quinta-feira, 6 de junho de 2024

SIMONE MALAGUTI ESCREVEU: RUTH RÖHL - O TEATRO DE HEINER MÜLLER (resenha)



 RUTH RÖHL - O TEATRO DE HEINER MÜLLER


Ruth Röhl (1997): O Teatro de Heiner Müller: Modernidade de Pós-Modernidade. São Paulo: Perspectiva. (Coleção Estudos). 189 pgs.

* Simone Malaguti



Heiner Müller tornou-se o dramaturgo alemão por excelência e, por isso, personalidade de referência obrigatória da dramaturgia e literatura alemã atuais. Suas obras históricas, revolucionárias e convulsivas identificam-se tanto com a construção da história alemã e do mundo contemporâneo que nele se incorporou uma espécie de "voz da Alemanha" e da modernidade. Entre uma palavra torpe aqui e outra sórdida ali, essa voz faz ecoar muitas outras: a do teatro de Brecht – mestre que seguiu e transgrediu -, a do materialismo histórico de Marx e a do niilismo de Nietzsche, para não citar outras. Tematicamente Müller baseia-se em obras consagradas da tradição literária - nas tragédias gregas, no teatro de Shakespeare, nas obras de Walter Benjamim, Kleist, Hölderlin – e nos principais acontecimentos do século XX, colocando assim sua literatura sempre ao lado de processos históricos e propósitos políticos, seja para objetivá-los, seja para ironizá-los. Em conseqüência, a literatura mülleriana propõe ao público uma leitura desafiadora, pois tem no nível da sua elaboração uma composição temática e estrutural complexa e polêmica.

Ruth Röhl deslinda as facetas dessa complexidade através de uma leitura intertextual e desconstrutivista e busca, simultaneamente, as características modernas e pós-modernas de Müller e suas obras. A autora apresenta-nos um autor que mesmo circunscrito dentro das normas estreitas do realismo socialista, sistema que se queria harmônico e não-decadentista, não se deteve nelas, ligando-se à literatura moderna e pós-moderna e correndo riscos sócio-políticos da realidade da ex-Alemanha Oriental. À procura de pré-textos e discursos primeiros que se inserem nas obras de Heiner Müller, Ruth Röhl analisa o dramaturgo e suas obras confrontando o "velho" e o "novo", um tipo de trabalho que era objetivo obsessivo na criação artística de Müller, para quem esse tipo de confronto era o instrumento ideal para reativar a memória do receptor.

Após uma introdução que contextualiza Heiner Müller dentro das normas estético-literárias da RDA, a primeira parte do livro trata do conceito de modernidade e pós-modernidade. Para tanto, diversos teóricos são citados, como por exemplo Bürger, Casullo, Habermas, Birringer, Jameson, Sontag, Foucault e Hutcheon.

À análise crítico-interpretativa de obras de Heiner Müller são dedicados dois capítulos: um que cobre a teoria da intertextualidade e sua prática por meio de uma análise de Macbeth e Hamletmaschine e, de forma semelhante, o outro que se ocupa com as teorias da construção e desconstrução (de Derrida) nas análises de O Achatador de Salários e A Missão . Aqui é ao nosso ver a parte mais interessante do estudo e que justifica o interesse pelo livro.

Não obstante a „idade“ e o desgaste do conceito da intertextualidade, Ruth Röhl comprova a utilidade dessa noção através da aplicação do método de Broich e Pfister, professores nas universidades de Munique e Passau. Eles pretendem chegar à identificação das relações intertextuais através de um método que vise o grau, a relevância, integração, seleção e diálogo entre os elementos dos textos, onde um se utiliza de elementos dos outros. Ruth se detém com algum pormenor nos traços das peças de Müller que geram a poética intertextual, inovadora e polêmica para o cenário político da então RDA. Para tanto, a autora faz: 1) a análise da macro e da microestrutura dos textos de Müller a partir dos textos de Shakespeare, e 2) a análise dos textos de Müller do ponto de vista de uma lista de pré-textos secundários. A peça Hamletmaschine ganha mais espaço dentro do livro: cena a cena, a autora levanta detalhes que são na verdade citações de textos já conhecidos sedimentados no fundo do texto mülleriano.

No capítulo dedicado à desconstrução, Ruth remete inicialmente a Brecht e Artaud, os dois dramaturgos que mais influenciaram o teatro de Heiner Müller. Afirma que Müller era consciente do forte engajamento político de Brecht, por isso, condena seu rigor exagerado, mas, por outro lado, valoriza os textos "inacabados" e as peças de aprendizagem. De Artaud, Müller extrai o irracionalismo e a anarquia para emprestar ao teatro o caráter incômodo. Com a combinação da polissemia que o teatro brechtiano oferece e a anarquia incômoda emprestada por Artaud o resultado é, conforme a autora, um "equilíbrio supremo" em forma de destruição. Dessa forma, Müller encontra a expressão perfeita para representar suas impressões sem ser dogmático. Antes de passar às análises das obras O Achatador de Salários e A Missão, Ruth expõe algumas idéias centrais da desconstrução (na reflexão do filósofo francês Jacques Derrida, principal figura da corrente do pensamento atual que cunha o termo) ligando-as à ênfase colocada por Müller na expressão da "diferença" e na "figura da margem". Essa perspectiva levou Ruth Röhl ao exame de movimentos conflituais na estrutura das obras e à explicação do movimento dialético da peça enquanto crítica ao socialismo e à utopia socialistas na RDA.

A análise de cenas da peça A Missão se faz pelo filtro de seus pré-textos A Luz sobre a Forca de Anna Seghers, A Decisão de Brecht, a Morte de Danton, de Büchner e através da visão de mundo kafkiana. Centrado no conflito entre Primeiro e Terceiro Mundos, entre o destino missionários do europeu e o fado da submissão dos países colonizados, o estudo enfatiza como se dá a desconstrução de uma realidade pela percepção do outro e da diferença. Tal enfoque tem efeitos subversivos dentro da peça: despe o homem europeu de sua arrogância, "concedendo ao espaço periférico (Terceiro Mundo) o direito à sua diversidade" (p.133).

No último capítulo, "Modernidade e Pós-Modernidade" em Heiner Müller, Ruth Röhl aponta para a evidente dificuldade de demarcações absolutas na constelação teatral de Heiner Müller. Todavia, através de seu próprio estudo, Ruth demonstra ser possível detectar as "marcas" e as "estratégias" praticadas por Müller, características que simultaneamente inovaram o teatro e inseriram o dramaturgo na estética moderna e pós-moderna.



*Simone Malaguti é mestranda em Literatur Alemã na Universidade de São Paulo




Fonte:



(Leia neste blog a passagem do BERLINER ENSEMBLE por São Paulo:

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