sexta-feira, 3 de maio de 2024

UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE O TEATRO DO BRECHT, por Isaias Edson Sidney

 

 

"Mãe Coragem" / foto: Ariela Bueno


Costuma-se denominar o teatro de Brecht como teatro épico. Melhor seria chamá-lo de “teatro ético”. Porque é de ética que tratam suas peças. Ética social e, principalmente ética política. Porque é essencialmente político o teatro de Brecht. E mais: não é um teatro dramático.

Expliquemos. Brecht era comunista. Sua dramaturgia tem por objetivo trazer ideias que pudessem ser discutidas pelo público dialeticamente. Para isso, busca uma nova forma de teatro não aristotélico, não dramático. Os recursos que usa para isso são a fábula e o distanciamento. A fábula, ou seja, uma história já conhecida ou uma história que se passe num local distante, pela qual se possam discutir ideias, sem a emoção do teatro dramático, sem a catarse do teatro dramático. Ou seja, ele propõe um dilema – um dilema ético – sobre o qual o público decide. Como o teatro, mesmo o de Brecht, não lida com “historinhas”, mas com enredos, ou seja, os fatos são apresentados em forma de conflitos e/ou contradições entre personagens ou dentro das próprias personagens, o dramaturgo lança mão do que se costumou chamar de distanciamento.

Há o distanciamento do ator, ou seja, o ator brechtiano não tem a intenção de “viver”, de “internalizar” as emoções e contradições da personagem, mas apresentá-la ao público. Esse é um tema complexo e foge ao escopo desse artigo. O que nos interessa, no momento, é o distanciamento através da fábula: geralmente os enredos (ou a “história”) das peças brechtianas se passam em locais distantes, como, por exemplo, na China, em “A alma boa de Tsesuan”, ou usa uma personagem histórica, como em “Galileu Galilei”.

Já nessa escolha está o dramaturgo convidando o espectador não para a vivência de emoções dramáticas, mas para a observação mais ou menos neutra do que acontece. Dissemos “mais ou menos” neutra intencionalmente, porque não é que não possa haver “emoção” no teatro brechtiano, mas é o tipo da emoção definida por Fernando Pessoa: “o que em mim sente está pensando”. Ou seja, uma emoção controlada pela razão, que está sempre em primeiro lugar.

Outro recurso utilizado por Brecht para esse distanciamento é a música, o que ocorre em muitas peças, porque, para ele, o teatro é também divertimento, é também prazer, prazer estético, embora o lúdico se apresente como algo que distenda a mente do espectador para a compreensão do que ele deseja que o espectador entenda.

E assim, chegamos ao núcleo do teatro que denominamos de ético, ou seja, o dilema ético: ele apresenta, muitas vezes, duas visões distintas de um mesmo problema, para a decisão do público. Brecht não quer a catarse do teatro aristotélico, em que o objetivo do dramaturgo é levar o espectador a perceber que a “falha ética” das personagens levou a uma espécie de “punição dos deuses”, por contrariar um desígnio da “república”, por contrariar valores da sociedade, como o crime cometido por Édipo, ao matar o próprio pai e casar-se com a mãe, embora sem o querer, sem o saber. Mas, se ele o fez, e precisa ser punido. Contrariou uma lei da pólis. E Édipo arranca os próprios olhos, para não “ver”, não enxergar o crime. Em todo o teatro dramático, de origem aristotélica, está implícito, de alguma forma, essa catarse que o teatro de Brecht não quer, não deseja e não propõe.

Chegamos a um ponto importante desse nosso comentário: as montagens feitas no Brasil das peças de Brecht e as análises que aqui se fazem sobre elas. E sobre isso, afirmo que, quase sempre há dois equívocos: na montagem e nos comentários. Senão, vejamos, como exemplo, duas peças conhecidas e que foram montadas ou que têm sido montadas aqui e são razoavelmente conhecidas: “Mãe Coragem” e “A alma boa de Setsuan”.

Mãe Coragem. A peça se passa durante a guerra dos trinta anos, quando as batalhas são intermitentes. Mãe Coragem arrasta sua carroça entre as trincheiras, para abastecer os contendores. Quando há batalhas, ela ganha dinheiro. E fica feliz. Quando não há batalhas, ela não ganha nada. E se desespera. Enquanto isso, não percebe que as batalhas levam seus filhos. Sim, ela sofre a perda deles, mas, como ela é, na expressão de meu mestre Chico de Assis, em suas aulas no SEMDA (Seminário de Dramaturgia do Arena), “o vampiro da guerra”, ou seja, ela se alimenta da guerra, a perda dos filhos é, para usar um termo moderno, apenas um “efeito colateral”. Mãe Coragem, portanto, não é uma personagem dramática. Ela representa aquilo que Brecht propõe: a discussão dos malefícios da guerra. Não tem sua trajetória “sofredora” o objetivo de fazer o expectador ter empatia por ela, sofrer por ela, entrar em catarse, mas, ao contrário, discutir eticamente o que a guerra faz com os seres humanos.

Já em “A alma boa de Setsuan”, quando a protagonista dirige sua empresa como ela mesma, ou seja, com “bondade” e altruísmo, ela tem prejuízo. Como não consegue fazer diferente, cria um alter-ego, um disfarce, um primo que é ela mesma, mas com personalidade oposta, capaz de fazer “maldades” e desenvolver a empresa, sem atitudes altruístas ou paternalistas. Através dessa fábula, Brecht propõe ao expectador verificar o funcionamento, por dentro, da máquina capitalista. Ou seja, quando o “patrão” não segue suas leis de mercado, quando se deixa levar pelo sentimento, o negócio não prospera, o risco de falência fará com que muitos percam o emprego. Ou, ainda, se houver falência, não haverá mais empregos. E todos sofrerão. Ao contrário, quando o “patrão” endurece as regras, segue as leis de mercado, o negócio prospera e, embora muitos percam o emprego, muitos outros o conservarão. E uma boa parcela da sociedade agradecerá, por continuar trabalhando, embora haja outra parcela que empobreça e feneça, sem esperança. Esse o dilema ético: será o capitalismo um sistema realmente capaz de prover as necessidades humanas? Assim, não há que se possa ter empatia pela personagem – ela mesma ou seu duplo -, nem há possibilidade de qualquer catarse, porque não há propriamente um desrespeito à lei da pólis, mas uma situação com que todos convivemos e sobre a qual precisamos ter consciência.

Portanto, não há personagens “bonzinhos” ou “mauzinhos”, não há mocinhos ou bandidos, no teatro de Brecht. Não é o escopo de “A alma boa de Setsuan” propor ao espectador emocionar-se com a “bondade” ou a “maldade” da personagem, mas analisar e compreender seus atos, para tomar consciência de uma realidade. O mesmo acontece com a “mãe coragem”: sua coragem está em enfrentar a guerra e, ao mesmo tempo, perder os filhos. Cabe ao expectador julgar seus atos, não comover-se com seu sofrimento ou, talvez fosse melhor dizer, com seu pseudo-sofrimento.

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