quarta-feira, 30 de agosto de 2023

JOSÉ SOEIRO ESCREVEU...

 






DO MEU COMPROMISSO COM O AUGUSTO BOAL

(ALGUMAS LINHAS AO SABER DA TUA MORTE)



José Soeiro, 3 de Maio de 2009



Morreu na madrugada de ontem o Augusto Boal. Tinha 78 anos de uma vida de luta, de solidariedade e de criatividade que influenciou o teatro em todo o mundo. Mas Boal era bem mais que um homem do teatro. Para mim e para tanta gente neste mundo.

Estive com ele uma única vez, em Paris, durante um workshop organizado pelo Julian. Mas quando recebi a notícia da sua morte, foi como se me falassem de alguém próximo, tão familiar. Porque ao longo dos últimos anos aquilo que pensou, as formas teatrais que inventou, o modo como concebeu a política e a educação, a imensa generosidade da sua prática e da sua metodologia, acompanharam-me muito para além das oficinas de Teatro do Oprimido que vou fazendo. Na verdade, muito pouca gente me marcou tanto como ele. Dele posso dizer, sem nenhuma reverência, que é um dos meus mestres.

Boal era um dramaturgo e encenador respeitado, que teve um papel muito importante, na década de 60 e 70, na “nacionalização” de alguns clássicos e na sua apresentação no Brasil e, também, na criação de um teatro que falasse dos problemas populares. Mas, mais do que tudo, o grande contributo que deixa é o Teatro do Oprimido – uma metodologia original que é hoje praticada por muitos milhares de pessoas em todo o planeta.

A ideia de Boal é simples: todos somos teatro. E, sendo o teatro a capacidade humana de nos observarmos em acção, precisamos de recuperar a nossa capacidade de actuar. Como dizia de forma provocatória, na medida em que for passivo, um espectador é sempre menos que um ser humano. Daí ter inventado o termo de espect-actor: uma combinação da capacidade de observar e de reflectir (própria do espectador) mas que nos restitui também a de agir nas situações que vemos (típica do actor), não reduzindo a realidade àquilo que existe, mas abrindo-a às possibilidades que sempre tem de ser diferente. Há cerca de um mês, na mensagem do Dia Mundial do Teatro que este ano escreveu, terminava dizendo que “actores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma!”.

A reviravolta que Boal propõe para o teatro não tem apenas que ver com a sua vontade de transformação. O mais interessante, para mim, é a superação que faz do teatro de intervenção e de propaganda: não mais um teatro que comenta a realidade e que leva uma mensagem a um público, mas sim uma prática que propõe que cada grupo se aproprie dos meios de produção teatral para encenar a sua própria realidade e para ensaiar formas concretas de a mudar. A história de Virgílio, o camponês que terá ensinado a Boal que não se pode propor aos outros aquilo que nós próprios não estamos dispostos a fazer, ou seja, que a “solidariedade é estar disposto a correr os mesmos riscos”, é a mais importante lição contra a arrogância da política ou do teatro enquanto propaganda. Não há uma única vez em que conte esta história – e já a contei muitas dezenas de vezes nas oficinas de TO – e não me arrepie profundamente quando tenho de dizer a frase com que o camponês Virgílio confrontou os actores do grupo de Boal, “Quando vocês actores dizem «nós vamos dar o nosso sangue pela Terra!», estão na verdade a falar do nosso sangue, e não do vosso”.

O trabalho de Boal e a forma como a sua metodologia se reproduziu e é hoje instrumento de libertação para tantas pessoas e grupos, dá a dimensão do enorme contributo que ele deu para a emancipação, muito mais valioso, creio eu, do que o de tantos líderes revolucionários. O seu Teatro do Oprimido terá também aberto mais caminho para a democratização do teatro, sobretudo entre os que menos têm, do que muitos programas culturais cheios de boas intenções. A mensagem que o Movimento dos Sem Terra ontem divulgou, de homenagem ao companheiro Boal, é uma boa prova disso.

Uma das coisas que vou aprendendo de cada vez que faço uma oficina de TO é que não há transformação sem uma profunda atenção a todas as formas de poder – e o poder opressivo está aí, em cada relação humana, às vezes nos mais improváveis lugares. Outra, é uma permanente surpresa com a capacidade extraordinária que a linguagem da imagem corporal tem para nos revelar aspectos da realidade que, mesmo olhando-os todos os dias, não vemos. Outra ainda é a diferença entre o que dizemos que é preciso fazer e a nossa capacidade de efectivamente o fazermos. Ao contrário das logoterapias, que prescrevem através do discurso as transformações necessárias, o Teatro do Oprimido, e em particular o teatro fórum, confronta-nos sempre com a complexidade do “aqui e agora” e com a dificuldade de mudarmos, pela acção, as realidades em que vivemos. Na verdade, a opressão não é apenas uma estrutura, porque acontece na interacção concreta entre as pessoas. E nessa interacção, há corpo, há voz, há gestos mecanizados que nos tolhem, há máscaras que nos escondem e nos limitam, há rituais que nos prendem e que confinam o modo como as coisas são feitas, há as mais insondáveis emoções e bloqueios. O Teatro do Oprimido tem-me tornado mais atento a tudo isso.

Por último, dá-me ideia que há uma parte importante do Boal que, em muitos casos, vai ficando pelo caminho em algumas das experiências que se reclamam do seu teatro. Para ele, como para tanta gente na qual gosto de me incluir, o teatro não chega. Com efeito, para usar uma expressão do próprio, o Teatro do Oprimido é um “ensaio da revolução”, mas esta acontece sempre fora do espaço estético, ou quando a efervescência é tão grande que não conseguimos mais separá-lo e distingui-lo do espaço social.

Não se trata do Teatro do Oprimido (TO) fornecer, em si mesmo, uma direcção ou determinadas soluções para os problemas. Pelo contrário, o TO é apenas o espaço onde todas as soluções podem ser testadas e onde podemos perceber as consequências concretas do que fazemos. E isso, em si mesmo, é já profundamente transformador. O TO é assim como uma chave: em si mesmo, não abre a porta, é sempre preciso que alguém o tome nas mãos e o use para esse efeito. Mas também não é uma técnica vazia, disponível para ser usada ao serviço de não importa o quê (como por vezes vai acontecendo nessa Europa). As raízes do TO estão na luta contra todas as formas de opressão e no respeito profundo por cada ser humano e pelo seu sofrimento. Essas raízes percorrem várias das correntes do teatro, da pedagogia, da política emancipatória (e onde Boal vê mais longe, isso acontece também por se sentar em ombros de gigantes, como Marx, Paulo Freire, Brecht, Stanislavski...). Por isso mesmo, só faz sentido o Teatro do Oprimido ser praticado se estiver mesmo ao serviço dos grupos e dos problemas que eles escolhem. Não deve nunca responder às agendas do poder, sejam elas quais forem. Não serve para apresentar problemas escolhidos por alguém que não os vive – mesmo que esse alguém seja educador, assistente social, artista, ou o Estado. Não pode ser transformado em mais uma mercadoria ou numa “técnica de ensinar” ou de domesticar, como vemos acontecer. Precisa de ter o mesmo compromisso radical com os oprimidos que Boal tinha.

Tenho a sensação que o Teatro do Oprimido não surge por acaso na vida de Boal: foi uma necessidade, uma resposta criativa aos problemas que foi encontrando, uma vontade de pôr o conhecimento e os instrumentos teatrais ao serviço do combate à injustiça e à exploração. E parece uma resposta que o próprio Boal integrava no conjunto das suas práticas, como activista político, como militante cultural, como interventor teatral, como cidadão do mundo. Creio que a melhor homenagem que lhe podemos fazer é continuar esse impulso.

Ontem, perdemos muito. Eu sinto, por estranho que possa soar, que perdi alguém muito próximo. Mas sinto também que ele vive ainda e sempre na exigência do compromisso que nos deixa. Saibamos estar à sua altura.

Publicada por TPC - Teatro Popular de Carapeços à(s) 18:15



quarta-feira, 19 de julho de 2023

MARLI TEREZINHA FURTADO ESCREVEU...

 

BERTOLT BRECHT E O TEATRO ÉPICO

O diretor do Berliner Ensemble, Manfred Wekwerth (d.), dá as instruções de direção final à atriz principal Gisela May na nova produção de " Mãe Coragem e Seus Filhos", de Bertolt Brecht

 

Quando nasceu, no dia 10 de fevereiro de 1898 em Augsburg, centro da Baviera, ele ficou sendo Eugen Friederich Bertold Brecht. No dia 14 de agosto de 1956, quando morreu, ele era Bertolt Brecht, ou Bert Brecht, ou simplesmente B.B.. Nesse espaço de 58 anos, não houve apenas mudanças biológicas características das fases da vida de um homem, somadas à mudança ou abreviação de um nome. Houve muito mais que isso. Houve toda uma gama de inquietudes, próprias dos homens sensíveis, que se traduziram em feitos importantes no campo artístico e deixaram atrás de si lastros portadores do gérmen da transformação, especialmente na área teatral. Prova disso é a alteração, irreversível, da função e do sentido social do teatro, efetuada por Brecht. 

Quando e como efetuou ele a mudança? Não houve um momento preciso, pois, a mudança acompanhou a evolução do homem Brecht, que nunca hesitou em voltar atrás e retificar seus postulados anteriores. Precocemente, contudo, esse filho da cidade, gerado na floresta negra , começou suas atividades artísticas, publicando, já aos dezesseis anos, narrações curtas e alguns poemas, não parando de traduzir até a morte e nos legando, por conseguinte, um teatro que vem a ser a "luta contra o capitalismo e contra o imperialismo; a reflexão sobre a situação do homem num mundo dividido em classes; a análise do comportamento ético e social do indivíduo diante da repressão; o estudo do relacionamento entre os homens, condicionados pela situação econômico-política em que vivem; uma ânsia de pacifismo, de um novo humanismo, fundamentado na sociedade sem classes; a busca de um mundo mais justo onde a bondade venha a ser possível; a impossibilidade de ser bom no mundo em que vivemos; a análise da revolta contra a exploração do homem pelo homem"2. Em suma, ele nos legou o exemplo de um teatro histórico, voltado para o homem, onde se preteria identificação e a purgação catártica do espectador, pela atitude crítica do mesmo.

Em função desse postulado, Brecht criou, lado a lado com sua obra, uma teoria, a qual intitulou de teatro épico e que se contrapõe ao chamado teatro dramático aristotélico. Vejamos o que Brecht considera como dramático aristotélico:

  A nuestro parecer lo más interessante desde el  punto de vista social es el fin que Aristóteles atribuye a al tragedia: la catarsis, la depuración  del espectador de todo miedo y compasión, por medio de la representación de actos que provocan miedo y compasión. Esta depuración se cumple por obra de un acto psíquico muy particular: la identificación emotiva del espectador   com los personajes del drama, recreados por los actores. Decimos que una dramática es aristotélica cuando produce esta identificación, utilice o no las reglas suministradas por Aristóteles para lograr dicho efecto (...)3.

  Antes, porém, de abordarmos a teoria de Brecht, ressaltemos o que alguns críticos mais sérios, segundo Fernando Peixoto e conforme ele anota, disseram dele. Para André Gisselbrecht, Brecht nunca acreditou na inocência do escritor. Seu pensamento nunca é dogmático. Seu pensamento foi sempre ágil, resultado de contradições, contraditório também e sempre profundamente dialético. Sua obra recusa a metafísica por um teatro histórico e existe em função do tempo (como ele se dimensiona dialeticamente). Paolo Chiarini diz que o teatro de Brecht é sempre animado por um pathos dialético. Para ele Brecht aplicou-o  como busca e a dialética é a categoria central desse teatro. A ação de seu teatro é fundamentalmente uma ação histórica, e no plano da representação, uma ação historicizada. Para Eric Bentley, Brecht "é a corporização do espírito de oposição, resistência e contradição, levado ao extremo da contrariedade, do pensamento combativo. Sua vida repousa na alegria da luta, no deleite da oposição. E isto o transforma no intelectual marxista da sociedade capitalista: existe dentro dela, para dinamitá-la".

Nas palavras desses três críticos realça-se, portanto, o caráter dialético e a ação histórica do teatro brechtiano. E Anatol Rosenfeld5 assinala que é justamente o marxismo atuante de Brecht somado ao seu anti-ilusionismo que o separam radicalmente do ilusionismo e do teatro naturalista. Assim como o anti-ilusionismo e o anti-psicologismo dos expressionistas são "transfuncionados" na obra de Brecht, despidos do apaixonado idealismo e subjetivismo desta corrente. Brecht absorveu e superou ambas as tendências numa nova síntese, à semelhança do marxismo que absorveu e reuniu o materialismo mecanicista e o idealismo dialético de Hegel numa nova concepção.

Essa nova síntese em Brecht é o teatro épico, assim denominado por ele em 1926, quando publicou um Homem é um Homem. A peça é decididamente narrativa; os personagens interrompem a ação e dirigem-se diretamente ao público, comentando ou ironizando uma situação ou uma ideia. Ele cita a si mesmo na peça e usa um processo novo: a metamorfose em cena. O texto é o primeiro exemplo de teatro didático e pedagógico em sua obra. 

Por ser o elemento didático um dos pontos fundamentais da obra de Brecht e ao qual queremos dar maior enfoque, vejamos as razões do teatro épico brechtiano e de sua oposição ao teatro aristotélico, dadas por Anatol Rosenfeld in Teatro Épic06. Segundo ele, duas são as razões fundamentais. A primeira é o desejo de não apresentar relações inter-humanas individuais — o objetivo essencial do drama rigoroso e da "peça bem feita" — mas as determinantes sociais dessas relações, pois segundo a concepção marxista, o ser humano deve ser concebido como o conjunto de todas as relações sociais. Diante disso a forma épica é, segundo Brecht, a única capaz de apreender aqueles processos que constituem para o dramaturgo, a matéria para uma ampla concepção do mundo. O homem só pode ser compreendido à base dos processos dentro e através dos quais existe.

Ilustremos com palavras de Brecht essa primeira razão  dada por Anatol:

Si se quería proporcionar a los esfuerzos un sentido social era preciso orientarlos hacia un fin:   poner al teatro en condiciones de esbozar, con    medios artísticos, una imagen del mundo y modelos de convivencia entre hombres que posibilitaran al espectador la comprensión de su medio social y le permitieran dominarlo a través de la  razón y del sentimiento.

   El hombre actual sabe poco de las leyes que rigen su vida. Como ser social, en la mayoría de los casos reacciona intuitivamente; pero esa reacción intuitiva es borrosa, imprecisa, carente de efectividad. Las fuentes de sus sentimientos y pasiones están tan enturbiadas y contaminadas como las fuentes de sus tomas de conciencia. El hombre de hoy vive en un mundo que cambia velozmente; él mismo cambia velozmente; por ello no tiene una imagen cierta de ese mundo a través de la cual pueda actuar con posibilidades de éxito. Sus ideas sobre la convivencia de la gente están distorcionadas, son imprecisas, contradictorias. Con respecto a la imagen, podemos decir que es impracticable, o sea que con su imagen del mun do de los hombres, el hombre no puede dominar el mundo de hoy. No sabe de qué factores depende él mismo, no conoce las maniobras que es necesario realizar para que la maquinaria social produzca el efecto deseado. El conocimiento de  la naturaleza de las cosas, profundizado y ampliado con tanto empeño y con tanto ingenio, no puede transformar el dominio de la naturaleza   en una fuente de felicidad para el género humano mientras no se conozca la naturaleza del hombre, de la sociedad humana con su totalidad7 

En nuestro tiempo Ias relaciones de 10s hombres entre sí son poco claras. Es función del teatro  hallar Ia forma de representar esta falta de clari dad de Ia manera más clásica posible, es decir, en calma épica.

Quanto à segunda razão, Anatol liga-a ao intuito didático do teatro brechtiano, à intenção de apresentar um "palco científico" capaz de esclarecer o público sobre a sociedade e a necessidade de transformá-la; capaz ao mesmo tempo de ativar o público, de nele suscitar a açao transformadora.

Por volta de 1929 Brecht dizia que somente um novo objetivo faria possível uma arte nova. Esse novo objetivo era a pedagogia. Sabia ele, porém, que não estava patenteando uma nova forma ao teatro, pois ele mesmo enfatizava que tendências didáticas já haviam existido nos mistérios medievais, no teatro clássico espanhol e no teatro jesuítico e que haviam respondido a certas preocupações da época, desaparecendo com elas. Retomou ele, todavia, a formulação da estética revolucionária burguesa, fundada por Diderot e Lessing, que definia o teatro como lugar de entretenimento e ensino. Para esses racionalistas do século XVIII os elementos didáticos aprofundavam o entretenimento e Brecht, embora outorgasse a Piscator a tentativa mais radical de conferir ao teatro um caráter didático, foi quem, conforme palavras de Fernando Peixoto, "levou às últimas conseqüências a formulação do teatro a serviço da vida social, com a condição de cada vez mais aprofundar sua linguagem enquanto teatro. Assim, Brecht chegou a afirmar que o "prazer é a mais nobre função da atividade teatral'»

Nos seus Escritos Sobre Teatro, quando fala do teatro didático, Brecht diz que segundo o consenso geral existe uma enorme diferença entre aprender e divertir-se. Mas esta oposição não é irremovível e o teatro é sempre teatro; ainda que didático, enquanto bom, será recreativo.

E quando discorre sobre o teatro experimental europeu, aponta ele duas linhas nos experimentos teatrais. Estas linhas estavam determinadas por duas diferentes funções atribuídas ao teatro: entretenimento e didática. E o que havia no entrecruzar dessas duas linhas era um conflito. Ensino e entretenimento, ressalta ele, estão em conflito e a evolução teatral exige a fusão das duas funções.

Dizia Brecht em 1939:

Si se quería proporcionar a 10s esfuerzos un sentido social era preciso orientarlos hacia un fin:   poner al teatro en condiciones de esbozar, com   medios artísticos, una imagen del mundo y mo delos de convivencia entre 10s hombres que pos  sibilitaran al espectador Ia comprensión de su medio social y le permiteran dominarlo a través  de Ia razón y del sentimiento10         

O fim didático exige que seja eliminada a ilusão, o impacto mágico do teatro burguês. O êxtase, a intensa identificação emocional que-leva o público a esquecer de tudo, afigura-se a Brecht como uma das conseqüências principais da teoria da catarse, da purgação e da descarga das emoções através das próprias emoções suscitadas. E aqui reside um grave erro de conceituação do Teatro Épico: o de se achar que ele combate as emoções. O Teatro Épico não combate as emoções! Examina-as e não se satisfaz com a sua mera reprodução. Pretende levar a emoção ao raciocínio. As emoções são admitidas mas elevadas a atos de conhecimento. Enfim, Brecht objetiva que em vez da vivência e identificação estimuladas pelo teatro burguês, seu público mantenha-se lúcido em face do espetácu10, graças à atitude narrativa.

Nas notas que escreveu sobre A Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny, Brecht dirige-se contra o teatro burguês que caracteriza como "culinário", como instituição em que o público compraria emoções e estados de embriaguez, destinados a eliminar o juízo claro. E nestas mesmas notas estabelece a célebre "comparação/distinção" entre a forma dramática do teatro e a forma épica do teatro. Vejamos o quadro11.

 

 

A CHAMADA FORMA "DRAMÁTICA", SECUNDO BRECHT E A CHAMADA FORMA "ÉPICA", SECUNDO BRECHT

 

 

— POÉTICA IDEALISTA

 

1 -O pensamento determina o ser (o personagem-sujeito);

 

2-        O homem é dado como fixo, imanente, inalterável, considerado como conhecido. 

 

3-        O conflito de vontades livres  move a ação dramática; a estrutura da peça é uma estrutura de vontades em conflito;

 


4-        Cria a "empatia", que consiste em um compromisso emocional do espectador que lhe retira a possibilidade de agir;

 

 

5-        No final, a catarse purifica o espectador;

 

6-        Emoção;

 

7-        No final, o conflito se resolve  na criação de um novo esquema de vontades;

 

8-        A harmatia faz com que o personagem não se adapte à sociedade e é a causa principal da açao dramática;

 

9-        A anagnorisis justifica a sociedade;

 

 10-A açao é presente;

           

11-Vivência; 

 

 

 

POÉTICA MARXISTA

 

O ser social determina o pensamento (personagem objeto). 

 

O homem é alterável, objeto de estudo, está "em processo"!

 

 

Contradições de forças econômicas, sociais ou políticas movem a ação dramática; a peça se baseia em uma estrutura dessas contradições;

 

Historiciza a ação dramática,  transformando o espectador em observador, despertando sua consciência crítica e capacidade de ação. 

 

Através do conhecimento, o  espectador é estimulado à ação;

 

Razão;

 

O conflito não se resolve e emerge com maior clareza a contradição fundamental;

 

As falhas que o personagem possa ter pessoalmente (harmatias) não são nunca a causa direta e fundamental da ação dramática.

 

O conhecimento adquirido revela as falhas da sociedade; 

 

 É narração; 

 

Visão do mundo;

 

          

Como se vê, através do esquema, em atitude narrativa, o teatro épico intenta a lucidez do espectador durante o espetáculo. Por isso, bom seria se ele permanecesse com o chapéu na cabeça, ou se fumasse durante o espetáculo, pois para Brecht o público deveria compreender e não ter pretexto para identificar-se, e, como sua opinião era a de que o único sinal de respeito ao espectador consiste em não subestimar sua inteligência, ele apelava à razão. E a identificação caía por terra porque, segundo Brecht, "a identificação é o grande meio artístico de uma época em que o homem representava a variável e seu meio a constante. Só é possível identificar-se com o homem que leva a estrela de seu destino no peito. Isso não significa, prossegue ele, que se impeça a participação emocional do público e a do ator; tampouco se venha a suprimir a representação de sentimentos ou impedir o ator de aplicar sentimentos. Uma só das possíveis fontes de sentimento — a empatia — deve ser deixada de lado, ou pelo menos, deve ser convertida em fonte subsidiária"12

O homem no teatro épico, não é exposto como ser fixo, como "natureza humana" definitiva, mas como ser processo, capaz de transformar-se e de transformar o mundo. Ele não é regido por forças insondáveis que para sempre lhe determinam a situação metafísica. Depende da situação histórica que pode ser transformada. Mesmo didático, entretanto, o teatro científico deve continuar plenamente teatro e, como tal, divertido, "já porque não falamos em nome da moral e sim em nome dos prejudicados"13. Contudo, Brecht achava que para uma época científica, eminentemente produtiva, não pode existir divertimento mais produtivo que tornar uma atitude crítica em face das crônicas que narram as vicissitudes do convívio social. Conforme ressalta Anatol Rosenfeld, esse alegre efeito didático é suscitado por toda a estrutura épica da peça e especialmente pelo efeito de distanciamento (Verfremdungseffekt) mercê do qual o espectador, começando a estranhar tantas coisas que pelo hábito lhe afiguram familiares e por isso naturais e imutáveis, se convence da necessidade da intervenção transformadora.  Diz Brecht:

"distanciar quer dizer historicizar, ou seja, representar fatos e pessoas como elementos históricos, como elementos perecedores. E o novo espectador será recebido como o grande transformador, o que tem conseguido intervir nos processos da natureza e nos processos sociais, o que já não se contenta em tomar o mundo tal qual é, senão que em dominá-lo”

Vendo as coisas sempre tal como elas são, elas se tornam corriqueiras, habituais e, por isso, incompreensíveis. Estando identificados com elas pela rotina, não as vemos com o olhar épico da distância, vivemos mergulhados nesta situação petrificada e ficamos petrificados com ela. Alienamo-nos da nossa própria força criativa e plenitude humana ao nos abandonarmos, inertes, à situação habitual que se nos afigura eterna. É preciso um novo movimento alienador através do distanciamento — para que nós mesmos e a nossa situação se tornem objetos do nosso juízo crítico e para que, desta forma, possamos reencontrar e reentrar na posse das nossas virtualidades criativas e transformadoras.

A teoria do distanciamento é, em si mesma, dialética. O tornar estranho, o anular da familiaridade da nossa situação habitual, a ponto de ela ficar estranha a nós mesmos, torna em nível mais elevado esta nossa situação mais conhecida e mais familiar. O distanciamento passa então a ser negação da negação; leva através do choque do não-conhecer ao choque do conhecer. Trata-se de um acúmulo de incompreensibilidade até que surja a compreensão. Tornar estranho é, portanto, ao mesmo tempo tornar conhecido. A função do distanciamento é a de anular a si mesma.

Brecht utilizou-se de vários recursos de distanciamento, os quais Anatol Rosenfeld divide em: recursos literários, recursos cênicos, recursos cênico-musicais e os recursos do ator como narrador.

Dentre os recursos literários destacam-se, ao lado da atitude narrativa geral associada à própria estrutura da peça, a ironia, pois "ironia é distância", a paródia que se pode definir como o jogo consciente com a inadequação entre a forma e conteúdo, e o elemento cômico, muitas vezes levado ao paradoxal, enfatiza Anatol, é um dos recursos mais importantes de Brecht no âmbito literário. Por vezes, Brecht combinou o elemento cómico com o didático o que resulta em sátira. E entre os recursos satíricos destaca-se o do grotesco, geralmente de cunho mais burlesco do que tétrico ou fantástico. A própria essência do grotesco é "tornar estranho" pela associação do incoerente, pela conjugação do díspar, pela fusão do que nao se casa exemplifica Anatol, tomando o exemplo de Lautréamont, pelo casual encontro surrealista da famosa máquina de costura e do guarda-chuva sobre a mesa de necrópsia. Anatol diz que no grotesco, Brecht se aproxima de outras correntes atuais, como por exemplo do Teatro de Vanguarda ou da obra de Kafka. Brecht, porém, usa recursos grotescos e torna o mundo desfamiliar a fim de explicar e orientar. As correntes mencionadas, ao contrário, tendem a exprimir através do grotesco a desorieniação em face de uma realidade tornada estranha e imperscrutável.

Entre os recursos cênicos e cênico-literários distinguem-se os títulos, cartazes e projeções de textos, os quais comentam epicamente a ação e esboçam o pano de fundo social. O cenário é anti-ilusionista, não poia a ação, apenas a comenta. É estilizado e reduzido ao indispensável; pode mesmo entrar em conflito com a ação e parodiá-la. O palco deve ser claramente iluminado e nunca criar ambientes de lusco-fusco que poderiam perturbar os intuitos didáticos da obra. Realça-se também o uso da máscara para dar maior remate aos momentos grotescos. 

A música e a lírica nas obras de Brecht (recurso cênico musical) assume a função de comentar os textos, de tomar posição em face dele e acrescentar-lhe novos horizontes. Não intensifica a ação; neutraliza-lhe a força encantatória, distanciando através da quebra de um fluxo dramático em andamento.

Brecht soma a esses recursos o papel do ator. O ator épico deve "narrar" seu papel, com o "gestus" de quem mostra um personagem, mantendo certa distância dele. Por uma parte sua existência histriónica — aquela que emprestou ao personagem — insere-se na ação, por outra mantém-se à margem dela. Assim dialoga nao só com seus companheiros cênicos e sim também com o público. Não se metamorfoseia por completo ou, melhor, executa um jogo difícil entre a metamorfose e o distanciamento, jogo que pressupõe a metamorfose.

Discorrendo sobre o papel do ator, Brecht diz que a expressão dos personagens é determinada por um "gestus social". "Por gestus social seja entendido um complexo de gestos, de mímica e (...) de enunciados que uma ou mais pessoas dirigem a uma ou mais pessoas". Para Brecht o gestus social é aquele que nos permite tirar conclusões sobre a situação sociar,15

Notas

1          Baseado no poema: Do Pobre BB: "Eu, Bertold Brecht, vim das florestas negras./ Minha mãe me trouxe para a cidade/quando eu ainda estava em seu ventre./ o frio das florestas permanecerá em mim até a minha noite". (Peixoto, Femando. Brecht Vida e Obra).

2          PEIXOTO, Fernando. Brecht Vida e Obra. Paz e Terra. Rio de Janeiro. 1974.

3          BRECHT, Bertold. Escritos Sobre Teatro, tomo l, cap. VII, p. 121.

4          Op. cit.

5          ROSENFELD, Anatol. Teatro Épico. Buriti. São Paulo. 1965.

6          Id. ibid.

7          Escritos Sobre Teatro, tomo I. p. 148.

8          Id. ibid. p. 56.

9          PEIXOTO, Fernando. O que é teatro. Brasiliense. São Paulo. 1980.

IO Op. cit. vol. I.

II Esse quadro foi retirado de Teatro do Oprimido de Augusto Boal, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1975. Encontra-se, porém, na obra de Anatol e nos Escritos sobre teatro, em sua forma original.

12        Op. cit.

13        Id. ibid.

14        Id. ibid.

15        Anatol Rosenfeld. Op. cit.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

A DRAMATURGIA DE CHICO DE ASSIS, por Isaias Edson Sidney

 


Tive a honra e o prazer de frequentar as aulas do Chico de Assis, no SEMDA – SEMINÁRIO DE DRAMATURGIA DO ARENA – durante muitos anos. Tudo o que sei de teatro devo a ele, assim como muitos de seus alunos. Como dramaturgo formado por suas ideias e teorias, escrevi várias peças (que estão todas no TRAPICHE DO DRAMATURGO, endereço no final deste artigo). Como escritor, sonhava escrever juntamente com o Chico de Assis um livro que contivesse toda a teoria que ele desenvolvida em sala de aula. Infelizmente, não consegui realizar esse intento.

Quando Chico morreu, pensei estar enterrada a ideia de colocar no papel, em formato de livro, tudo aquilo que aprendi durante as aulas no SEMDA. Então, um dia, recebi um convite do Marcio Boaro e a da Monica Rafael, meus amigos e também ex-alunos do Chico, da Companhia de Teatro OCAMORANA, para escrever um livro sobre a dramaturgia do mestre. A empreitada estaria dentro de um programa devidamente incentivado de resgate de sua obra. E o livro seria distribuído gratuitamente às companhias de teatro e a demais interessados.

Pensei em consultar e pedir anotações de amigos e colegas que, como eu, também frequentaram as aulas do SEMDA. Teria de enfrentar, possivelmente, centenas de páginas manuscritas. Também haveria um problema: conhecia muitas pessoas que têm anotações das aulas e correria o risco de deixar de fora gente que gostaria de colaborar. Enfim, seria uma tarefa demorada e arriscada. Que poderia atrasar o projeto.

Consultei minhas anotações e resolvi fazer um tour de force de memória e encarar sozinho a empreitada. Não pretendia esgotar tudo quanto ouvira e aprendera das aulas do Chico, pois isso daria um volume impossível de ser pago pelo incentivo dado ao projeto. Em conversas com Marcio e Monica, concluímos que teria de ser um manual com o essencial, com as ideias mais importantes que o mestre desenvolveu durante os anos de aula. E assim surgiu este livrinho:




Tenho a certeza de que consegui resumir de forma didática e clara os principais conceitos de sua dramaturgia, sem nenhuma pretensão de esgotar todas as ideias desenvolvidas pelo mestre. Espero e desejo sinceramente que contribua para que sua dramaturgia e sua obra não sejam esquecidas e que alguém com melhores e mais profundos conhecimentos do que eu possa, um dia, a partir dessa quase apostila, escrever uma obra mais completa e definitiva sobre a dramaturgia do Mestre CHICO DE ASSIS.






Trapiche do Dramaturgo: