domingo, 11 de outubro de 2015

JAMES SHAPIRO ESCREVEU...

O ININTELIGÍVEL





‘Traduzir’ a obra do bardo para o inglês moderno, sob alegação de que no original é difícil de entender, soa como imensa bobagem



O Shakespeare Festival de Oregon decidiu que a língua de Shakespeare é excessivamente difícil para ser compreendida pelo público de hoje. E anunciou recentemente que, nos próximos três anos, contratará 36 dramaturgos para traduzir todas as peças do autor para o inglês moderno. Pessoas do mundo teatral sabiam que este momento haveria de chegar, embora isso não contribua para atenuar o choque.



O festival era uma das estrelas do firmamento shakespeariano desde a sua fundação, em 1935. Embora os organizadores insistam que se comprometeram também a encenar as obras de Shakespeare em sua linguagem original, criaram um preocupante precedente. Outros eventos, como o Shakespeare Festival de Alabama, o Shakespeare Theater da Universidade de Utah e o Orlando Shakespeare Theater, já assinaram contratos para a produção de algumas dessas traduções.


Embora bem intencionada, a experiência poderá acabar se tornando um desperdício de dinheiro e de talento, pois diagnostica de maneira equivocada o motivo pelo qual as peças de Shakespeare podem ser de difícil compreensão para os amantes do teatro. O problema não está na linguagem frequentemente complexa. O que ocorre é que, mesmo os melhores diretores e atores - tanto britânicos quanto americanos - muitas vezes apresentam as peças de Shakespeare sem terem eles próprios um domínio suficientemente sólido do significado de suas palavras.


As alegações de que a linguagem de Shakespeare é ininteligível remontam à sua própria época. Seu grande rival, Ben Jonson, teria se queixado de “alguns discursos bombásticos de Macbeth, que não serão compreendidos”. Ben Johnson não percebeu que os densos solilóquios de Macbeth eram intencionalmente difíceis. Shakespeare captava a atividade de uma mente febril, traçando a trajetória turbulenta da crise moral de um personagem. Mesmo que o público tenha dificuldade para captar exatamente o que Macbeth diz, ele entende o que Macbeth sente - mas somente se o ator sabe o significado das palavras do personagem.


Há dois anos, testemunhei um tipo diferente de experiência teatral, na qual Muito Barulho por Nada, de Shakespeare, na linguagem original, reduzida a 90 minutos, foi encenada para um público em grande parte não familiarizado com Shakespeare: os prisioneiros do presídio de Rikers Island. O espetáculo fazia parte da iniciativa Mobile Shakespeare Unit do Public Theater.


Nenhum dos presos deixou a sala, embora tivessem toda a liberdade de fazê-lo. Mantiveram-se profundamente interessados, muitos sentados na beira de suas cadeiras, alguns chorando em vários momentos (como o público elisabetano costumava fazer) e visivelmente emocionados por aquilo que viam.


Será que entenderam todas as palavras? Duvido. Não tenho certeza de que outras pessoas, que não o próprio Shakespeare, que inventou algumas palavras, jamais tenham entendido. Mas os presos, como qualquer outro público que assiste a uma boa produção, não precisaram acompanhar a peça verso por verso, porque os atores, e seu diretor, sabiam o que as palavras significavam. Eles descobriram na linguagem de Shakespeare as sugestões para entender a personalidade dos personagens.


Tive a chance de olhar uma cópia da tradução de Timon de Atenas, que o Festival de Oregon utilizou em oficinas e leituras nos últimos cinco anos. Embora seja o trabalho de um dramaturgo experiente, é uma miscelânea, nem elisabetana nem contemporânea, e o resultado é uma leitura tristonha.


Para compreender os personagens de Shakespeare, os atores mergulharam durante muito tempo na análise das sugestões do significado e nas nuances da ênfase que ele infundiu em seus versos. Eles os buscarão em vão na tradução: a música e o ritmo do pentâmetro iâmbico (um tipo de métrica) desapareceram, assim como desapareceram as mudanças - que permitem aos atores registrar variações sutis no que se refere ao grau de intimidade - entre vós e tu. As próprias alusões clássicas foram eliminadas.


O emprego que Shakespeare faz da ressonância e da ambiguidade, que definem as peculiaridades da linguagem, também desapareceu na tradução. Por exemplo, Timon se dirige a duas prostitutas e lamenta o fato de que o dinheiro corrompa todos os aspectos das relações sociais, instando-as a “plague all,/ That your activity may defeat and quell / The source of all erection” (contagiai/atormentai a todos/ Que a vossa atividade possa frustrar e reprimir / As fontes de toda ereção - numa tradução extremamente literal). Uma acepção fundamental de erection para os elisabetanos referia-se a ascender socialmente ou a promover. Timon odiava os alpinistas sociais. O próprio sentido sexual de erection, também presente aqui, era secundário. Mas a nova tradução ignora a ressonância social, transformando o verso num gracejo sórdido: Timon agora fala da “fonte de todas as ereções”.


Shakespeare tomou emprestado quase todos os seus enredos e escreveu para um teatro que exigia apenas alguns adereços, nada de cenário e nenhuma iluminação artificial. A única coisa shakespeariana em suas peças é a linguagem. Nunca vou entender por que motivo, quando hoje em dia assistimos a uma produção de Shakespeare, encontramos nos créditos do programa um diretor de combates, um dramaturgo, um coreógrafo, iluminador e cenógrafos - mas raramente um especialista mergulha na linguagem e na cultura de Shakespeare.


Uma fundação de empreendedores da área de tecnologia financia a nova empreitada do Festival de Oregon. Preferiria que ela gastasse o seu dinheiro contratando especialistas, e que permitisse que os 36 promissores dramaturgos americanos se dedicassem a escrever um novo sucesso da Broadway, como Hamilton, em lugar de desperdiçarem seu tempo eliminando o que há de shakespeariano em Rei Lear ou Hamlet.


(The New York Times  - TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA; publicado em O ESTADO DE SÃO PAULO, 11.10.2015)



JAMES SHAPIRO É PROFESSOR DE INGLÊS NA UNIVERSIDADE COLUMBIA E AUTOR DE THE YEAR OF LEAR: SHAKESPEARE IN 1606

sábado, 11 de abril de 2015

UM PIO DE CORUJA QUE ECOA ALÉM DA NOITE







Não sou crítico teatral. Aliás, não aprecio nem a crítica nem os críticos (gente sem pernas que ensina os outros a andar, já disse alguém). Não vou, portanto, fazer crítica do espetáculo O PIO DA CORUJA, de Eliana Iglésias, em cartaz às sextas-feiras, na sala Miriam Muniz, do Teatro Ruth Escobar, em São Paulo (ficha completa ao final). Minha intenção é, apenas, tecer alguns comentários sobre o fazer dramatúrgico, ou melhor, sobre o fazer teatro nos tempos atuais.

Não sei bem como começar, porque há muito, muito o que dizer. Começo, portanto, com a ideia, que eu não posso deixar de aceitar, de que o teatro pode ter duas funções: a de entretenimento e a de nos fazer pensar.

Há espetáculos a que assistimos com prazer, rimos o tempo todo, ou nos deleitamos durante aqueles minutos ou horas em que atores se movimentam num palco iluminado com leveza e arte. É o teatro do entretenimento. Desopila nosso fígado, alumia um momento de nossa vida. Saímos leves, livres e soltos, agradecidos pelo que acabamos de ver, de ouvir, de compartilhar, muitas vezes. Vamos, depois, ao restaurante, ou para nossas casas, conversamos com outras pessoas e... duas horas depois, já nem nos lembramos mais do que vimos. Sabemos que foi bom, lembramos uma duas piadas, uma ou duas situações cômicas, e só. Aos poucos esvanece em nossa memória o espetáculo e pouco fica para lembrar. Só sabemos que foi bom. Enquanto durou.

Isso é mau teatro? Não necessariamente. Pode até ser, mas por razões outras que não estão ligadas ao entretenimento, ao esquecimento depois de algum tempo. Porque esse tipo de espetáculo tem a finalidade precípua de nos entreter e, se o faz bem, com um texto inteligente, com bons atores, iluminação correta, boa direção, figurinos etc., nada contra. Muito ao contrário: viva o teatro de entretenimento, que o velho e sempre lembrado teatro de revista (um gênero, infelizmente, desaparecido de nossos palcos) sabia fazer muito bem!

Há, por outro lado, o teatro "sério" - drama ou comédia, não importa. É aquele que nos faz pensar. Que nos incomoda. Que nos tira de nossa zona de conforto e nos lança nos insondáveis mistérios da própria existência, mesmo que não queiramos pensar nisso. Nem preciso citar Shakespeare, com seus dramas e suas comédias, para saberem do que estou falando.

Quando saímos de espetáculos assim, podemos ir a um restaurante ou para casa, conversar com outras pessoas, divertir-nos com outras coisas, mas o espetáculo não sai de dentro de nós. Fica lá, como uma experiência que levamos para o resto da vida. Podemos esquecer enredo, podemos esquecer o rosto dos atores e seus nomes, podemos esquecer quase tudo, mas não conseguimos esquecer que ele mexeu com nossa visão de mundo. E continua lá, sem que possamos fazer nada.

Depois desse longo introito, vamos ao PIO DA CORUJA. Não, não vou dizer que esse espetáculo pertence exatamente ao segundo tipo de teatro que descrevi acima, porque ainda é muito cedo para isso. Vi-o ontem. Não sei se vai ficar em minha memória ou, possivelmente, na memória dos que o viram pelo resto de suas vidas (algo quase impossível de saber). Mas foi um espetáculo que mexeu comigo. Com minha sensibilidade. Não, não exatamente com minha sensibilidade, mas com algumas cordas sensíveis de meu pensamento, de minha visão de mundo.

Vou ter que abrir mais um longo parêntese, antes de voltar a falar do assunto deste texto. Paciência. Esse espaço é, justamente, para discutir dramaturgia, discutir teatro. Então, quem aqui aporta espera exatamente isto: um certo aprofundamento dos temas, mesmo que canse a paciência do leitor mais apressado.

Dizia o mestre Chico de Assis (e a lembrança de suas teses tem tudo a ver com o espetáculo que estamos analisando, como você verá a seguir) que teatro não conta uma história, apresenta um enredo. Ou, mais: que vamos ao teatro  não para seguir uma "historinha", mas para conhecer personagens, seres humanos que não são exatamente humanos, mas que nos representam, a nós, seres humanos, no palco, com  nossas dores, nossos traumas, nossos desejos e ambições, e toda a gama de sentimentos e emoções de que somos capazes, debatendo-se nas redes do destino, da vida, da história, lutando, enfim, para realizar uma vontade que se volta contra eles, em conflitos internos e externos.

Estão aí os fundamentos do drama (no sentido moderno do termo): um(a) protagonista que tem uma vontade e encontra um obstáculo para sua realização; um(a) antagonista; conflitos e um enredo em que se movem todos os personagens.

O drama, no entanto, só se realiza no palco: com atores, direção, cenário, iluminação, figurinos etc. E para se realizar, o elemento principal, sem dúvida é a interpretação dos atores. Nesse quesito, há, basicamente, duas grandes correntes: a de Stanislavski, que sistematizou, modernizou e deu as bases do grande teatro moderno, histriônico, que estamos acostumados a ver quase que diariamente não só no palco, como no cinema e na televisão; e a de Brecht, dramaturgo alemão que revolucionou o teatro moderno no final da primeira metade do século passado, que preconizava um "distanciamento" do ator em relação à personagem, uma técnica que permite ao encenador e aos atores tocar não apenas a sensibilidade do espectador, mas principalmente sua inteligência, seu julgamento moral, sua ética. Por isso, mais do que épico, o teatro de Brecht é chamado pelo mestre Chico de Assis de teatro ético.

Por Stanislavski, o palco é uma caixa fechada. Tem quatro paredes, uma delas vazada para o voyeurismo do público, que acompanha as emoções que fluem do palco para a plateia e a comovem - ou não. Já o alemão Brecht preconizava a quebra da quarta parede, de modo que palco e plateia se interliguem, com os atores representando não para si mesmos ou uns para os outros, mas voltados para o público, buscando atingir a mente do espectador, com fábulas, cantos e danças.

Lembro a primeira vez que tive o alumbramento do teatro brechtiano. Com Chico de Assis. Devo dizer que fui seu aluno, no SEMDA - Seminário de Dramaturgia do Arena, durante muitos anos. Sabia e sei muito de suas teses sobre dramaturgia e um pouco sobre o teatro brechtiano, mas tive raríssimas oportunidades de ver uma direção do próprio Chico, isto é, suas ideias brechtianas colocadas em prática, no palco, num espetáculo. Uma delas, talvez a primeira, a que mais estranhamento me causou foi uma direção dele de um espetáculo do ator e dramaturgo Toni D'Agostinho, num texto de sua autoria, O LAPSO. Brecht, para defender seu método de atuação, escrevia quase sempre fábulas, textos próximos do drama épico, passados às vezes em lugares distantes. Já o texto do Toni era um drama formatado num monólogo de um ator que esquece o que vai fazer no palco, que tem um lapso. Ao final do espetáculo, eu estava perplexo: não é que não havia emoção, mas a atuação era algo completamente diferente de tudo o que eu havia visto até então. O drama não se consumava com histrionismo, com contorções físicas, com gritos em seus momentos de maior intensidade, com a emoção do ator à flor da pele, mas vinha direto para dentro de minha cabeça, com o ator, o próprio Toni, voltado o tempo todo para mim, como se falasse comigo e não consigo próprio, como era comum num monólogo.

Manifestei meu estranhamento ao mestre. E então, a revelação: isso era Brecht! O estranhamento era, então, aquilo? Sim. O ator não é mais um "cavalo" da personagem, mas um instrumento pensante e autônomo, que tem a função de apresentar ao público a personagem. É como se ele dissesse o tempo todo: olhem, esse é "fulano", eu lhes apresento "fulano de tal", personagem de um enredo que eu estou contando a vocês como aconteceu. Ou algo por aí. Difícil de explicar. Fácil de verificar, quando se depara com esse tipo de atuação. De que se pode ou não gostar.

Agora, definitivamente, O PIO DA CORUJA. Já conhecia o texto. De uma leitura realizada há algum tempo na Biroska, numa das salas da promoter Lilian Gonçalves. Sabia que era um bom drama. Bem escrito. Num estilo meio impressionista. Um impressionismo com tintas várias, sem compromisso estrito com esta ou aquela corrente. E sabia que isso era bom. Outra tese do Chico de Assis (sempre ele!) era que jogamos muita coisa boa do passado na lata do lixo e era preciso resgatar e reinterpretar e reusar aquilo que considerássemos bom do passado, seja distante ou recente. E mais: que não se tivesse escrúpulo de misturar, drama com melodrama. Isto com aquilo. E Eliana, aluna também do Chico, escrevera seu texto com base em suas teses dramatúrgicas. Mas, leitura é leitura, mesmo que dramática. Agora, o espetáculo está dirigido e dirigido não segundo as regras do drama tradicional, do método de Stanislavski, mas conforme o figurino de Brecht. E o "estranhamento" de Brecht provoca na plateia aquilo que senti a primeira vez: mas o que é isso? É drama, mas não é "dramático"? Passa-se o enredo em algum lugar que não sabemos bem onde é, com uma personagem que não tem nem nome, com dois atores que são - ou não - duas personagens, com música e a música, quando pontua o melodrama, este é imediatamente ironizado pela personagem, jogando a nós, espectadores, num labirinto de emoção e razão que perturba nossa zona de conforto e nos leva a pensar: o que são, afinal, esses seres humanos? o que somos nós? E então eu vejo o que está ali o tempo todo: sob a supervisão de Chico de Assis, o seu último trabalho, o teatro do mestre está quase todo ele resumido na direção da Eliana, na representação dos atores André Latorre e Zeca Coelho e sua economia de gestos e fala, na quebra da quarta parede, no cenário limpo e simples, nos poucos objetos de cena, na iluminação e na música ao vivo, às vezes comentando a ação, às vezes complementando-a, no ritmo lento, mas necessário ao entendimento do texto.

Um espetáculo teatral não é bom ou melhor do que outro, por seguir esta ou aquela orientação ou "escola". Um espetáculo de teatro é bom, quando nos tira de nossa zona de conforto. Mesmo que por pouco tempo. E quando fica em nossa cabeça, como a ideia num trapézio machadiano, só podemos dizer que ele atingiu, sim, um nível de qualidade que respeita a nossa emoção ou a nossa inteligência. E isso é o mínimo que posso dizer de O PIO DA CORUJA é que esse pio ainda ecoa, muitas horas depois, em minha cabeça e parece que veio para ficar por muito, muito tempo.


Serviço:

O PIO DA CORUJA

Texto e direção: Eliana Iglésias.
Supervisão: Chico de Assis.
Atores: André Latorre e Zeca Coelho.
Local: Teatro Ruth Escobar, sala Miriam Muniz (cerca de 60 lugares) - Rua dos Ingleses, 209 - Bela Vista, São Paulo/SP.
Dia e hora: às sextas-feiras, 21h30.

Preço: R$50,00 (durante o mês de abril, preço único de R$25,00).
Estreia: 10 de abril de 2015.