicação, imperativos, promovem esse retrocesso17.


NOTAS

16 A evolução dos hominídeos que se transformaram no atual Ser Humano não foi retilínea e contínua. Na Ilha das Flores, Indonésia, (Nature, Setembro, 2004) foi descoberto o esqueleto de um hominídeo que data da mesma época em que os homens e as mulheres de Neandertal desapareceram misteriosamente, vinte ou trinta mil anos atrás, quando coincidiam na Terra com os Cro-Magnon e talvez com outras espécies ainda não descobertas. O Ser Humano pode ser o resultado de cruzamentos entre Neandertais, Cro-Magnons, Homo Floresiensis, e outros mais, ainda enterrados.
17 Metáforas existem, pelo menos, segundo três formas gramaticais: a Metáfora Adjetiva: “O Capitalismo é um tigre de papel”; a Metáfora Adverbial: “O carro voava na pista” (onde se usa adverbialmente o verbo voar, como um modo de correr, e onde o verbo correr, que é modificado, está eclipsado); e as Metáforas Substantivas que são todas as obras de arte que transubstanciam a realidade.


10. Coroas de Circuitos Neurônicos, Refratárias e Agressivas, mas não Indestrutíveis.

As Coroas que aqui apresentamos são uma hipo-tese, isto é, menos que uma tese. Não posso apresentar provas cabais da sua existência, mas nenhum neurocientista pode apresentar provas da sua inexistência.

Si non é vero, é bene trovato!

Nomeio Coroa a este sistema, inspirado nas Coroas Reais que, na Idade Média, unificavam feudos, estruturando Estados. O Rei submetia barões, príncipes, condes, e outros nobres ao seu domino, dentro de uma estrutura maior que os condados, principados e baronatos: o Reino.

A penetração de novas informações sensoriais no Córtex, através do Tálamo, e a circulação cerebral de mensagens abstratas e emoções concretas, pode-se dar de forma fluida e harmoniosa, integrativa, permitindo-se que novos circuitos se formem, que se entrelacem, criando redes, ricas e complexas, contendo mais circuitos neurônicos.

Pode acontecer que, dada à natureza das informações impositivas e dogmáticas, e dos circuitos onde se movem, essas redes se cristalizem tornando-se opacas e compactas, estruturas coerentes que se recusam ao diálogo com novos circuitos exteriores a essas estruturas, impedindo a chegada de novas informações conflitantes com as já existentes no seu próprio sistema.

Exemplos dessas Coroas são encontrados em todas as formas de extremismo religioso, fundadas da existência de um sistema coerente de Revelações e Dogmas que, mesmo absurdos e inverossímeis, jamais são questionados. Elas se tornam agressivas e destruidoras em relação a outras Coroas – outros extremismos e Fundamentalismos! - ou a quaisquer novas informações que com elas discrepem. Elas impedem o livre fluir da Razão. São imperativas e recusam subjuntividades.

O fanatismo esportivo, a adoração idolátrica de uma pessoa ou instituição, o sectarismo político, as gangs do narcotráfico e os clãs como Montequios e Capuletos, - mesmo quando existam outras razões sociais e econômicas para isso - são exemplos concretos dessas Coroas formadas pela repetição constante das mesmas informações com o mesmo conteúdo, e pela aceitação dos mesmos valores jamais questionados.

Se as orações de uma religião extremista - ou dos extremistas de uma religião - fossem feitas apenas uma vez cada três ou quatro meses, essas Coroas não se formariam. Sendo realizadas várias vezes ao dia, sim. Se as partidas de uma equipe de futebol fossem travadas uma vez a cada meio ano, não existiriam hooligans – como se realizam duas vezes por semana, não deixam tempo ao sujeito de pensar outros pensamentos. Se um enfrentamento entre gangues fosse acidental e esporádico, fortuito encontro de rua, o diálogo seria possível.

As repetições constantes produzem as refratárias e agressivas Coroas. Essa não é uma condição bastante, mas é necessária!

As Coroas integram várias regiões do cérebro. Na teoria de Hughlings-Jackson (1835-1911) algumas atividades cerebrais são bastante simples, como as do nervo ótico, enquanto que outras, como o pensamento, estruturam uma imensa quantidade de elementos simples.

Não esqueçamos que o cérebro é um sistema ecológico onde tudo está interligado, e não um disco duro de computador.

11.Neurônios Estéticos

Quando, sobre determinado assunto, a Ciência não tem uma resposta precisa ou um saber inquestionável, abre-se o caminho para interpretações poéticas.

Além dos neurônios especializados em apenas uma atividade, existem também os que, dentro dos circuitos que integram, acumulam diversas funções e são capazes de receber e transmitir sensações físicas e emoções profundas, ideias complexas, palavras e símbolos. Estes neurônios e estes circuitos se encontram principalmente no córtex e no tálamo, que são as partes mais humanas do cérebro humano.

Pedindo antecipadas desculpas aos neurocientistas, quero batizá-los de Neurônios Estéticos porque é essa a função da Estética: através de estímulos sensoriais, revelar razões e produzir emoções. Estes circuitos neurais são capazes de perceber o mundo na relação entre o Uno e o Conjunto, relativizá-lo e descobrir sua lógica.

Dostoievski escreveu que “Só a Beleza salvará o mundo”, frase que nós podemos traduzir por: “Só a Estética permite a mais verdadeira e profunda compreensão do mundo e da sociedade”.

As sinapses são os pontos de encontro entre neurônios, através dos neuritos – Axônios, que transmitem, e Dentritos, que recebem: braços suaves que se abraçam, superfícies por onde circula a informação – a imagem, o som, a palavra, o prazer e a dor, a lembrança, os diálogos... - através de processos químicos e estímulos elétricos.

As sinapses se multiplicam e se diversificam, na medida em que são estimuladas18. Quanto mais conhecemos, mais cresce nossa capacidade de conhecer. Quanto mais me ponho a pintar, mais invento como usar pincéis, como se fosse pintor. Quanto mais me ponho a cantar, mais conheço a extensão da minha voz, como se fosse cantor. Quanto mais fizer dançar minhas palavras, mais aprendo a amá-las, como se fosse poeta. Fazendo, serei pintor, poeta e cantor. Sou.

O saber, o conhecer e o experimentar, expandem a minha capacidade de conhecer, saber e aprender. Expandem além da minha busca e me fazem encontrar o que nem sequer procuro. – “Não busco: encontro!" – disse Picasso. Nós faremos o mesmo se, para isso, nos dedicarmos a ver o que olhamos, ouvir o que escutamos, sentir o que tocamos, escrever o que pensamos. Somos todos Picassos, cada um na sua medida... e ao seu jeito.

NOTA

18 A extrema delicadeza e a complexidade das células chamadas neurônios obrigou a Natureza a fazer uma exceção curiosa: todos os demais ossos do nosso corpo estão dentro do próprio corpo e lhe dão sustento; na cabeça, porém, a ossatura envolve o cérebro e lhe dá proteção. Alguma coisa de muito importante deve haver lá dentro.



12.Volume, Território, e as Insígnias do Poder

A pedra, inanimada, ocupa no mundo um espaço idêntico ao seu volume compacto. As plantas – seres vivos - crescem e necessitam de maior território do que apenas o seu volume: mesmo imóveis, nutrindo-se de terra e chuva, as árvores espalham sombras no chão onde não mais floresce a grama – chão que se torna parte do território da árvore, maior que o volume do seu corpo. Em suas copas frondosas, seus galhos e folhas aprisionam o espaço; as raízes invadem maiores superfícies de terra do que seus volumes somados.

Os animais – seres vivos que se movem - lutam por espaço ainda maior. Alguns marcam seus territórios pelo cheiro, como cães e lobos que urinam para que se saiba a quem pertence aquele espaço – poderiam urinar a bexiga inteira em um só poste, um só tronco de árvores, mas preferem usar vários para demarcarem seu espaço. Outros, pelo ouvido: leões urram, pois não ficaria bem um leão urinando em postes, com a perna levantada; tigres bramam, gatos bufam, o galo clarina o seu galicanto, o falcão crocita, a onça esturra, geme a juriti enquanto ri a hiena, silva a serpente e suspira a ema.

Os animais privatizam o espaço que pertence a todos, e o espaço privatizado é excludente: esta é a minha casa, meu quintal, meu latifúndio; não é a tua casa, o teu quintal, a nossa terra. Inicia-se a luta, feroz ou ardilosa, pelo espaço que se tornou propriedade, extensões do corpo do dono, seja ele leão ou latifundiário. O que acontece nas florestas e savanas com animais selvagens, acontece nos campos com grileiros, e na Bolsa de Valores com a especulação financeira: dinheiro é poder, e o poder tudo compra, a começar pelo espaço.

O ser humano também usa seus sentidos para estender os limites do seu território. Dos três de longo alcance, mais do que o ouvido e o nariz, o ser humano usa os olhos: a Imagem. Todas as sociedades humanas são espetáculos visuais, secundados pelos demais sentidos19. O que varia, com o avanço da História, não é o seu caráter espetacular: são os meios de produzir o espetáculo.

Nossas sociedades tecnológicas sofisticadas - que usam a luz elétrica, rádio, cinema, TV e computação - dão a impressão de que só elas são espetáculo, ou que o espetáculo com elas nasceu. Na verdade, para realizarem o seu espetáculo, cada sociedade usa os meios de que dispõe, como o cão a sua urina.

As sociedades são espetaculares no sentido estético da palavra, porque se baseiam em relações de poder, e o poder exige insígnias e rituais. Como é abstrato antes de ser exercido, pura potência antes do ato, exige concreções para ser reconhecido à primeira vista e ao primeiro som, para ser temido e respeitado.

19 Uma quermesse na igreja, por exemplo, estimula, além da visão, a audição (música ambiental), o paladar e o nariz, com suas guloseimas, e o tato com suas danças.

Necessita Insígnias evidentes - fabricadas com sinais, signos e símbolos20 – rituais bem estruturados, conscientes ou não.

O Rei Louis XIV acordava todas as manhãs diante de espectadores escolhidos entre os seus favoritos da Corte, que esperavam ansiosos para aplaudirem o seu primeiro bocejo matinal, ao som de suave alaúde e cravo, em belas composições de Lully. Esses nobres disputavam a preferência do monarca, vestindo-se de forma adequada para tal cerimônia, e aplaudindo com suaves palmas bem medidas. O espetáculo mostra não apenas o seu titular principal, o protagonista, mas toda uma hierarquia do poder, estruturada nos seus rituais específicos, desde o mais poderoso até o coadjuvante menos importante. Todos devem desempenhar seus papéis. Mesmo nu, o Rei está sempre pomposamente vestido de seda e ouropéis imaginários.

A carruagem foi inventada como meio de transporte, mas a carruagem que transporta reis e rainhas – se fosse só essa a sua utilidade - seria bem mais eficaz se fosse substituída por um carrinho popular de dois ou três cavalos de potência motora, ao invés dos quatro ou seis garbosos animais de carne e osso. A carruagem é símbolo de poder, de vetusta hierarquia e tradição. Secundariamente, transporta pessoas.

Hoje, já não se usam espetáculos tão artesanais e ingênuos como usavam os Luízes; ainda assim, os reis continuam exibindo suas coroas, o papa sua mitra, o general suas estrelas, e as damas das burguesas cortes, joias e cirurgias plásticas.

Bocassa, ditador da Centro-África, apesar de ter um poder unipessoal e discricionário, exercido através de um exército sanguinário, gostava de se apresentar paramentado de leopardo, ornado de pedras preciosas, fartas em seu país. Exigiu ser coroado Imperador na presença de dignitários estrangeiros.
Cobiçosos de tanta riqueza, muitos vieram à festança e partiram brilhantes.

Não só as festas de 15° aniversário de uma jovem que dança com o pai sua primeira valsa, ou da plebeia Angélica com o Príncipe no Leopardo de Visconti, que lhe abre as portas da nobreza, ou uma cerimônia do seu casamento, a noiva toda de branco vestida; não só o presidente da República quando deposita coroas de flores no túmulo do Soldado Desconhecido, ou a inauguração de uma nova estrada - não só essas pompas são espetáculo, mas também o almoço ajantarado dos domingos familiares onde se come e fala segundo regras estabelecidas, como em qualquer peça de teatro.

O espetáculo tem a função de revelar quem é quem, como se pusesse uma legenda na testa de cada protagonista ou figurante!21

A aparição de qualquer cidadão em capa de revista, coluna social ou esportiva, ou em um programa de TV – que são formas espetaculares, estáticas ou dinâmicas - pode dar a qualquer pessoa, por mais insignificante que seja, o poder correspondente a esse status que lhe confere a mídia, e que dura até a próxima edição do jornal. Mídia que é, a um só tempo, fonte de informação e de valoração daqueles que nela desfilam: fontes de poder, como a coroa e a mitra.

O extraordinário poder hipnótico da TV é levado ao paroxismo pelo movimento da imagem. Qualquer movimento é atraente por causa da sua imprevisibilidade – todo movimento cria suspense. Já no berço, o olhar do bebê é atraído por qualquer coisa que se mova: o movimento é uma das formas sadias de desenvolver sua atenção.

A TV utiliza esse fato biológico: suas imagens não demoram na tela, via de regra, mais que alguns segundos fugidios. Não permitir que os telespectadores vejam a imagem que olham, esse é um princípio básico da hipnose televisiva.

Outra imprevisibilidade é o som: surpreende e assusta.

É curioso que o cinema, antigamente calmo e tranquilo, já não permite Antonionis: absorveu a vertigem da velocidade da TV. A pequena tela é vista na sala de jantar iluminada, onde espectadores realizam sonoras atividades paralelas (jantar, jogar cartas, conversar em voz alta...). Na grande tela, a histeria da imagem não seria necessária pois acontece na sala escura onde, quando muito, come-se pipoca e bebem-se insalubres refrigerantes.

A TV é feita para vender produtos e ideias, isso através do mecanismo insidioso da empatia, que nos faz suspender o nosso senso crítico e a nossa necessidade de atuarmos para, imobilizados no corpo e na alma, ficarmos à mercê dos ralos pensamentos, reles linguagem, chã e vazia, costumes consumistas e violentas ações que nos impõe a tela. Até nas comédias o nosso riso é programado e obrigatório: risadas, gravadas em background, nos informam que tal cena ou frase é engraçada e, mecanicamente, nos mostra quando devemos rir, mesmo sem acharmos graça.

Nem sempre a estrutura desses programas já os condena. A ideia dos reality shows, em si mesma, não é totalmente ruim: se, ao invés de pessoas vazias e medíocres, os produtores convidassem Noah Chomsky, Arthur Miller, Susan
Sontag e Michael Moore – para citarmos apenas intelectuais norte-americanos - para ficarem vinte e quatro horas em uma sala trocando ideias, eu não dormiria nessas vinte e quatro horas – olhos vidrados na tela. Os próprios participantes imporiam seus limites comportamentais impedindo que tais shows se transformassem, como tem sido o caso, em permissivas sessões de repugnante voyeurismo. Seria um encontro de inteligências e não de aberrações.

Paradoxo: a TV torna-se a verdade absoluta e a realidade ficção, até que seja referendada pelo Jornal da Noite.

No fim da década passada, no centro do Rio de Janeiro, houve um assalto a um ônibus, com a tomada de reféns, que durou cinco horas e foi filmado integralmente pela televisão. Uma jovem confessou que, ao passar pelas imediações e ao ver o que estava acontecendo diante dos seus olhos, voltou correndo para casa e ligou a televisão para ter certeza de que era verdade o que havia presenciado.

Os meios de se realizar o espetáculo mudam com a cultura de cada povo, mas sua função é a mesma. Menos tecnológicos, indígenas brasileiros usam plumagem colorida que exibem em suas festas ou quando se preparam para a guerra. Alguns usam objetos redondos – sua mitra e sua coroa! - com os quais furam seus lábios que lhes dão feições assustadoras. À sua volta, todos dançam respeitosos, em busca de um lugar na estrutura de poder que a proximidade do cacique oferece. Em um contexto diferente, é igual aos nobres de Louis, velando ao seu despertar.

As insígnias, ao mesmo tempo em que, com sua presença, individualizam o seu possuidor como alguém superior e potente, são também Imagens da Ausência. A coroa real nos faz perceber a nossa pequenez: somos cabeças não-coroadas! As insígnias mostram onde reside o poder, e nos denunciam como não possuidores desse poder: somos súditos, vassalos ou escravos.

Isto é explicitado na estrutura de todos os espetáculos-rituais: ao vê-los, mesmo inconscientemente, tudo compreendemos e nos comportamos segundo a posição que neles ocupamos.

A maior humilhação que pode sofrer um militar é que lhes retirem as medalhas em frente à sua tropa de soldados sem medalha: retorno ao marco zero.

NOTAS

20 Sinal é um estímulo sensorial (som, imagem, etc.) convencionado entre pessoas, ou de automática ilação, e que carrega um significado preciso, limitado: isto quer dizer aquilo! É uma advertência. Já o símbolo, também convencionado, não tem limites. O verde no trânsito é sinal que permite a passagem, mas a cor verde é um símbolo de esperança. Pode-se dizer que uma árvore caída da estrada é sinal de que ventou forte, enquanto que a mesma árvore caída, pintada em uma tabuleta na beira da estrada, é símbolo de perigo, embora seja sinal de trânsito. O sinal pode também ter adquirido seu significado pela memória: uma nuvem negra é sinal de chuva. Ao signo, atribuem-se poderes mágicos, como aos do Horóscopo, ou mnemônicos, como aos heráldicos. Uma insígnia, reveladora de status, pode ser fabricada com sinais, símbolos e signos.


21 Alguns espetáculos, dada a sua natureza catártica, tornam-se rituais orgiásticos como, por exemplo, as grandes concentrações musicais onde ninguém vai para apenas ouvir música, mas para simbólicas – ou nem tanto – orgias. O aparente desdém e distância que os Beattles mantinham de suas plateias, como frios amantes, exacerbavam ainda mais a desesperada busca de paroxismos.


13.Os Três Níveis da Percepção

Para viver, exercer nosso poder e ocupar nosso território, nós, animais de todas as estirpes, necessitamos perceber o mundo onde vivemos. Essa percepção dá-se em três níveis:

1 – Informação - o nível receptivo: a luz se reflete sobre os objetos, atravessa o cristalino dos meus olhos, estimula minha retina que informa ao nervo ótico, que faz circular essa informação eletroquímica até aquela região do cérebro que me fará ver o que está diante de mim. Recebo a mensagem. Essa informação não fica arquivada, mas, pelo contrário, inter-relaciona-se com outros circuitos neurais. Semelhantemente ocorre com os demais sentidos.

2. Conhecimento e Tomada de Decisões - nível ativo: o indivíduo relaciona as novas informações com as que já havia recebido anteriormente, e toma decisões reativas.

Nestes dois níveis, humanos e animais se igualam: ambos decidem, reagem. Em alguns, as decisões são instintivas ou biológicas. Ratos criados em laboratório, que jamais viram a cor de um gato nem conhecem o seu mau caráter, fogem espavoridos quando sentem o cheiro do felino: mesmo sem conhecer o inimigo, o rato reage biologicamente e repele o cheiro.

No ser humano, o Conhecimento é acompanhado de uma avaliação subjetiva, que pode induzir ao erro. Em nós, a Informação e o Conhecimento nos levam ao terceiro nível, como neste exemplo:

Abro a porta da minha casa e vejo um tigre, fugido do circo: meu nervo ótico registra sua presença – recebo a informação! Excelente! Meus sentidos funcionam. Fico feliz.

O tigre se aproxima e as informações continuam a chegar com eletroquímica precisão neurônica: vinte metros, dez, cinco. O tigre brama, e escuto o seu bramar: ativa-se o meu nervo auditivo, bravo! Continuo alegre com o funcionamento perfeito dos meus sentidos.

O tigre abre sua enorme boca - ativa-se o meu olfato e sinto o bafo quente!

Fico contente; as informações são corretas, estou bem informado. O tigre abre a goela e arreganha os dentes! Maravilha: percebo tudo, tão perto estou dos seus dentes afiados.

Se parasse aí o meu processo psíquico, eu seria engolido com apetite e sem delongas. Mas como, no nível do Conhecimento, eu já sabia que o tigre era perigoso, sabia que posso trancar a porta e usar a chave, sabia que tenho pernas - posso correr e me refugiar no andar de cima. Sei que posso me salvar, como rato fugindo do gato.

Como humano, porém, não me reduzo a fugir: posso tomar decisões criativas, buscar outras soluções. Posso inventar, escolher o que fazer. Na gaveta, tenho um revólver e posso matar o tigre. Subo ao segundo andar, abro a gaveta, ponho a mão lá dentro e...

3. Consciência Ética, o nível humano - este nível é exclusivo do ser humano: consiste em dar sentido e valor às decisões que tomamos. Eu me interrogo - este é o nível da dúvida e da escolha eticamente justificada.

Devo matar o tigre? Afinal, ele está desnutrido, faminto – a crise econômica diminuiu sua ração! O tigre quer apenas me comer, saciando sua fome, sem aleivosia: comer gente ou bicho lhe é tão natural como à piranha devorar um boi. Eu posso me salvar, mas, se o deixar livre, o tigre pode comer o filho do vizinho que está brincando com o triciclo que ganhou de Natal - o menino tem a carne mais tenra do que a minha...

Chamo os bombeiros? Jogo minha escrivaninha na cabeça do tigre para que fique desacordado? Grito?

Este terceiro nível é Ético: dá valores a cada ato, e projeta o ser humano em suas ações no futuro, não apenas em suas reações no presente.

É criativo: exige a invenção de alternativas. É neste nível ético que se deve mover uma sessão de Teatro-Fórum: não bastam boas ideias, é necessário que sejam eticamente justificadas. Não basta trabalhar com as ideias que já existem: é necessário inventar.

No nosso trabalho teatral, é importante ampliar e amplificar todos os níveis da percepção, especialmente o Ético, para que as nossas escolhas sejam conscientes – com ciência - das possibilidades que existem ou podem ser criadas, em cada situação: sempre existe escolha!


14. A Necessidade da Estética do Oprimido


A Estética do Oprimido - que desejo que se torne parte indissociável do Teatro do Oprimido - é necessária e essencial, na medida em que produz uma nova forma de compreender, ajudando a que o sujeito sinta e, através de suas sensações e não apenas de sua inteligência, compreenda a realidade social.

A Estética do Oprimido é mais ampla que a simples percepção, produzindo estímulos emocionais e intelectuais, somando, à linguagem simbólica da palavra, a linguagem sinalética dos sentidos.

O teatro é a forma mais natural de aprendizado, a mais arcaica, pois que a criança aprende a viver através do teatro, brincando, interpretando personagens – e, através das outras artes, pintando-se e pintando, cantando e dançando.

É verdade que esse aprendizado utiliza estruturas sociais e valores éticos vigentes em cada sociedade; para evitar a aceitação passiva dessa sociedade tal qual é, existe o Teatro do Oprimido - subjuntivo e não imperativo – questionando valores e estruturas.

A criança deve aprender a viver em sociedade e também a questioná-la.

Os Jogos Teatrais sintetizam a Disciplina e a Liberdade. Todo jogo tem regras claras que devem ser obedecidas; mas, obedecendo-se às regras, a invenção é livre e necessária.

Todo jogo é um aprendizado de Vida; jogo teatral, um aprendizado de Vida Social. Os Jogos do Teatro do Oprimido são um aprendizado de Cidadania. Sem Disciplina, não existe Vida Social. Sem liberdade, não existe Vida.

Como disse um camponês do MST: - “O Teatro do Oprimido é maravilhoso porque permite que a gente aprenda tudo aquilo que já sabia! ”. Aprende, esteticamente – amplia o conhecer, e lança o conhecedor em busca de novos conheceres.

Aprendemos a aprender!

Temos que ativar nossos Neurônios Estéticos através do ensino subjuntivo das Imagens – olhar e ver -, do som e da música – ouvir e escutar -, da Palavra – poesia e narrativa – e, em toda essa atividade estética e social, buscar o seu sentido ético, do qual o seu primeiro elemento é o de Multiplicar o aprendido.

O estímulo que se faz em uma área cerebral propaga-se às áreas circunvizinhas: acordes de violão desenvolvem potencialidades visuais e não apenas auditivas. Campeões de xadrez estudam música clássica para melhor imaginarem criativas estratégias. Einstein tocava violino quando não conseguia prosseguir no seu trabalho matemático, e voltava à matemática quando, nos acordes do seu violino, encontrava o estímulo necessário: a música é o som da matemática, é a matemática sublimada em sons.

Os Neurônios Estéticos são os mais importantes do sistema nervoso, segundo a hipótese de que, neles, coexistem os sentidos com a razão, o concreto com o abstrato: a percepção estética incorpora a razão e a emoção, juízos e valores, e não apenas sensações!22

Da mesma forma que o esporte expande as potencialidades do corpo, a Arte expande as do espírito.

As sementes deste Projeto Estético já estão no próprio Arsenal do Teatro do Oprimido – as Técnicas e os Jogos de Imagem já são Artes Plásticas – falta extrapolá-las para a obra de arte concreta; as Técnicas e os Jogos de Ritmos já são música – falta transformá-los em canções e sinfonias; as improvisações já produzem literatura: falta concretizá-la em poemas e narrativas.

Atenção: não se trata de ensinar  Solfejo e Canto Orfeônico, nem obrigar ninguém a cantar a segunda parte do Hino Nacional, como fui martirizado na minha infância, mas sim de desenvolver a musicalidade que já possuímos todos.

Não se trata de organizar um Curso Supletivo de Arte que venha remediar carências da infância. Não se trata de ensinar desenho, cor e traço, para que desenhem estátuas gregas ou modelos nus, como na Faculdade, mas sim ajudá-los a ampliar suas sensibilidades, suas tendências artísticas e seus embrionários conhecimentos23.

Buscamos o Belo, como qualquer artista. O Belo que, como escreveu Hegel, é o luzir da verdade através dos meios sensoriais. A verdade que se esconde atrás das aparências. Mas não a verdade hegeliana que revela Deus, e sim aquela que pode ser inventada pelos humanos: uma Ética Humanística.

Buscamos o Belo que se esconde no coração de cada cidadão, pois cada cidadão é um artista - cada qual ao seu modo: mesmo que alguns não sejam capazes de criar um Produto Artístico que nos ilumine, todos são capazes de desenvolver um Processo Estético.

Buscamos a Cultura, não só para compreender e fruir a Cultura alheia – a Erudição, que é o conhecimento de outras Culturas! - mas sim para desenvolver a nossa própria identidade: somos o que fazemos! – e se fizermos apenas aquilo que foi inventado pelos outros, seremos uma cópia dos outros e não nós mesmos. É importante para todos nós o conhecimento da cultura de outros povos e de outras épocas, ou de estruturas artísticas completas e bem acabadas, mesmo quando afastadas de nós. Moças e moços de uma comunidade pobre que aprendam a dançar Valsa com rigor austríaco, ou um bom Minueto com elegância francesa, algo aprendem e são esteticamente estimulados, mesmo que a “nobreza e o equilíbrio dos movimentos”24 desta dança nada tenham a ver com as suas vidas cotidianas. Se, fielmente, encenam uma peça de Molière ou, com igual fidelidade, aprendem a tocar um Noturno de Chopin, claro que isso só poderá ampliar os horizontes da sua percepção e esse aprendizado é maravilhoso.

Nenhuma estrutura de dança, música ou teatro é inocente ou vazia: todas contêm a visão do mundo de quem a produz – contém a sua ideologia - que, através da forma artística, é assimilada e incorporada por quem as pratica.

Camponeses europeus não dançavam Valsas nem Minuetos, que só eram compatíveis com o lazer dos ricos. É ótimo que saibamos dançar Minuetos e Valsas, e melhor ainda que descubramos a dança que o nosso corpo é capaz de criar25.

Se não criarmos a nossa própria cultura, seremos obedientes e servis a outras culturas. Criando a nossa própria, as outras culturas só poderão nos ser benéficas, expandindo a nossa sensibilidade. O fato de ser quem sou – quando sei quem sou! - não me impede de admirar o que fazem os outros. Se não sei quem sou... serei cópia.


A Estética do Oprimido é uma proposta que trata de ajudar os oprimidos a descobrir a Arte descobrindo a sua arte e, nela, descobrindo-se a si mesmos; a descobrir o mundo, descobrindo o seu mundo e, nele, se descobrindo.


NOTAS

22 Os neurônios motores que nos permitem mover o dedão do pé, são bem mais simples. Lula perdeu o dedo mindinho da mão esquerda, foi eleito Presidente da República, e passa bem; Roosevelt perdeu a capacidade motora de suas pernas, mas continuou dirigindo o seu país; o cientista Stephen Hawking, imobilizado em uma cadeira de rodas, continua escrevendo livros. Mas, se algum deles tivesse perdido um pedaço de cérebro, o mundo estaria à beira de uma catástrofe... como de fato está.

23 Quando o CTO começou suas atividades no Rio em 1986, em comunidades pobres, eram poucas as ONGs que se dedicavam a tarefas similares: hoje, muitas se dedicam a realizar programas artísticos semelhantes aos que já existem para a classe média, preparando atores e bailarinos para a TV, teatro e cinema. São comuns as reportagens sobre jovens de excepcional talento, revelados nos morros, que vão fazer carreira em telenovelas, bailarinos selecionados para continuar seus estudos em Nova York e até no Bolshoi de Moscou. Isso tem acontecido, é ótimo que aconteça, porém não é nossa função, nem faz parte dos nossos objetivos. Essa aplicação, em comunidades pobres, dos mesmos programas e métodos que são utilizados pela classe média e alta, traz no seu bojo a mesma ideologia competitiva e o mesmo elogio ao mais capaz, ao excepcional: a ideologia do primeiro lugar, do campeão. Nossa função, ao contrário, é preparar os participantes dos nossos grupos para serem Multiplicadores de Arte, segundo a nossa máxima de que “Só aprende quem ensina! ”, levando em conta que nosso objetivo é atingir todo o tecido social e não apenas revelar talentos excepcionais.

24 Definição do Dicionário Aurélio.

25 Julián Boal, em seu ensaio A Dança do Trabalho, cita pesquisadores que mostram que os movimentos realizados durante o trabalho foram, em muitos casos, a origem de danças mundialmente conhecidas, como a claquete, que vem do som dos passos dos escravos norte-americanos, quando passeavam no chão de madeira das casas dos seus senhores, calçando sapatos com ruidosas “ferradurinhas”, ou os graciosos movimentos helicoidais das mãos das bailarinas andaluzas dançando flamenco, originados nos movimentos de colher os frutos das árvores.

15. O Método Subjuntivo

O teatro, usualmente, conjuga a realidade no tempo Presente do Modo Indicativo – “Eu faço! ” A TV e a publicidade, no Modo Imperativo: - “Faça! ” No Teatro do Oprimido, a realidade é conjugada no Modo Subjuntivo, em dois tempos: no Pretérito Imperfeito – “... se eu fizesse? ” - ou Futuro – “... se eu fizer? ”

No trabalho com camponeses que lutam pela terra para cultivá-la, ou com os jovens cumprindo pena em estabelecimentos correcionais; com comunidades pobres, com portadores de deficiências físicas ou mentais, com operários de uma fábrica ou com empregadas domésticas, ou conosco mesmos! - temos que ser Subjuntivos.

Tudo será “se”, porque quase tudo pode vir a ser.

Subjuntivo – eis a palavra! O Teatro Subjuntivo deve ser acompanhado pelo Teatro Legislativo26 para que se extrapolem, em leis e ações jurídicas, os conhecimentos adquiridos durante o trabalho teatral. Ou pelo Teatro Invisível, para que se intervenha diretamente na realidade. Ou pelas Procissões Laicas, para que se chama a atenção da população para o tema que se quer tratar. Ou por uma Ação Concreta, que a modifique em curto prazo, mergulhando-se de vez na realidade.

O Método Subjuntivo é a instauração da dúvida como semente das certezas, é a comparação, a descoberta e a contraposição de possibilidades; não a de uma certeza estabelecida face à outra, que temos guardada. É a construção de diversos modelos de ação futura para uma mesma situação dada, o que permite sua avaliação e estudo.

Não devemos nunca dizer: - “Façam isto ou aquilo! ”, mas sim: - “Se fizéssemos aquilo ou isto, como seria se fosse? ” Mesmo que os participantes dos nossos programas façam qualquer coisa ótima e admirável, ainda assim devemos pedir alternativas: se fosse diferente, como seria?

26 Teatro Legislativo – forma do Teatro do Oprimido que busca inscrever na Lei os desejos da população organizada. Livro de Augusto Boal editado pela Civilização Brasileira.

16. A Metáfora: Humanos e Hominídeos

Na Estética do Oprimido concentramos nossos esforços e nossas preocupações em criar condições para que os oprimidos possam desenvolver plenamente o seu mundo metafórico – seu pensamento, sua imaginação e sua capacidade de simbolizar, sonhar, criar parábolas e alegorias, que permitam ver, a certa distância, a realidade que se quer modificar – sem diminuir sua participação no mundo social, concreto. Não podemos ver o real se a ele temos o nosso nariz colado – é necessária certa distância estética.

Ao lado do mundo sensível, significante, queremos desenvolver o mundo dos significados. A transformação do artesão – aquele que criava a peça inteira - em operário, - aquele que realiza uma tarefa específica sem ter domínio sobre o produto final, como um operário metalúrgico que enfia o parafuso na porca sem saber se o produto final será um automóvel ou um trator - tirou do artesão, transformado em operário, grande parte da sua capacidade de imaginar: tirou o artista que existe em todo artesão.

Os hominídeos se transformaram em seres humanos quando desenvolveram a imaginação, a linguagem simbólica, a metáfora – quando inventaram a palavra, a pintura rupestre, a dança, o teatro. O ser humano criou o que Platão chamava de Mundo das Ideias Perfeitas, inexistente no mundo sensível e exclusivamente humano, em contraposição ao existente mundo imperfeito das realidades sensíveis.
Sócrates já havia estabelecido o conceito de Logos (não o fato isolado, mas o seu significado, o conceito que abrange todos os fatos ou fenômenos da mesma natureza), no qual Platão baseou a sua teoria.

Fazendo uso da licença poética, tão útil nestas circunstâncias, podemos dizer que a dança é o Logos do movimento, assim como a música é o Logos do som, e o teatro o Logos da Vida.

Aristóteles defendeu a ideia de que a perfeição estava contida em cada ser – não era um mundo à parte, desconectado do real: era o real em movimento, era a busca de algo perfeito, inexistente.

Os hominídeos, ao se transformarem em seres humanos, fizeram a diferença entre o cérebro e a mente, a matéria e o espírito. O cérebro, anatômico desenvolveu o Córtex, pressionado pelas novas necessidades intelectuais desse mundo subjetivo, abstrato e metafórico. É assim que as coisas acontecem: a necessidade cria uma nova realidade.

Isso me faz lembrar uma das frases mais ouvidas dos fisioterapeutas sobre o uso e o desuso: todas as partes do corpo, quando usadas, se desenvolvem; quando em desuso, se atrofiam. O cérebro é parte do corpo e também a ele se aplica a regra do uso e desuso...

A Arte é a característica mais humana do ser humano: é a sua capacidade de recriar o mundo. Quando os primeiros habitantes das cavernas começaram a pintar figuras de bisontes e outros animais nas paredes de suas cavernas estavam procedendo a uma Metáfora pictórica. Nós não devemos vê-los com olhos modernos: não estavam decorando seus apartamentos pendurando quadros nas paredes, mas, ao contrário, faziam a Metáfora de recriar os animais, concretos e ameaçadores, em outro contexto: a pintura. Poderiam, assim, estudá-los, pois necessitavam abate-los e comê-los.

Poderiam, também, usar essas imagens para seus rituais encantatórios.

Arte é Metáfora. Metáfora, no seu sentido mais amplo, é qualquer translação. É a transposição de algo, que existe dentro de um contexto, para um outro contexto diferente daquele em que se encontra na vida cotidiana. A pintura e a escultura são metafóricas porque, pelos próprios elementos que utiliza – tintas, tela, ferro, barro, etc. – já se distanciam da realidade original, criando outra, igual e diferente. Com o cinema acontece o mesmo: já é metafórico o próprio ato de filmar.

O teatro moderno, quase sempre realista, tende a colar-se à realidade original.

Alguns estilos, porém, pela sua própria apresentação como Imagem, promovem esse vigoroso distanciamento estético metafórico: o Nô e o Kabuki japoneses, o Katakali indiano, a Commedia del’Arte italiana, a Tragédia Grega, os Contadores de histórias do nosso Nordeste, etc.

Apenas nós, humanos, somos capazes dessas translações – somos o único animal metafórico.

Este salto, que vai do cérebro físico à consciência, é tão importante e tão misterioso como aquele outro salto, que vai da matéria inanimada à vida. Tão misterioso e tão importante é também o salto que vai da percepção sensorial à tristeza ou alegria, das sensações à emoção. Tão misterioso como o processo de pensar, que surge deste conjunto.

Estes saltos misteriosos contrariam Leibnitz, filósofo alemão do século dezoito, para quem “natura non facit saltus”. Faz sim.

Estes mistérios, juntamente com a ideia dos dois Infinitos – o Infinito Maior e o
Infinito Menor, o para fora e o para dentro -, são os mistérios supremos e últimos da existência que jamais entenderemos. Por enquanto.

Em nossas sociedades, a fim de melhor oprimirem os oprimidos, os opressores procuram reduzir a vida simbólica dos oprimidos, sua imaginação, obrigando-os ao trabalho mecanizado no qual são substituíveis por quaisquer outros - seus nomes tornam-se números: a qualidade torna-se quantidade, e o ser humano se robotiza.

O lazer dos oprimidos, quando existe, é povoado de imagens - mediáticas e outras - que visam a re-transformar humanos em hominídeos, contrariando a evolução da espécie.

Em cada ser humano, um hominídeo espreita: não nos deixemos cair em tentações. Sejamos metafóricos – sejamos gente!

A Estética do Oprimido visa o fortalecimento, desenvolto e livre, da atividade metafórica, das linguagens simbólicas, da inteligência e da sensibilidade. Visa à expansão da percepção que temos do mundo.


Isso se faz através da Palavra, da Imagem e do Som, guiados por uma Ética humanística.