(Denise Fraga em A Alma Boa de Setsuan; João Caldas)
A alma boa de Setsuan trata-se de um texto de Brecht escrito nos anos 40 e que agora toma lugar em uma montagem de Marco Antônio Braz, em temporada popular, no Teatro Tuca.
O enredo começa quando os deuses vêm à Terra a fim de encontrar uma alma boa. Acreditam eles que no nosso mundo isto está tornando-se cada vez mais raro, o que é, logicamente (?), preocupante.
Na montagem em questão os deuses são apresentados de forma cômica e descompromissada de uma figura religiosa no sentido institucional.
Ao chegarem à província de Setsuan, procuram um lugar para pernoitar e não encontram, a princípio, ninguém que os acolhe, confirmando suas suspeitas iniciais de que os homens tornaram-se egoístas e incapazes de dividir. Já quase desistindo, porém, deparam-se com Chen Tê, a prostituta da cidade, que lhes dá um lugar para dormir deixando assim, para isto, de atender a um cliente. Convencidos de que se trata este de um inquestionável e incomum caso de generosidade desinteressada, os deuses oferecem à moça uma alta quantia em dinheiro. Feliz com seu prêmio, Chen Tê deixa de ser prostituta e abre uma tabacaria, no intento de mudar de vida.
Aí começam os conflitos. O povo da cidade, antes acostumado a vê-la como uma mulher pouco digna de respeito, agora quer sua ajuda. Vendo que ela se encontra numa situação diferenciada, em que está provida de uma série de recursos, vão até ela pedindo abrigo, comida, favores. A índole boa de Chen Tê a impede de negar. Sempre disponível, ela atende a todos que a solicitam, metendo, assim, em palavras simples, os pés pelas mãos.
Numa situação limite, decide então compor uma persona falsa. Inventa um primo, veste-se de homem, engrossa a voz, e reveza-se entre este personagem e ela mesma. Como o primo Chui Tá, a ex-prostituta consegue, disfarçada, ter a dureza que em sua forma tradicional é incapaz de demonstrar. Nega, exige direitos, e, em último caso, torna-se mesmo antiética e revela capacidade para os atos maus.
A partir daí a peça se desenrola com muitas situações e uma evolução interessante, incluindo um elemento literário precioso, o amor. Entretanto, este motivo inicial é já suficiente para levantar uma reflexão que requer tempo e, por que não, coragem.
A questão ética que o belíssimo texto de Brecht levanta é a da bondade e generosidade, não em seu aspecto mais óbvio e clichê, mas sim discutindo a liberdade que se tem ou não em ser bom e generoso e a viabilidade destas virtudes no mundo real e moderno. Será possível ser bom num mundo em que se passa fome? E, acima de tudo, qual é o tamanho da fome que justifica cruzar o limite da ética? A resposta pretendida por Brecht, ao que parece, é positiva, mas não ingênua.
A generosidade, embora um valor indiscutivelmente louvável, deve ser acrescida de firmeza. Sim, a gentileza deve ser firme para que possa sustentar-se e, em ação, promover produtos e não perdas.
Aquele que é gentil e que compromete assim sua própria integridade, acaba por desistir da bondade ou perder sua capacidade material e psicológica de exercê-la. Dando tudo e ficando, consequentemente, desprovido de recursos, o gentil torna-se inútil até para si mesmo, além de promover a manutenção perversa das relações de ingratidão e abuso. O que consegue ser gentil, porém firme, pode, no entanto, continuar exercendo generosidade sem que para isso precise dar mais do que tem, ou ainda, o que é importante, do que quer dar.
Falar em alguém bom, ou pior, bonzinho, é quase um desrespeito. A bondade perdeu seu valor social há muito tempo, quando em lugar do gentil passou a ser valorizado o truculento. Aquele que se apresenta socialmente como bom é frequentemente visto como fraco, quando não bobo. A ele não se defere respeito, porque, em detrimento da bondade, prefere-se respeitar o que desperta medo, o que ameaça.
Assim, um empregador, por exemplo, quando conhece sua equipe de trabalho, seus funcionários, terá mais chance de êxito, aparentemente, se demonstrar dureza em vez de docilidade.
A dúvida que fica é: precisa ser assim? Será que não seríamos todos coniventes com isso, no movimento de respeitar quem ameaça e abusar do que oferece, tornando a bondade quase impraticável?
É possível que seja simplesmente uma escolha. De exercício diário e difícil, é verdade, mas exequível e real quando intencionado. O segredo talvez resida em não ter medo de ser gentil e, em consequência, ser abusado. O medo da velha história de estender a mão e ver arrancado o braço. Não será possível estender a mão, firme, sólida, generosa, e, ao mesmo tempo, se necessário for, impor sua necessidade de respeito e a integridade do tal braço, que, neste momento, não pode ser doado?
É provável que o limite seja tênue e que um elemento imponha-se no caminho; o narcisismo do bom. É comum que aquele que faz bondades não possa aceitar ser rejeitado, decepcionar e, assim, quem sabe, despertar ódio e frustração. Mais comum ainda é que esta necessidade de prover ao outro e ser pelo outro visto como um verdadeiro redentor implique em uma falta de capacidade de prover a si mesmo.
A resposta para a pergunta de "o que justifica a falta de ética?" pode ser tudo ou nada. Por isso, pensar diariamente nas escolhas, sobretudo naquelas que concernem às relações, é uma prática de caráter e sabedoria.
Deve haver, acredito, um equilíbrio saudável. O que não parece possível é dar sequência a um estilo de vida, aparentemente o vigente, em que a bondade torna-se rara e desvalorizada, e não seja mais pretensão de ninguém. "O mundo é dos espertos". Será?
Por último, é interessante lembrar que ser bom não consiste em atos grandiloquentes de esforços homéricos. Trata-se apenas, muitas vezes, de disponibilidade. Estar disponível para o outro é já uma ação coerente com o fato de que vivemos num mesmo espaço e tempo.
"Prefiro ser otimista e estar errado a ser pessimista e estar certo."
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