quarta-feira, 22 de maio de 2024

INÁ CAMARGO COSTA ESCREVEU: LEMBRANÇAS DE TENNESSEE WILLIAMS

 

Uma Rua Chamada Pecado, 1948
Acervo Cedoc/FUNARTE


Seja o senhor quem for... eu sempre dependi da bondade dos estranhos...


Blanche Dubois (*)


Mesmo reconhecendo-o como um dos grandes dramaturgos americanos do período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, críticos e historiadores são reticentes em relação à obra de Tennessee Williams. Este ensaio procura identificar uma das razões do mal -estar que sua dramaturgia provoca.


Repressão da Memória

Tennessee Williams foi revelado para o grande público do teatro americano (leia-se Broadway) a 31 de março de 1945, quando estreou com imenso sucesso de público e crítica a sua The Glass Menagerie. Estava co m 3 4 a nos, o que para ele significava sucesso tardio e arduamente conquistado.

De um modo geral, os estudiosos de sua vida e obra, mesmo reconhecendo nele o poeta das vítimas da repressão em geral e da sexual em particular, passam ao largo daquela informação, sendo muito raros os que dedicam meia dúzia de linhas a uma experiência anterior (Batt/e of Angels, 1940) que resultou em fracasso de bilheteria. Outra aventura teatral também esquecida é a coletânea de peças em um ato, American Blues, premiada pelo Group Theatre em 1939. As peças deste volume, carimbadas com a rubrica "preocupações sociais e radicalismo", costumam ser despachadas para o arquivo das "superadas" experiências teatrais dos anos trinta. E não se fala mais no assunto, pois a regra americana ensina que só o sucesso interessa.

No caso de um escritor como Tennessee Williams, essa estratégia de rasurar o passado tem conseqüências nefastas em mais de um sentido: de um lado, desarma até mesmo a análise de seus sucessos e, de outro, deixa completamente inexplicada a maior parte de sua obra. Para nos restringirmos a números: 32 peças curtas, 7 médias e 24 longas, além de 15 filmes, um dos quais é baseado em um de seus romances (The Roman Spring of Mrs. Stone) que, assim como os livros de poesia e contos, não entraram nesta conta.

O próprio dramaturgo colaborou com a estratégia, na medida em que, por exemplo, repetiu seguidamente a informação de que passou toda a vida reciclando seus materiais, de modo que um conto virou peça em um ato, depois peça longa, depois filme, ou o contrário, como The Glass Menagerie, que primeiro foi o conto Portrait of a girl in glass - onde, segundo o autor, se encontra o verdadeiro retrato literário de sua irmã Rose, matriz de Laura em Menagerie -, depois roteiro (The Gentlemann Caller) recusado por Hollywood e finalmente a peça que o consagrou. Com base neste tipo de declarações, devidamente confirmadas por longas análises comparativas, acredita-se que quem identificou um par de temas já está em condições de explicar o conjunto da obra e, portanto liberado de entrar em certos detalhes, sobretudo os que escapam ao esquema.

Mas se for verdade que a supressão de um problema, como ensinam os homeopatas, costuma ter por resultado o seu ressurgimento em circunstância agravada, podemos antecipar desde já algumas dificuldades para interessados na obra de Tennessee Williams. Por exemplo: como explicar que Camino Real (reciclagem de American Blues) permaneça sem classificação, e quando muito seja considerada apenas uma coletânea de cenas escrita sob a influência da leitura de O Sonho de Strindberg?

Reconhecendo que seria pedir demais à crítica norte-americana um interesse maior que o simples registro por fracassos de bilheteria ou, mais grave, por textos que nem sequer ultrapassaram a condição de montagem experimental, vejamos então como ela trata os sucessos. No caso de Tennessee Williams, também não adianta muito, pois até mesmo A Streetcar Named Desire, uma quase unanimidade em sua condição de obra-prima, tem sido, desde a estréia na Broadway em 1947, objeto de cobranças no mínimo improcedentes (nos termos da peça) pela própria critica favorável. John Gassner, absolutamente insuspeito, por ter sido o primeiro a apostar no dramaturgo (patrocinou a montagem de Battle of Angels depois de tê-io selecionado para participar de um seminário que ministrava na escola de Erwin Piscator), cobra-lhe disciplina, multiplicação desnecessária de motivos e (pasmem!) lamenta a incapacidade de alcançar a dimensão trágica dos personagens. E Roger Boxill, um dos especialistas mais simpáticos à obra, não ultrapassa a sua defesa em nome de um conceito tão problemático como o de "naturalismo lírico". Concordando com Eric Bentley, que identificara a estruturação das peças com base antes no conto moderno que na "peça-bem-feita", aponta sem maiores sobressaltos os recursos técnicos da narrativa cinematográfica, bem como a inspiração em temas e motivos semelhantes aos de Tchekov (aliás, informação mais de uma vez dada pelo próprio dramaturgo, que estranhava a unilateralidade da crítica teatral, aparentemente interessada apenas em sua também declarada simpatia por temas provenientes de D.H. Lawrence).

Não vale, evidentemente, a pena perder tempo com a crítica conservadora, que desde a primeira peça rejeita a obra de Tennessee Williams em nome da "moral e dos bons costumes", ou de valores estéticos como a "peça-bem-feita", quando não de ambos. Mas para aproveitar a oportunidade de exercício do veneno ao estilo americano, não custa registrar a aristocrática objeção de Mary MacCarthy que, em nome de um critério como a verossimilhança de personagem, escreveu que Blanche até podia ser uma alcoólatra, mas ter sido expulsa de uma cidadezinha como prostituta e ao mesmo tempo se comportar como uma aristocrata convencional, isso seria inaceitável, por incoerência (logo, inverossimilhança). Consta que, por causa desse despropósito, Gore Vidal passou anos sem condições de ler as criticas teatrais da prestigiada colaboradora da Partisan Review.

É ainda menos produtivo concluir, depois dessa pequena amostra, que Tennessee Williams é um dramaturgo polêmico, como se costuma fazer nestes tempos de liberalismo intelectual triunfante. O principal problema é que afetos e desafetos acabam batendo no mesmo limite, ultrapassado pelo dramaturgo desde os primeiros exercícios de American Blues: sua obra, decididamente, não obedece ao padrão convencional que, entretanto continua orientando críticos e historiadores do teatro.

Para nos limitarmos ao primeiro sucesso, The Glass Menagerie, logo na primeira rubrica encontramos o seguinte alerta: "O narrador é uma convenção explícita da peça. Ele adota com a convenção dramática todas as licenças que servem a seus propósitos".

Diga-se, entretanto, em favor da crítica, que em mais de uma ocasião o dramaturgo curvou-se a suas exigências. Ele próprio confessa em suas memórias que acredita ter finalmente encontrado a forma da peça-bem-feita em Cat on a Hot Tin Roof e por essa razão, isto é, pelos critérios é sua peça preferida, já que os personagens são interessantes, verossímeis e tocantes; a unidade de tempo e lugar é consistente, etc.,

Para fins de especulação: quem conhece o senso de humor, com acentuada queda para o humor negro, do autor dessas memórias, deve considerar também outros dados. Cat estreou em 1954 e foi imediatamente aclamada pela crítica, recebendo o prêmio Pulitzer. Um ano antes, depois de muito tempo de batalha, inclusive com o texto, ele conseguira convencer Cheryl Crawford a produzir Camino Real (até então material de exercícios no Actors' Studio). Esta peça de estilo strindberguiano fora tão ferozmente rejeitada pela crítica que a produtora decidiu retirá-la de cartaz, sem condições financeiras de arriscar uma temporada. Não é impossível, pois, que o dramaturgo tenha escrito a sua "peça preferida" com um olho nos críticos, para mostrar-lhes que sabia escrever como pediam, e outro na bilheteria. No que andou bem, porque ao sucesso na Broadway seguiu-se o de Hollywood, garantindo-lhe uma situação financeira bastante confortável, capaz de justificar até uma aposentadoria. O fato de ele ter prosseguido, escrevendo um fracasso após outro, até às vésperas da morte, impunha perguntas a que ele respondia sempre tergiversando: "Elia Kazan foi o único a compreender o desespero com que eu preciso escrever para continuar vivendo", entre outras.

A outra vitória (de Pirro) da crítica está na opinião do próprio dramaturgo em relação a Menagerie (acabou concordando justamente com BrooKs Atkinson, que achava desnecessária a parte narrativa da peça) ou a Camino Real: ele morreu acreditando que não conseguira encontrar a estrutura adequada à peça, reiterando a sua convicção sobre a importância da forma acabada em qualquer obra.


Relações Perigosas

Os biógrafos de Tennessee Williams costumam se interessar por episódios mais ou menos folclóricos de sua vida, como o emprego arranjado pelo pai na companhia de sapatos, o trabalho em hotel vagabundo, ou pequenos golpes financeiros na cordata avó materna para financiar seus estudos universitários (área de dramaturgia), entre outros ao longo dos anos trinta. Mas a tentativa de se filiar ao programa da Works Progress Administrationtion em Chicago, onde o Federal Theatre desenvolvia radicais experiências de esquerda, não desperta muito interesse.

Outro detalhe considerado irrelevante é o prêmio conferido pelo Group Theatre a American Blues, peça em um ato onde estão registradas suas observações durante as andanças dos anos negros da Depressão, da mesma forma que não interessa relacionar o Group Theatre a seu sucessor, o Actors' Studio, fundado em 1947. E assim fica incompreenssível a preferência de Tennessee Williams por Elia Kazan, o diretor de A Streetcar Named Desire. A afinidade estética, que também envolveu a escolha de Marlon Brando e Jessica Tandy para os papéis de Stanley KowalsLy e Blanche Dubois, acaba parecendo simples questão de gosto pessoal, independente de critérios ou linguagem teatral. Isto quando não acontece de algum historiador provocar um curto-circuito para afirmar que o Actors' Studio foi criado em função das peças de Williams. (Se bem que neste caso estejamos no campo das analogias delirantes, mas com fundamento nas aparências: já que Stanislavski desenvolveu o seu método um pouco em função das peças de Tchekov, nada impede que Lee Strasberg tenha adaptado ao teatro americano aquele método em função do equivalente americano de Tchekov. Este é o tipo do engano produtivo.) Mas se houver alguma dúvida sobre o descompromisso do dramaturgo com o Studio, basta ver o tom divertido em que ele relata a derrota imposta por Bette Davis ao "método", quando da produção de The Night of the Iguana, em 1961.

Assim como não fez do Actors' Studio uma causa, este dramaturgo radicalmente individualista nunca foi militante de qualquer outra, muito menos das que a esquerda propôs nos anos 30, sem prejuízo de suas convicções democráticas e declarações de apreço pelo socialismo (anti-soviético, é claro, sobretudo devido à questão homossexual, como explicou pacientemente ao poeta Yevtuchenko). Da mesma forma, assumiu, pagando a conta no que lhe competia, posições perfeitamente claras, ao recusar autorização para montagem de suas peças em teatros segregacionistas ao sul do país, entre outros incidentes que envolveram integridade intelectual.

Simplificando bastante, pode-se dizer que os vínculos entre Williams e a tradição americana de esquerda acabaram passando para a história, sob as bênçãos do macarthismo, e no interesse de todos os envolvidos, como relações estritamente pessoais. Com isso, ficou na sombra a possibilidade de se examinarem seus textos, mesmo os maiores sucessos, como um elo importante para bem e para mal - entre as experiências teatrais dos anos trinta (patrimônio de que Williams se apropriou) e a Broadway depois de 1945, para não falar nada da Off-Broadway e outras experiências que pelas mesmas razões também não entram para a história.


Memória, Sensibilidade e Narrativa

Todos os que escrevem sobre Tennessee Williams acabam concordando que a matéria de seu teatro é constituída por lembranças sensíveis de um passado irremediavelmente perdido. Difícil é perceber quais são os instrumentos adequados para tratar com ela, ou por que o dramaturgo, por assim dizer, não cria heróis e vilões propriamente ditos; ou ainda, entender que não é o dramaturgo o nostálgico de tempos míticos, mas um tipo muito preciso de gente que ainda está por aí. Numa palavra: é difícil entender por que ele não escreve dramas.

Como a maioria acredita que ele queria escrever nessa forma, apenas falhava num ou noutro aspecto, alguns críticos acabam caindo na armadilha da projeção e chegam a afirmar que Tennessee Williams, em nome da nostalgia dos tempos melhores, recusa, através de figuras desagradáveis (como Stanley Kowalski), o presente e suas promessas, sem levar em conta que, mesmo no âmbito biográfico, quando muito a geração de seu pai desfrutou os tempos de opulência das tradicionais famílias sulistas, já que mesmo este sempre dependeu do trabalho para viver e sua mãe, que inspirou Amanda Wingfield, era filha de um pastor que sempre viveu em condições modestíssimas. Em outras palavras: não tendo nascido em "berço de ouro", não só o dramaturgo não tinha lembranças para mitificar como, ao contrário, dedicou sua arte a explicitar as dificuldades, inclusive mentais, de um tipo de mitômanas sulistas que conheceu muito bem. Por outro lado, suas convicções socialistas não lhe permitiam abraçar o novo mito do "american way of life" em construção.

Para trabalhar com o seu material, o dramaturgo precisaria recorrer, como fez acertadamente, a experiências como o "drama analítico" de Ibsen e aos pseudodiálogos dramáticos de Tchekov, por estarem em questão em suas peças o passado e o presente, não o futuro (não há futuro), como pressupõe o drama. Por conseqüência, não havendo perspectivas, nem uma ação a ser impulsionada pelo diálogo dramático, quando não é monólogo travestido, o diálogo se transforma em conversação, através da qual ficamos sabendo de eventuais ocorrências de tipo dramático na vida pregressa de algum personagem (caso mais evidente de Blanche em Streetcar).

De alguma forma percebendo que seu material era de ordem épica e não dramática, e estimulado pelas experiências de que participou na escola de Erwin Piscator, para continuar com o exemplo de Menagerie, nosso dramaturgo não teve dúvidas em recorrer às técnicas do teatro épico, tais como a projeção de legendas (como Piscator e Brecht) ou de fotos, criando também um narrador (como Thornton Wilder em Our Town, de 1937) que assume desde o inicio o foco narrativo da peça. Ainda hoje público e crítica ficam desnorteados com esse recurso não-dramático, passados 50 anos da estréia de Menagerie e outro tanto desde que Strindberg pela primeira vez o usou deliberadamente. Bem entendido: agora não se trata mais de recusá-lo como ilegítimo, que ninguém mais se arrisca a tanto; a dificuldade é perceber que a presença de um narrador retira do texto a objetividade que o drama sempre pretendeu ter e por isso obriga a análise a dar conta de sutilezas e especificações que o drama não tinha.


Perfis de Mulher sem Drama Nenhum

Summer and Smoke foi produzida entre nós em 1950, numa interessante demonstração de independência de colonizado, já que fracassara na Broadway. Apostando no dramaturgo que lançara entre nós em 1948, com The Glass Menagerie (À margem da Vida, na tradução de Esther Mesquista), e já que perdera para os Artistas Unidos, de Henriette Morineau, também em 1948, o bonde de A Streetcar Named Desire (Uma rua chamada pecado, na tradução de Bibi Ferreira e Carlos Lage), o TBC não teve dúvidas em lançar uma peça de Tennessee Williams que apresentava um papel perfeito para Cacilda Becker, mesmo desacompanhada da recomendação de crítica e bilheteria americanas. Traduzida por R. Magalhães Jr., Summer and Smoke chama-se no Brasil Anjo de Pedra, devido à estátua que ocupa o centro da cena.

Cacilda Becker foi assim a criadora de nossa primeira Alma Winemiller e Natália Thimberg a da segunda. Ambas foram calorosamente aplaudidas por Décio de Almeida Prado, que desde logo percebeu o especial talento de Tennessee Williams para criar papéis femininos capazes de consagrar atrizes, como aconteceu com as brasileiras. Se Alma Winemiller promoveu Natália Thimberg de boa a excepcional atriz, a de Cacilda ficou num plano "muito, mas muito superior a tudo o que fez anteriormente"4.

Nossa primeira Amanda Wingfield é criação de Marina Freire e Blanche Dubois, depois de Henriette Morineau, foi recriada por Maria Fernanda em 1962, numa produção do Teatro Oficina dirigida por Augusto Boal, agora em tradução para Um bonde chamado Desejo, de Brutus Pedreira (nos anos 70 Eva Wilma também fez o papel).

Curiosamente, e apesar da insistência do dramaturgo sobre o interesse de Laura em Menagerie, ninguém dá muita importância a esse papel. A começar por Laurette Taylor na Broadway e Anna Magnani na Itália, só as atrizes que fazem Amanda chamam a atenção dos críticos.

Embora todos se concentrem em Amanda, Blanche e Alma, por certo Laura também faz parte desse primeiro grupo de mulheres criadas por Tennessee Williams para mostrar alguns desastres da história americana. Laura foi derrotada por uma sociedade incapaz de lidar com gente frágil como os seus bichos de vidro, enquanto a leoa Amanda, a matriarca do politicamente correto ("Eu já disse para nunca, jamais usar essa palavra [aleijada]; você só tem um pequeno defeito, quase imperceptível"), tendo que carregar o fardo, luta pela sobrevivência com as armas que lhe restam, auxiliada pelos delírios que a aristocracia sulista (que só conhece de vista) e as imagens de Gone with the wind lhe sugerem, inclusive as do passado de Scarlett O'Hara, de que se apropriou. Diante da cada vez mais próxima partida de seu filho, única fonte de sustento dos três, só é capaz de pensar num casamento arranjado para a filha como solução de seus problemas básicos (isto é: como convém a um aristocrata, colocar-se com o seu fardo sob a guarda do primeiro incauto) - são os anos mais negros da Depressão. Com tanto material para um melodrama dos mais lacrimejantes (houve quem identificasse a peça como tal), a técnica - capaz de dar dimensão histórica às quatro figuras de Menagerie - e quem sabe o conhecimento de Mãe Coragem de Brecht podem ter salvo Tennessee Williams do desastre completo. O natural distanciamento que a presença de um narrador impõe obriga ao permanente exame crítico desses personagens: todos, inclusive o narrador, são o fruto mesquinho de uma sociedade e de um tempo que só produzem medíocres (não podemos nos esquecer de que o próprio narrador, um poeta de almoxarifado e desesperado consumidor de filmes de aventura, também não deu em nada: tornou-se um marinheiro cujo pior fardo é a culpa pelo abandono da mãe e da irmã). Qualquer tentativa de fazer tragédia, drama ou até mesmo comédia com essa gente resultaria em peça inócua, igual a milhares por aí. O dramaturgo, tendo feito uma opção programática pelo que depois chamou "little people", a ser reconhecido em sua dimensão própria, e não querendo fazer melodrama, teria mesmo que recorrer ao que chamava, em sua limitação terminológica, procedimentos não-convencionais no drama, pois não estava disposto a jogar no time dos edificantes.

Como ninguém se interessou pelo cenário inspirado em Porgy and Bess de Streetcar, que determina em termos históricos, estéticos e cênicos um enquadramento muito preciso dos personagens, Blanche foi transformada em mártir por uma crítica que antipatizava com o otimismo ingênuo e a vulgaridade americanos do pós-guerra, tudo devidamente encarnado na figura do trabalhador Stanley Kowalski. Mas é bom não esquecer que as platéias de 1947 percebiam com clareza o que havia de acintosamente torpe no comportamento e na linguagem aristocráticos de Blanche, e por isso volta e meia apoiavam as reações de Stanley. O dramaturgo estabelece desde a primeira cena que Blanche, como a Mãe Coragem de Brecht, não é personagem com a qual alguém possa se identificar: ela chega atirando, tanto na vizinha (a quem pede grosseiramente para sair) quanto na própria irmã, imediatamente transformada em subalterna, para não falar em seu desprezo ostensivo, de tipo cultivado, por Stanley. O desfecho de sua trajetória, sempre "dependendo da bondade de estranhos", menos que "justiça" moral do dramaturgo (como pensa Arthur Ganz, por exemplo), é antes a pergunta lançada a todos a respeito dos rumos daquela sociedade. Da mesma forma, Stanley, cujo comportamento chega ao repulsivo no sentido próprio, embora justificável de um angulo machista (Blanche se insinuou junto a ele desde o início, ela não estava pedindo para ser violentada?), tem normalmente atitudes saudáveis diante da vida: está interessado em sexo, comer, beber, jogar e trabalha para vencer na vida, com boas possibilidades, já que é caixeiro viajante (Arthur Miller vai tratar do assunto em seguida). Os momentos de confronto entre Stanley e Blanche, entretanto, não são suficientes para definir um antagonismo de tipo dramático: esses personagens precisariam ser menos complexos para essa possibilidade se verificar. E, como vimos, não faltou quem os simplificasse a ponto de cobrar coerência do dramaturgo.

Summer and Smoke é um caso ainda mais grave de inapetência dramática. Legítima descendente do drama de estações de Strindberg - até num literal sentido imprevisto, de passagem do tempo, que cobre o verão, o outono e o início do inverno -, esta peça se dilui propositalmente em um prólogo e doze cenas que elaboram o permanente desencontro entre duas pessoas que poderiam se amar, se a sociedade não desenvolvesse em ambos um insuportável superego (Roger Boxill foi um dos poucos analistas a perceber que tanto Alma quanto John só se expressam por clichês). Novamente, fértil material para melodrama ou "romance das moças" que Tennessee Williams preferiu não escrever. Pelo contrário, com toda a simpática perfídia de que poucos poetas neste século são capazes, mostrou o inferno em vida a que estão condenados os espertinhos adeptos da "alta cultura" e os gênios de província, autoproclamados aristocratas do espírito e por isso mesmo conformados com as regras de uma estrutura social falida, pagando o preço adicional de terem apenas uma leve desconfiança do que estão perdendo. O fracasso desta peça na Broadway pode ser ao menos em parte atribuído à dificuldade de se decidir, em cada cena, se é para rir ou para chorar. E Williams não facilita a vida de ninguém, assim como Tchekov, que depois dizia não entender por que o público não ria em suas comédias.

Epílogo Precoce

A obra de Tennessee Williams dependia de um público que já ao tempo de sua estréia na Broadway começava a seguir um caminho oposto ao tomado por ele. O próprio sucesso de Cat on a hot tin roof mostrava o tipo de concessões necessárias à continuidade de seu diálogo com aquele público. Ele fez todas elas (e mais algumas) nas adaptações de textos para o cinema, mas prosseguiu em suas experiências, cada vez menos aceitáveis.

Em sua própria avaliação, o aparecimento do chamado "teatro do absurdo" teria feito dele um dramaturgo ultrapassado, que, entretanto não desistia de continuar tentando, mesmo ao preço de voltar à condição de "teatro experimental", em produções Off-Broadway.

Superadas já nos anos 50 as condições que minimamente possibilitaram o seu aparecimento e sucesso (mesmo à custa de muito mal-entendido), e inviabilizadas aquelas que dariam sentido à retomada de sua obra, resta-nos apenas procurar entender um pouco melhor que seus contemporâneos, até porque contamos com o distanciamento histórico, o sentido mais profundo de sua crítica às alternativas abertas pela sociedade americana. Em sua opinião, uma das mais produtivas fábricas de neuróticos.




(*) No Brasil, essa peça recebeu o título de Uma Rua Chamada Pecado, quando desempenhada, mas manteve o título anterior na versão publicada.



Fonte:

Iná Camargo Costa




sexta-feira, 17 de maio de 2024

JOÃO ALFREDO DAL BELLO ESCREVEU: BEM-AVENTURADOS OS MAUS, PORQUE POSSUIRÃO A TERRA

 


(Der gute Mensch von Sezuan)


 

RESUMO


O presente trabalho investiga, através do destino da prostituta Chen Tê, o caráter parabólico da obra d'A alma boa de Setsuan", de Bertolt Brecht. O autor, a partir da matéria alegórica, defende a tese de que é impossível ao homem, nas atuais circunstâncias sociais, ser ao mesmo tempo bom e viver uma existência condigna.



ZUSAMMENFASSUNG

Die vorliegende Arbeit untersucht an den Schicksalen des Strassenmädchens Shen Te den Parabelcharakter des von Brecht als Parabelstück verstandenen Werks "Der gute Mensch von Sezuan". Aus dem gleichnishaften Stoff wollte der Autor die These gewinnen, dass es dem Menschen unmöglich ist, unter den herrschenden Verhältnissen der Gesellschaft menschenwürdig zu leben und zugleich gut zu sein.



1. EM TORNO DA PARÁBOLA BRECHTIANA

O nome de Bertolt Eugen Friedrich Brecht — Bert Brecht — é único entre os muitos dramaturgos épicos modernos, não só pela excelência e a quantidade da sua obra, mas também por ser o único a não isolar a produção para o palco da reflexão sobre a prática do teatro. Como dramaturgo e teórico do épico, lançou um desafio de intensa repercussão à problemática de "fazer teatro". Antes da preocupação com a forma, preconizava Brecht uma concepção teatral de caráter sociopolítico. Quanto à forma, devia ser épica, oposta à dramática, que considerava ultrapassada, por induzir o espectador à condição de degustador e consumidor do que se desenrola no palco, envolvendo-o emocionalmente com a ação c os personagens, até aliená-lo da observação crítica e julgadora. Não se quer dizer com isto que Brecht pretendia negar ao espectador o prazer de assistir a peça teatral; desejava, antes, proporcionar-lhe um maior: o da participação produtiva, vale dizer, o prazer de julgar ativamente o que se produz no palco e de comparar tudo com a situação vigente além das paredes do teatro.

Não se entenda também que ele postulasse uma instituição moral. Seu teatro teria de ser um centro de entretenimento, que originasse, contudo, reflexão sobre fatos, e daí conclusões e resultados. Segundo Brecht, a forma tradicional de teatro tinha a grande desvantagem de apresentar os fatos como fixos, imutáveis, mesmo os acontecimentos históricos. E uma tal abordagem inculcaria no espectador a crença passiva de que tudo se repete fatalmente, sem haver quaisquer possibilidades de mudanças na dinâmica da vida e da sociedade. É claro que com um instrumento deste tipo — assim Brecht queria seu teatro de convicções marxistas — dificilmente a sociedade seria transformada. Seu trabalho deveria ser exemplar e revolucionário. O objetivo, como ele confessa, é "nitidamente visível, se bem que, mesmo para mim seja difícil de atingir", um mundo, no qual o "homem preste auxílio ao homem"[1]. Fundamentalmente se pode caracterizar o drama brechtiano como o que evidencia um conteúdo político-didático, baseado numa compreensão muito pessoal do marxismo.

A forma escolhida é a de parábola, com algumas exceções, como em Furcht und Elend des Dritten Reiches (Temor e Miséria do Terceiro Reich), por apresentar pormenores de uma realidade que escapariam à generalização própria da parábola. Se "parábola é uma comparação alegórica, na qual o conjunto de elementos evoca, por comparação, outras realidades de ordem superior "[2] , e se teatro tem de agir pedagogicamente sobre o espectador, levando-o a uma revisão crítica da sua posição face à realidade política e social, o método brechtiano de fazer teatro se justifica.

Segundo W. Hink, são três os pressupostos básicos da parábola brechtiana: 1) confiança na capacidade de aprendizagem do espectador; 2) convicção da compreensibilidade do mundo; 3) confiança na capacidade de transformação, ou como diz Dasso Saldívar, na "transformabilidad" do mundo.

Marianne Kesting divide o drama-parábola de Brecht a partir de diferentes aspectos estilísticos, que apresentam grande riqueza de variações formais, p.ex.: a peça didática de caráter realista; a parábola grotesca; a parábola de caráter oratório; parábolas biográficas, e parábolas livres que se utilizam de um exemplo histórico, legendário ou mítico [3]. É neste último grupo que encontramos Der gute Mensch von Sezuan (A alma boa de Setsuan) [4 ].

Procuraremos enfocar na parábola que embasa A alma boa de Setsuan o tema dialético do bem e do mal numa sociedade que transforma o homem, mas que também pode vir a ser transformada por ele.

2. A ALMA BOA DE SETSUAN. Sobre a obra

Brecht começa a escrevê-la em Berlin, retoma o trabalho, já exilado, na Suécia, na Dinamarca e na Finlândia. Somente no começo de 1941 o trabalho está concluído. Desde o início até este momento a peça exige-lhe aproximadamente 15 anos. O projeto inicial em Berlin, ainda sob o título Die Ware Liebe (A mercadoria Amor), surgiu no final dos anos 20 e remontava a uma ideia anterior: Fannv Kress Oder der Huren einziger Freund (Fanny Kress ou O único amigo das Prostitutas).

O punctum saliens de A alma boa de Setsuan, qual seja a temporária transformação de um homem bom em mau, causada pelo amor ao próximo e solidariedade com os companheiros de infortúnio, já se encontra naquela primeira concepção. Na verdade, uma longa génese. Passo a passo a matéria vai tomando contornos, até chegar à forma final, como a conhecemos. Permanece, contudo, se compararmos a concepção inicial com o trabalho concluído, a tese de que a pessoa que é ou quer ser boa está por isto mesmo condenada a fracassar. Fanny Kress intenta, transformada em homem, fugir do ambiente da prostituição. Fracassa, entretanto, porque suas companheiras, a quem também pretende ajudar, cuidam exclusivamente de seus interesses individuais, pondo todo o plano a perder.

A alma boa de Setsuan trata, basicamente, como em Die sieben Todsünden (Os sete pecados mortais), da autoalienação do homem. Seu argumento e sua análise cênica se resumem ao seguinte:

Três deuses visitam a província de Setsuan, com a missão de encontrar, se ainda possível, homens bons, pois "há dois mil anos se escuta o mesmo clamor: "O mundo não pode continuar como está, ninguém consegue permanecer bom". Se logrado o intento e constatado que ainda há um número satisfatório de pessoas que levam uma existência condigna, poderá então o mundo continuar como está, por não ser mau de todo. Tematicamente a parábola remete à visita dos dois anjos a Sodoma e Gomorra, ou aos hóspedes de Filemon e Baucis.

Já de início parece estar o experimento dos deuses fadado a malograr, pois nem sequer alojamento para a noite lhes é concedido. Em Setsuan até os pobres e oprimidos se caracterizam pela mesma indiferença e egoísmo dos seus opressores. São todos eles, grandes e pequenos, um catálogo vivo de "virtudes às avessas": mentirosos, ladrões, parasitas. Diante desse quadro de desregramentos parece terem os deuses perdido tempo e esperanças. Uma prostituta, Chen Tê, todavia, abrindo mão do cliente que lhe traria o dinheiro necessário para o aluguel vencido, dispõe-se a hospedar os deuses. Nela encontraram os deuses a alma boa que procuram. Na manhã seguinte, ao se despedir, recompensam-na, ainda que com certa relutância, por não convir a deuses o envolvimento em questões econômicas, com "mais de mil dólares de prata", com os quais Chen Tê, dias após, adquire uma pequena tabacaria. De posse desta, espera "agora poder fazer o bem a muita gente". E, por praticar a caridade, começa a ser explorada pelos seus próprios beneficiados: a Sra. Chin, antiga proprietária da tabacaria, que já a lograra na venda, extorque-lhe agora arroz para si e sua família; uma família de oito pessoas, um marceneiro, um aviador desempregado e sua mãe exigem de Chen Tê comida e teto. Em pouco tempo o "anjo dos subúrbios" está exposto à bancarrota. "Eles são maus, não são amigos de ninguém, brigam por uma tigela de arroz, só pensam em si mesmos: quem é que pode ficar zangado com eles?"

É nesta hora de crise que surge o primo Chui Tá. Chui Tá é, por assim dizer, o outro lado de Chen Tê, ou seja: para poder sobreviver, a alma boa tem de se tornar má. Assim, a bondosa Chen Tê se converte no desalmado Chui Tá, que leva os negócios a florirem, mesmo que para tanto tenha de explorar e entregar à polícia os protegidos de sua "prima". Portanto, o que ela constrói como Chen Tê, destrói como Chui Tá. A metamorfose ocorre no meio da peça. Com a máscara e o termo do "primo" nas mãos, Chen Tê comenta a situação. Cantando a "Canção da impotência dos deuses e dos bons", assume com as roupas também o caráter do mau.

O desaparecimento do anjo dos pobres, porém, causa suspeitas e, como tarda seu regresso da viagem inventada pelo "primo", crescem boatos de que este a teria assassinado para apossar-se dos negócios. Levado ao tribunal, que é presidido pelos deuses, o réu confessa sua dupla existência:

"Pois sou eu mesma: Chui Tá e Chen Tê!

A vossa antiga recomendação de ser boa e viver conforme o bem me dividiu em duas, como um raio.

Eu nem sei como foi que aconteceu: ser boa para mim e para os outros, ao mesmo tempo, não era possível.

Era demais, servir a mim e aos outros. Como é difícil este vosso mundo!

A fome é tanta, é tanto o sofrimento!

A mão, que se quer estender a um pobre, ele tenta arrancar de uma vez só!

Quem procura ajudar a um desgraçado, acaba se desgraçando também!

Quem é que pode resistir assim à tentação de ser também ruim, se, para não morrer, a carne alheia se tem de comer?

"Alguma coisa deve estar errada em vosso mundo: por que é que o mal é premiado e o bem não ganha nada, quando por sorte não é castigado?"

Impotentes diante do dilema do bom, que para sobreviver é coagido a se tornar mau, e da inutilidade dos seus mandamentos, os deuses, após recomendar mais uma vez a Chen Tê que seja razoavelmente boa e que tudo se arranjará, optam por desaparecer, levados por uma nuvem cor-de-rosa. Sorrindo e abanando para a desesperada Chen Tê, afastam-se dela, indiferentes. Cai o pano.

No epílogo um dos atores vem à ribalta apresentar pedido de desculpas ao público.

"E agora, público amigo, não nos interprete mal: sabemos que este não foi um excelente final! Nós fazíamos ideia de uma lenda de ouro e ela, disfarçadamente, assumiu um tom de agouro. Ficamos tristes também ao notar, por nosso lado, tanto problema em aberto e o pano de boca fechado.

Qualquer sugestão, portanto, acatamos com respeito: recolham-se às suas casas e disto tirem proveito!

Não poderíamos ter maior mágoa em confessar o nosso próprio fracasso, se alguém não nos ajudar. Talvez nada nos ocorra, agora, de puro medo: isso acontece! Entretanto, como encerrar este enredo? Já batemos o bestunto e nada achamos no fundo: se fossem outros os homens, ou se outro fosse o mundo, ou se os Deuses fossem outros ou nenhum — como seria?

Nós é que ficamos mal, sem nenhuma fantasia!

Para esse horrível impasse a solução no momento talvez fosse vocês mesmos darem trato ao pensamento até descobrir-se um jeito pelo qual pudesse a gente ajudar uma alma boa a acabar decentemente. . .

Prezado público, vamos: busquem sem esmorecer! Deve haver uma saída: precisa haver, tem que haver!

3. O BOM HOMEM MAU E SEU MUNDO INVIÁVEL

A peça se alterna em dez cenas longas e curtas. As cenas curtas têm o propósito de comentar e discutir a ação; nas longas é tratado o problema do bem e do mal. Na dialética bem/mal dois fatores se mostram responsáveis pelo determinismo de se ter de ser mau: a sociedade como tal e a própria natureza humana,

É impossível ser bom em Setsuan. Os deuses acreditam ter encontrado uma alma boa e aconselham-na a perseverar assim (deve-se observar que eles não reprovam a conduta moral de Chen Tê). Mas, enquanto deuses, não precisam suar pelo pão de cada dia e desconhecem, portanto, o peso da injunção que fazem a Chen Tê. O primeiro entrave para o aspirante à bondade é, pois, de caráter económico: o bom tem de esvaziar o bolso para encher o estômago do próximo, reduzindo seu próprio estômago ao estado do bolso.

Os deuses não se modificam nem evoluem no decorrer da ação. Tanto no início, como no fim, sua mensagem permanece inalterada: “seja boa e tudo se arranjará!" Se é correto afirmar com Brecht que "só o morto permanece impassível diante de boas razões", por esta mesma razão, pode-se dizer que os deuses não são mais do que uma farsa de si mesmos, ou então um produto da concepção ingênua e da falsa consciência que Chen Tê tem de sua própria condição social e económica. Brecht insere a presença dos deuses na peça como um elemento artificial, até descartável, sem significação substancial. Não são eles bons ou maus, nem podem exigir bondade ou castigar a maldade. E, ao se desvanecer numa nuvem rósea, deixam claro ser fictícia a sua existência e, por extensão, inócuos os seus mandamentos.

Que dizer, então, da bondade de Chen Tê? Seria a bondade reprovável?

Como todas as personagens de Brecht, Chen Tê é um tipo governado por uma tendência, por um impulso quase mecânico que determina suas ações. "Ela não pode dizer não!" Isto quer dizer que a sua bondade não decorre de uma decisão pessoal. Não é sem razão que Di Chin e seu bando desconfiam haver outros motivos dor detrás do acentuado desprendimento do "anjo dos subúrbios".

Chen Tê personaliza o comportamento caritativo burguês, que se manifesta na instituição de bazares de caridade e iniciativas filantrópicas que, por serem paliativos, deixam o necessitado à espera de novo auxílio. Assim sendo, seria útil e mesmo desejável para a transformação da sociedade de Setsuan a presença e a atuação de um "anjo dos subúrbios"?

Pondo em questionamento a necessidade que Chen Tê sente de ser boa, chega-se à advertência frequente e insistente nas obras de Brecht: "Schrecklich ist die Verführung zur Güte." (Terrível é a sedução à bondade). Ele demonstra em seus dramas — e neste sentido são todos eles "peças didáticas" — que a humanidade está corrompida pela violência, pelo egoísmo e o individualismo.

Será certamente sufocado todo aquele que andar em sentido contrário ao da sociedade. A bondade pode, portanto, ser um mal. Numa das anedotas do Senhor Keuner, que são, como dizia Brecht, “tentativas de se fazer citáveis os gestos", o autor se expressa, como que comentando A alma boa de Setsuan, recém escrita, da seguinte forma: "O Sr. Keuner receia que o mundo possa tornar-se inabitável quando se exigir crimes muito grandes ou virtudes muito grandes para que o homem possa garantir seu sustento. Assim o Sr. Keunez foge de um pais ao outro, pois em todos os lugares exigem demais dele, seja espírito de sacrifício, valentia, esperteza ou sede de justiça, ou, por outro lado, crueldade, etc. Todos esses países são inabitáveis."[5]

Em Mutter Courage und ihre Kinder (Mãe Coragem e seus filhos)"[6], Kattrin, moça surda, que "tem bom coração", é assassinada ao tentar, com toques de tambor, despertar e alertar as sentinelas da cidade de que os inimigos estão por tomá-la. Tudo o que queria era poupar a vida das crianças "inocentes e que nada sabem".

Na sociedade entrevista por Brecht, os expoentes humanos, os que se destacam dos demais, são dispensáveis. É também de Mãe Coragem a seguinte ponderação: "Além do mais, onde há muita virtude, é sinal de que alguma coisa vai mal. . . . Num país bom não há necessidade de virtudes: todos podem ser bem comuns, nem bons, nem maus, e, por mim, podem até ser covardes." Há também na peça Das Leben des Galilei (Galileu Galilei) [7] uma passagem bastante expressiva a este respeito. Decepcionado com a pusilanimidade do mestre, que renega suas convicções diante dos ferros da Inquisição, o discípulo atira ao rosto do sábio: "Infeliz o país que não tem heróis!" "Não," replica Galileu, "antes, infeliz o país que tem necessidade de heróis!"

É na crítica ao caos social e na repulsa ao apelo idealista endereçado ao indivíduo que Brecht se distancia dos dramaturgos de crítica social do Expressionismo. "Para se tornar homens, os heróis devem renunciar a tudo o que fazia deles heróis (o nome, a consciência de seus feitos.) Trata-se de abdicar da própria personalidade para fundir-se na massa, para aceitar a verdade da História e poder fazê-la em seguida." "Brecht admite que, se o homem é feito e pode ser modificado pelo mundo, o mundo também é feito pelo homem, deixando-nos a tarefa de concluir que o mundo, portanto, pode ser modificado pelo homem".[8] O oprimido é, pois, também responsável pela opressão que sofre.

O enredo dramático de A alma boa de Setsuan, enquanto parábola, não teria necessariamente de ser situado numa cidade chinesa, nem de ligar-se à situação sócio-política específica daquela sociedade. É uma situação modelo num estado modelo, num determinado momento histórico e, como tal, substitutiva-construtiva. É por isso mesmo que uma encenação calcada na correspondência histórica direta não corresponde à concepção do autor. É preciso reconhecer que as fábulas das peças brechtianas têm a sua localização histórica e que Brecht se torna atual pela historização. Que a exploração do homem pelo homem é constante, universal e multifacetada, evidencia com vigor a poesia Pragen eines lesenden Arbeiters (Perguntas de um operário que lê![9]) do mesmo Brecht: em todas as épocas e em todos os continentes (mesmo nos já submersos) os homens fracassaram coletivamente, uns por prepotência, outros por passiva submissão, na construção de um mundo habitável.

Vale para a expectativa com que o "Stückeschreiber", o escritor de peças — concebeu seu teatro aquilo que Arnaldo Saraiva diz na apresentação de sua seleção e estudo de poemas de Brecht: "Brecht não o deixou dito, que saibamos, mas é de crer que ele gostaria que seus poemas fossem envelhecendo à medida que fôssemos entrando no seu futuro. Mas todos sabemos, ou podemos agora saber, como eles continuam "novos": atuais. Infelizmente para nós, que felizmente os temos. "[10]



NOTAS



1 LEISER, Erwin. O homcm do não. In: et alii. Bertolt Brecht. Bad Godersberg, Inter Nationes, 1966. p. 20.

2 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dici0Ñário da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1975. P. 1032.

3 KESTfNG, Marianne. O teatro alemão desde o final da segunda grerra mundial. Humboldt, 1972.

4 BRECH, Bertolt. A alma boa de Setsuan. In: Teatro de Bertolt Brech. Rio de Janeiro, Civilizaçao Brasileira, 1977. v.2.

5 HECHT. werner. Bertolt Brecht, Arbcitsjournal. Frankfurt S.M.. 1973. v.3 p.4B.

6 BRECH, Bertolt. Mãe Coragem. In: . Teatro de Bertolt Brecht. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 1976. v.l.

7 Galileu Galilei. In: -

8 DORT, Bernard. O teatro e sua realidade. São Paulo, Perspectiva, 1977. p.292.

9 KESTINC}. Marianne. Fragen eines lesenden Arbeiters. m: Bertolt Brecht in Selbstzeugnissen und Bilddokumenten. Hamburg, Rowohlt, 1959. p.97.

10 SARAIVA, Arnaldo. Bertolt Brecht Poemas. Lisboa, Presença, [1976]. p.24.



João Alfredo Dal Bello

Universidade Federal do Paraná



Fonte:


sábado, 11 de maio de 2024

ENTRA EM CENA O TEATRO GREGO[1]

 


Na Grécia antiga, a procissão saía às ruas, cantando e se comovendo com a própria melodia em culto ao deus Dioniso (ou Baco), deus do vinho. Aquele que lhes ensinara o delírio da embriaguez e a exaltação dos sentidos: o prazer. Aos poucos elas vão abandonando suas vidas cotidianas: seus trabalhos, suas tristezas, as injustiças sofridas e se envolvendo nessa maravilhosa celebração divina.

No altar, de forma solene, o sacerdote prepara a cerimônia, na qual um bode será oferecido em sacrifício e sua carne distribuída entre os presentes. Todos esperam o grande momento de ingerir a carne sacrificada. A procissão se aquieta, por um instante, a fim de ouvir as orações do sacerdote.

Nas proximidades está o jovem Téspis que logo assumirá a grande missão de desdobrar-se em vários seres, transmitindo às pessoas outras imagens e outros rostos que não sejam o seu. Téspis chega apressado em Atenas, o coração em chamas e a boca prestes a proferir qualquer coisa impulsiva, apaixonada e violenta.

O povo não pode vê-lo ainda, tão disperso que está com a cerimônia. Até o momento em que Téspis abre a boca, veste-se com túnicas, máscaras cabeleiras e sandálias e faz de sua carroça um altar.

O sacerdote distribui pedaços do animal para o povo enquanto se embriagam de vinho e se enlouquecem de paixão. Os cantos são cada vez mais fortes até que Téspis os silencia com um grito: ele afirma ser o próprio Dioniso, encarnado, vivo. O silêncio assume a cena e a figura mascarada é quem a domina. O deus Dioniso sorri no céu.

Sólon o chefe do governo de Atenas irá acusar Téspis de ser o maior impostor surgido até então: o primeiro ator. Apesar das acusações, impôs-se como ator, tornou-se popular e querido em todas as cidades nas quais se apresentava. Toda a Ática acabou se entregando ao fascínio deste homem que, representando, levava os homens para mais perto dos deuses.

Foi neste momento místico, envolvidos por um estado de exaltação e graça que tiveram raízes a tragédia e a comédia grega.


A tragédia grega

No primitivo ritual dionisíaco vemos a força do ditirambo – o canto apaixonado constituído de elementos tanto alegres quanto tristes que narravam o nascimento e a vida de Dioniso. Deste coro originou-se a tragédia: a representação viva, feita por atores, das histórias míticas dos deuses.

Inicialmente o canto trágico foi marcado pela improvisação apaixonada do povo e ia crescendo juntamente com a adoração, o delírio e a embriaguez. Com o tempo foi que se introduziram no ditirambo os textos líricos, sempre em versos. Era formado por homens que se travestiam de sátiros[2] e entoavam cantos uníssonos. Posteriormente dividiu-se em dois, estabelecendo um diálogo alternado de perguntas e respostas. O corifeu era o responsável por organizar este diálogo e se destacava dos coreutas pelo fato de cantar e dançar. O exarconte era quem respondia as perguntas dos coreutas. Sua voz distinguia-se de todas as outras e por isso ganhou unidade autônoma, era tão indispensável ao ditirambo que acabou acrescendo-se de outros aspectos incluindo a representação. Passou a se chamar hypocrates, aquele que finge, ou seja, ator.

O povo deixa de ser procissão para se tornar plateia e as encenações carregadas de paixão levam-nos a catarse [2] – a purificação das almas através da descarga emocional provocada pelo drama.

Originalmente a tragédia não se dividia em atos ou cenas, mas em partes dialogadas e partes cantadas. A primeira era em número de três e constituíam a abertura – prólogo. Em seguida vinha um trecho entoado pela orquestra e pelo coro. Depois o primeiro episódio, feito pelo ator, uma parte lírica (stásimo), entoada pelo coro, o segundo episódio, o segundo stásimo, o terceiro episódio, e a parte final (êxodo), cantada pelo coro.

As primeiras manifestações teatrais em Atenas eram feitas na Praça do Velho Mercado. Depois de um acidente causado pelo desabamento das arquibancadas, foi transferido para um terreno consagrado a Dioniso e somente no século IV a.C. surgiram os primeiros teatros construídos de pedra. Quanto aos cenários podemos distingui-los em quatro grupos principais: o templo, o palácio e a tenda onde ocorriam as cenas principais, e a paisagem marinha ou campestre. As roupas variavam de acordo com a personagem.

O conteúdo da tragédia era o mito. Inicialmente apenas a lenda de Dioniso e de outras personagens que se relacionavam a ele. Porém o sucesso das tragédias era tão grande que passaram a buscar novos assuntos e lendas que pudessem servir de enredo. Recorreu-se às histórias sobre heróis e também sobre outros deuses.

Quando criaram os heróis, a imaginação do povo iniciou um grande protesto às injustiças e vê-los representados nos teatros, frente aos deuses e ao destino, excitava os ânimos e convidava os cidadãos a pensarem e a agirem de novas maneiras. Em paralelo as divindades continuam sempre presentes no palco grego. Pune, adverte, profetiza, orienta, julga e massacra.

O herói não é um homem comum. Ele é capaz de enfrentar e desobedecer aos deuses. E as tragédias irão narrar suas ações e reações diante do sofrimento imposto pelo destino. É aí que irá descobrir o bem e o mal, possibilitando a catarse no espectador. Neste ponto reside o valor educativo e religioso da tragédia.

Este sofrimento se dará quando o herói infringe uma ordem estabelecida pelos deuses antes mesmo dos homens. A culpa por quebrar qualquer ponto desta cadeia ordenada irá cair não somente naquele que o fez, mas também sobre todas as gerações vindouras. Assim criaturas inocentes pagavam com fatalidade as culpas que herdaram de seus ancestrais.

Há o destino condenando as ações dos homens. Os deuses que podem ser bons ou maus, dominadores, libertadores, justos ou injustos. Há uma ordem divina que será rompida a qualquer momento e por qualquer motivo. A partir do sofrimento imposto ao herói pelo destino, é que ele deverá assumir uma atitude e será sobre esta atitude que se organizara a ação dramática.



Principais tragediógrafos e seus textos:

Ésquilo: Os persas; Prometeu acorrentado; As suplicantes; Sete contra Tebas; Oréstia (trilogia): Agamenão, As Coéforas e As Eumênides.

Sófocles: Electra; As Traquínias; Ájax, Filoctetes; A trilogia: Édipo Rei, Édipo em Colona,Antígona.

Eurípides: As Bacantes; Medéia; Ifigênia em Áulis; Ifigênia em Táurida, As Troianas; As Suplicantes; As Fenícias; Andrômaca; Hipólito; Hércules; Orestes; Helena; Hécuba; Alceste e Ione.


A Comédia Grega

Assim como a tragédia, a comédia grega está relacionada às celebrações ritualísticas em celebração à vida, aos feitos e aos poderes misteriosos do deus Dioniso.

Cronologicamente a comédia encontra-se um século depois da tragédia. Teve suas raízes aprofundadas nas cerimônias “falofóricas”[4]; ao cortejo foram adicionadas elementos de outros cultos além das farsas dos fliacos, estes representavam, em simples palcos de madeira, cenas da vida cotidiana; utilizavam-se de máscaras, vestes grotescas e linguagem licenciosa. Foi a partir deste elemento cômico, no ritual dionisíaco, que surgiu a comédia, isolada da cerimônia religiosa assumindo-se unicamente como representação, alegre e zombeteira. À frente do cortejo cômico seguia as canéforas, mulheres jovens responsáveis por carregar os objetos necessários ao sacrifício do bode. Atrás seguiam os falófaros, escravos que empunhavam lanças como símbolos fálicos.

Para os gregos existem duas forças centrais que regem o universo: 1) Páthos: o sofrimento do homem diante dos desígnios do Destino. 2) Sarcasmo: o desmascaramento das motivações que guiam os homens em seus atos, muitas vezes grandiosos só em aparência. Ambos são capazes de causar emoção, educar e conscientizar.

No século IV a.C. Alexandre Magno invade e conquista a Grécia. Tudo o que havia sido então erigido, a cultura, os valores e os conceitos entram em decadência. E é neste contexto que a comédia encontra o seu ápice: chega o momento de fazer rir para fazer pensar.

Aristófanes aproveita deste momento desolador para criar, em suas comédias, um sistema de críticas e escárnio. Atacava tudo o que, para os gregos desta época, significava novas conquistas: filosofia, poesia, música, matemática. Atacava tanto o Estado quanto os governantes. Nada escapava à sua pena. Nem os sofistas, nem Sócrates, Nem Eurípedes. Quanto maior se tornava a necessidade de um conforto espiritual, mais Aristófanes utilizava-se de suas comédias para erguer a moral dos cidadãos.

A estrutura da comédia foi definida por Aristófanes: A primeira cena iniciava-se com um prólogo. Em seguida vem o párodo: a entrada do coro, composto por 24 pessoas (os coreutas) que personificavam os belicosos velhos. A terceira parte é um intervalo; A quarta parte é a parábase: o coro, que está agrupado entre o altar de Dioniso e a cena, coloca-se em linha de baralha frente ao público. Há uma longa pausa. Um entreato no qual é dado um resumo do que se passou na cena (quinta parte). A sexta parte segue-se com o corifeu destacando-se do coro e recitando, para os espectadores, alguns versos que denunciam o pensamento do comediógrafo. Os atores transformam-se em oradores. A sétima parte reúne várias cenas que não se ligam entre si e que apontam as consequências das ações dos personagens. O êxodo é a última parte: o coro sai ruidosamente, abandonando a cena, como se deixassem os cidadãos sozinhos, à própria sorte.

Os cenários eram feitos a fim de retratar realisticamente as casas da cidade, porém todas eram idênticas: andar térreo, teto plano, balcões e janelas. Os figurinos variavam segundo os papéis. As máscaras foram se desenvolvendo ao longo dos anos, chegando a existir cerca de 40 tipos diferentes delas. E embora a comédia tenha caráter grotesco, ela é inspirada nos mesmos mitos inspiradores da tragédia.

O público gargalhava e essa gargalhada penetrava nos atores como única forma de não sucumbir. Porém a cultura Grega era arrasada e o riso era incapaz de reerguê-la. E ao contrário dos Gregos os romanos nunca consideraram o teatro como uma manifestação nacional, necessário a educação moral e cívica. A arte dramática nunca conseguiu enraizar-se profundamente em Roma.


As obras de Aristófanes

Os Acarneus; Os Cavaleiros; As Nuvens; As Vespas; A Paz; Os Pássaros; Lisístrata; As Tesmoforias; As Rãs; Assembléia de Mulheres e Pluto.



Notas:

[1]Mitologia Vol. 3. AMARAL, Maria Adelaide de A. S. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 800, pp.769-800.



[2] São divindades menores da natureza, meio homem, meio bode. O troco é de homem, da cintura para baixo bode, cauda e orelhas de bode, pequenos chifres na testa, narizes achatados, lábios grossos, barbas longas e órgãos sexuais de dimensões bem acima da média - muito frequentemente mostrados em estado de ereção.



[3] Para Aristóteles, a catarse é muito importante porque “ao inspirar, por meio da ficção, certas emoções penosas ou malsãs, especialmente a piedade e o terror, ela nos liberta dessas mesmas emoções”.



[4] Nas cerimônias “falofóricas” o falo (símbolo da fecundidade) era levado em procissão e acrescentavam-se, aos hinos, zombarias e escárnios contra os espectadores.



Fonte:




sexta-feira, 3 de maio de 2024

UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE O TEATRO DO BRECHT, por Isaias Edson Sidney

 

 

"Mãe Coragem" / foto: Ariela Bueno


Costuma-se denominar o teatro de Brecht como teatro épico. Melhor seria chamá-lo de “teatro ético”. Porque é de ética que tratam suas peças. Ética social e, principalmente ética política. Porque é essencialmente político o teatro de Brecht. E mais: não é um teatro dramático.

Expliquemos. Brecht era comunista. Sua dramaturgia tem por objetivo trazer ideias que pudessem ser discutidas pelo público dialeticamente. Para isso, busca uma nova forma de teatro não aristotélico, não dramático. Os recursos que usa para isso são a fábula e o distanciamento. A fábula, ou seja, uma história já conhecida ou uma história que se passe num local distante, pela qual se possam discutir ideias, sem a emoção do teatro dramático, sem a catarse do teatro dramático. Ou seja, ele propõe um dilema – um dilema ético – sobre o qual o público decide. Como o teatro, mesmo o de Brecht, não lida com “historinhas”, mas com enredos, ou seja, os fatos são apresentados em forma de conflitos e/ou contradições entre personagens ou dentro das próprias personagens, o dramaturgo lança mão do que se costumou chamar de distanciamento.

Há o distanciamento do ator, ou seja, o ator brechtiano não tem a intenção de “viver”, de “internalizar” as emoções e contradições da personagem, mas apresentá-la ao público. Esse é um tema complexo e foge ao escopo desse artigo. O que nos interessa, no momento, é o distanciamento através da fábula: geralmente os enredos (ou a “história”) das peças brechtianas se passam em locais distantes, como, por exemplo, na China, em “A alma boa de Tsesuan”, ou usa uma personagem histórica, como em “Galileu Galilei”.

Já nessa escolha está o dramaturgo convidando o espectador não para a vivência de emoções dramáticas, mas para a observação mais ou menos neutra do que acontece. Dissemos “mais ou menos” neutra intencionalmente, porque não é que não possa haver “emoção” no teatro brechtiano, mas é o tipo da emoção definida por Fernando Pessoa: “o que em mim sente está pensando”. Ou seja, uma emoção controlada pela razão, que está sempre em primeiro lugar.

Outro recurso utilizado por Brecht para esse distanciamento é a música, o que ocorre em muitas peças, porque, para ele, o teatro é também divertimento, é também prazer, prazer estético, embora o lúdico se apresente como algo que distenda a mente do espectador para a compreensão do que ele deseja que o espectador entenda.

E assim, chegamos ao núcleo do teatro que denominamos de ético, ou seja, o dilema ético: ele apresenta, muitas vezes, duas visões distintas de um mesmo problema, para a decisão do público. Brecht não quer a catarse do teatro aristotélico, em que o objetivo do dramaturgo é levar o espectador a perceber que a “falha ética” das personagens levou a uma espécie de “punição dos deuses”, por contrariar um desígnio da “república”, por contrariar valores da sociedade, como o crime cometido por Édipo, ao matar o próprio pai e casar-se com a mãe, embora sem o querer, sem o saber. Mas, se ele o fez, e precisa ser punido. Contrariou uma lei da pólis. E Édipo arranca os próprios olhos, para não “ver”, não enxergar o crime. Em todo o teatro dramático, de origem aristotélica, está implícito, de alguma forma, essa catarse que o teatro de Brecht não quer, não deseja e não propõe.

Chegamos a um ponto importante desse nosso comentário: as montagens feitas no Brasil das peças de Brecht e as análises que aqui se fazem sobre elas. E sobre isso, afirmo que, quase sempre há dois equívocos: na montagem e nos comentários. Senão, vejamos, como exemplo, duas peças conhecidas e que foram montadas ou que têm sido montadas aqui e são razoavelmente conhecidas: “Mãe Coragem” e “A alma boa de Setsuan”.

Mãe Coragem. A peça se passa durante a guerra dos trinta anos, quando as batalhas são intermitentes. Mãe Coragem arrasta sua carroça entre as trincheiras, para abastecer os contendores. Quando há batalhas, ela ganha dinheiro. E fica feliz. Quando não há batalhas, ela não ganha nada. E se desespera. Enquanto isso, não percebe que as batalhas levam seus filhos. Sim, ela sofre a perda deles, mas, como ela é, na expressão de meu mestre Chico de Assis, em suas aulas no SEMDA (Seminário de Dramaturgia do Arena), “o vampiro da guerra”, ou seja, ela se alimenta da guerra, a perda dos filhos é, para usar um termo moderno, apenas um “efeito colateral”. Mãe Coragem, portanto, não é uma personagem dramática. Ela representa aquilo que Brecht propõe: a discussão dos malefícios da guerra. Não tem sua trajetória “sofredora” o objetivo de fazer o expectador ter empatia por ela, sofrer por ela, entrar em catarse, mas, ao contrário, discutir eticamente o que a guerra faz com os seres humanos.

Já em “A alma boa de Setsuan”, quando a protagonista dirige sua empresa como ela mesma, ou seja, com “bondade” e altruísmo, ela tem prejuízo. Como não consegue fazer diferente, cria um alter-ego, um disfarce, um primo que é ela mesma, mas com personalidade oposta, capaz de fazer “maldades” e desenvolver a empresa, sem atitudes altruístas ou paternalistas. Através dessa fábula, Brecht propõe ao expectador verificar o funcionamento, por dentro, da máquina capitalista. Ou seja, quando o “patrão” não segue suas leis de mercado, quando se deixa levar pelo sentimento, o negócio não prospera, o risco de falência fará com que muitos percam o emprego. Ou, ainda, se houver falência, não haverá mais empregos. E todos sofrerão. Ao contrário, quando o “patrão” endurece as regras, segue as leis de mercado, o negócio prospera e, embora muitos percam o emprego, muitos outros o conservarão. E uma boa parcela da sociedade agradecerá, por continuar trabalhando, embora haja outra parcela que empobreça e feneça, sem esperança. Esse o dilema ético: será o capitalismo um sistema realmente capaz de prover as necessidades humanas? Assim, não há que se possa ter empatia pela personagem – ela mesma ou seu duplo -, nem há possibilidade de qualquer catarse, porque não há propriamente um desrespeito à lei da pólis, mas uma situação com que todos convivemos e sobre a qual precisamos ter consciência.

Portanto, não há personagens “bonzinhos” ou “mauzinhos”, não há mocinhos ou bandidos, no teatro de Brecht. Não é o escopo de “A alma boa de Setsuan” propor ao espectador emocionar-se com a “bondade” ou a “maldade” da personagem, mas analisar e compreender seus atos, para tomar consciência de uma realidade. O mesmo acontece com a “mãe coragem”: sua coragem está em enfrentar a guerra e, ao mesmo tempo, perder os filhos. Cabe ao expectador julgar seus atos, não comover-se com seu sofrimento ou, talvez fosse melhor dizer, com seu pseudo-sofrimento.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

MILENA CARASSO ESCREVEU: A ALMA BOA DE SETSUAN E A BONDADE

 

(Denise Fraga em A Alma Boa de Setsuan; João Caldas) 



A alma boa de Setsuan trata-se de um texto de Brecht escrito nos anos 40 e que agora toma lugar em uma montagem de Marco Antônio Braz, em temporada popular, no Teatro Tuca.

O enredo começa quando os deuses vêm à Terra a fim de encontrar uma alma boa. Acreditam eles que no nosso mundo isto está tornando-se cada vez mais raro, o que é, logicamente (?), preocupante.

Na montagem em questão os deuses são apresentados de forma cômica e descompromissada de uma figura religiosa no sentido institucional.

Ao chegarem à província de Setsuan, procuram um lugar para pernoitar e não encontram, a princípio, ninguém que os acolhe, confirmando suas suspeitas iniciais de que os homens tornaram-se egoístas e incapazes de dividir. Já quase desistindo, porém, deparam-se com Chen Tê, a prostituta da cidade, que lhes dá um lugar para dormir deixando assim, para isto, de atender a um cliente. Convencidos de que se trata este de um inquestionável e incomum caso de generosidade desinteressada, os deuses oferecem à moça uma alta quantia em dinheiro. Feliz com seu prêmio, Chen Tê deixa de ser prostituta e abre uma tabacaria, no intento de mudar de vida.

Aí começam os conflitos. O povo da cidade, antes acostumado a vê-la como uma mulher pouco digna de respeito, agora quer sua ajuda. Vendo que ela se encontra numa situação diferenciada, em que está provida de uma série de recursos, vão até ela pedindo abrigo, comida, favores. A índole boa de Chen Tê a impede de negar. Sempre disponível, ela atende a todos que a solicitam, metendo, assim, em palavras simples, os pés pelas mãos.

Numa situação limite, decide então compor uma persona falsa. Inventa um primo, veste-se de homem, engrossa a voz, e reveza-se entre este personagem e ela mesma. Como o primo Chui Tá, a ex-prostituta consegue, disfarçada, ter a dureza que em sua forma tradicional é incapaz de demonstrar. Nega, exige direitos, e, em último caso, torna-se mesmo antiética e revela capacidade para os atos maus.

A partir daí a peça se desenrola com muitas situações e uma evolução interessante, incluindo um elemento literário precioso, o amor. Entretanto, este motivo inicial é já suficiente para levantar uma reflexão que requer tempo e, por que não, coragem.

A questão ética que o belíssimo texto de Brecht levanta é a da bondade e generosidade, não em seu aspecto mais óbvio e clichê, mas sim discutindo a liberdade que se tem ou não em ser bom e generoso e a viabilidade destas virtudes no mundo real e moderno. Será possível ser bom num mundo em que se passa fome? E, acima de tudo, qual é o tamanho da fome que justifica cruzar o limite da ética? A resposta pretendida por Brecht, ao que parece, é positiva, mas não ingênua.

A generosidade, embora um valor indiscutivelmente louvável, deve ser acrescida de firmeza. Sim, a gentileza deve ser firme para que possa sustentar-se e, em ação, promover produtos e não perdas.

Aquele que é gentil e que compromete assim sua própria integridade, acaba por desistir da bondade ou perder sua capacidade material e psicológica de exercê-la. Dando tudo e ficando, consequentemente, desprovido de recursos, o gentil torna-se inútil até para si mesmo, além de promover a manutenção perversa das relações de ingratidão e abuso. O que consegue ser gentil, porém firme, pode, no entanto, continuar exercendo generosidade sem que para isso precise dar mais do que tem, ou ainda, o que é importante, do que quer dar.

Falar em alguém bom, ou pior, bonzinho, é quase um desrespeito. A bondade perdeu seu valor social há muito tempo, quando em lugar do gentil passou a ser valorizado o truculento. Aquele que se apresenta socialmente como bom é frequentemente visto como fraco, quando não bobo. A ele não se defere respeito, porque, em detrimento da bondade, prefere-se respeitar o que desperta medo, o que ameaça.

Assim, um empregador, por exemplo, quando conhece sua equipe de trabalho, seus funcionários, terá mais chance de êxito, aparentemente, se demonstrar dureza em vez de docilidade.

A dúvida que fica é: precisa ser assim? Será que não seríamos todos coniventes com isso, no movimento de respeitar quem ameaça e abusar do que oferece, tornando a bondade quase impraticável?

É possível que seja simplesmente uma escolha. De exercício diário e difícil, é verdade, mas exequível e real quando intencionado. O segredo talvez resida em não ter medo de ser gentil e, em consequência, ser abusado. O medo da velha história de estender a mão e ver arrancado o braço. Não será possível estender a mão, firme, sólida, generosa, e, ao mesmo tempo, se necessário for, impor sua necessidade de respeito e a integridade do tal braço, que, neste momento, não pode ser doado?

É provável que o limite seja tênue e que um elemento imponha-se no caminho; o narcisismo do bom. É comum que aquele que faz bondades não possa aceitar ser rejeitado, decepcionar e, assim, quem sabe, despertar ódio e frustração. Mais comum ainda é que esta necessidade de prover ao outro e ser pelo outro visto como um verdadeiro redentor implique em uma falta de capacidade de prover a si mesmo.

A resposta para a pergunta de "o que justifica a falta de ética?" pode ser tudo ou nada. Por isso, pensar diariamente nas escolhas, sobretudo naquelas que concernem às relações, é uma prática de caráter e sabedoria.

Deve haver, acredito, um equilíbrio saudável. O que não parece possível é dar sequência a um estilo de vida, aparentemente o vigente, em que a bondade torna-se rara e desvalorizada, e não seja mais pretensão de ninguém. "O mundo é dos espertos". Será?

Por último, é interessante lembrar que ser bom não consiste em atos grandiloquentes de esforços homéricos. Trata-se apenas, muitas vezes, de disponibilidade. Estar disponível para o outro é já uma ação coerente com o fato de que vivemos num mesmo espaço e tempo.

"Prefiro ser otimista e estar errado a ser pessimista e estar certo."



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