quarta-feira, 21 de junho de 2017

RELEMBRANDO A PASSAGEM DO BERLINER ENSEMBLE PELO BRASIL EM 1997






O encontro entre o Brasil e o Brecht genuíno se deu tardiamente em São Paulo. A companhia teatral Berliner Ensemble apresentou dias 9 e 10 de outubro de 1997 no Teatro Anchieta-Sesc Consolação, a peça "A Resistível Ascensão de Arturo Ui" (Der aufhaltsame Aufstieg des Arturo Ui), de Brecht, em alemão, com tradução simultânea. 




Na quarta, dia 8, às 20h, no Instituto Goethe (rua Lisboa, 974, tel. 011/280-4288), aconteceu uma mesa-redonda intitulada "Brecht e o Berliner Ensemble", com participação do ator Martin Wuttke (que interpreta Ui na montagem do BE), o diretor e ator Stephan Suschke, atual diretor da companhia, e os diretores brasileiros Fernando Peixoto, Marcio Aurélio e Sergio Cavalho. 

O BE trouxe 47 pessoas, entre atores, diretores, cenógrafos e técnicos. 

Foram encontros tardios porque as utopias sociais passaram tanto para um lado como para outro. No Brasil, a classe teatral andava desencantada em busca de soluções mercadológicas. 





Os alemães já não têm pelo dramaturgo Bertolt Brecht (1898-1956) a devoção do passado. Há quem diga que deve tudo, inclusive texto, a sua parceira e mulher, Helene Weigel (1900-1971). Os dois fundaram em 1949 o Berliner Ensemble. Atualmente experimenta uma crise de identidade e de patrocínios. Ainda assim, continua a produzir sucessos. "Arturo Ui" foi a peça de maior êxito em Berlim no ano passado. 






Se o evento tivesse acontecido na década de 50 ou ainda no começo da de 60, teria tido impacto idêntico ao da Europa capitalista. Esta recebia a visita constante do grupo, que agia como embaixador da cultura alemã oriental. Ou até maior, porque provavelmente os diretores e elencos locais buscariam soluções esteticamente mais interessantes do que o estilo do Teatro do Oprimido, Oficina ou Arena, aqui praticado. 




O BE foi fundado na trilha do sucesso de "Mãe Coragem e seus filhos". A princípio, a companhia não tinha sede. A inauguração oficial do grupo se deu em 12 de novembro de 1949, pouco mais de um mês depois da fundação da República Democrática Alemã. As encenações se fundamentavam no distanciamento crítico, os cenários na penumbra e a utilização de alta tecnologia para a época de ponta, com iluminação programada, som amplificado e truques de palco. Brecht desejava forjar um teatro político, baseado na representação da sociedade em transformação, na dependência de classe da natureza humana, na dialética e na poesia do cotidiano. De sucesso em sucesso, acabou ganhou uma sede em 1954, ocupando e rebatizando o Theater am Shiffbauerdamm. Quando Brecht morreu, o teatro passou a funcionar como propaganda do comunismo alemão, sob a coordenação de Helene. Em, 1959, "Arturo Ui" foi representada pela primeira vez. Uma segunda montagem aconteceu em 1971, com a qual o BE fez sucesso em Paris. 




Ainda nos anos 70 Brecht e o BE viraram fósseis da arte politizada. Então assumiu a direção da companhia a diretora Ruth Berghaus. Seu objetivo foi questionar a dramaturgia ideológica. O fato resultou em sua substituição, em 1977, pelo conciliador Manfred Wekwerth. Nessa época, a contribuição do diretor e dramaturgo Heiner Mülller (1929-1995), discípulo não muito ortodoxo de Brecht, foi essencial para desautomatizar a tradição realista-socialista do elenco e dos direotores. O BE passou de teatro estatal para companhia em 1993, com direçãode Mathias Langhoff, Fritz Marquardt , Peter Zadek, Peter Palitasch e Heiner Müller.





A figura dominante foi Müller. Na sanha de infundir experimentalismo, ele terminou criando um catálogo de desencanto apocalíptico, forçando os elencos ao sacrifício e à ascese. Era um Antunes Filho sem crenças. Sua última direção aconteceu com "Arturo Ui", estreada em Chicago em julho de 1995. Morreu de câncer durante a temporada berlinense, em 28 de dezembro de 1995. A montagem estrelada por Wuttke, hoje com 35 anos, aluno de Müller, é mais uma desconstrução do que a fábula edificante e anti-hitlerista proposta por Brecht. "O interessante não é Brecht como iluminista´´, disse, à época dos primeiros ensaios de "Arturo Ui´´, no inicio de 1995. "O importante é despertar a incompreensão´´. 





Mas nem mesmo o autor era muito convicto dos resultados didáticos da obra, escrita em 1941 durante o seu exílio na Finlândia. Tanto que ele preferiu não fazê-la representar. "Arturo Ui´´ só viria a ser encenada três aos depois da morte do dramaturgo, tendo o ator Ekkehard Schall no papel-titulo. A montagem foi elogiada pela crítica oficial como "uma exemplo maravilhoso e inesquecível de teatro político´´. Brecht se referia ao enredo da peça como "a história do gângster que todos nós conhecemos". Mascara uma paródia a Hitler. Conforme o subtítulo, é "uma parábola´´. Trata da trajetória do gângster Arturo Ui, pontífice do cartel da couve-flor da folclórica Chicago dos anos 20. Nascido no Bronx, Ui inicia como lacaio, mas vai eliminando os amigos e concorrentes, até conquistar a chefia. A luta de poder de Ui remete à ascensão de Hitler. Ele assassina a concorrência e fica famoso. Quer naturalmente galgar mais postos e se revela descontente com a repercussão e a falta de memória do povo: "Ninguém mais fala de mim. A cidade não tem memória. A fama aqui tem vida curta. Dois meses sem assassinato, e já se esquecem da gente (folheando os jornais). Quando a mauser se cala, cala-se a imprensa. Mesmo que eu forneça assassinatos, não posso nunca ter certeza de que isso será publicado. Pois não é a ação que vale, mas sim a influência. E esta depende da minha conta bancária. Resumindo: as coisas chegaram a tal ponto que à vezes eu tenho vontade de largar tudo´´. Vilão grotesco e vitimizado, Ui provoca a empatia do público. Brecht queria evitar a situação e enfiou uma voz em off para concluir a peça numa advertência edificante: "Vocês, porém, aprendam como se vê em vez de olhar fixo, e como agir em vez de falar e falar. Uma coisa dessas chegou quase a governar o mundo! Os povos conseguiram dominá-lo, porém, que ninguém saia por aí triunfando precipitadamente - é fértil ainda o colo que o criou!´´ . Müller limou esta parte e deixou Wuttke criar um tipo clownesco e levemente stalinista. Sempre irônico, o diretor intuiu também o efeito deslocador da peça e procurou explorar o charme natural do ditador. "Se Hitler se torna incompreensível, revela-se como força da natureza. Quem quiser entendê-lo não pode ter preconceito. É preciso aprender a espantar-se com ele´´. 





Müller quis provar que nem sempre os conflitos são sociais e fundados na luta de classes, como gostaria Brecht. Constrói uma cena irreal, com elementos de paródia e alegoria. Os gestos dos atores têm a brusquidão das marionetes. Os objetos parecem mais vivos do que o elenco. Na pele de Ui, Martin Wuttke extrapola no histrionismo e na brincadeira vocal. Não compõe Ui imitando diretamente Hitler como, por exemplo, Charles Chaplin no filme "O Grande Ditador´´, de 1940, paródia a Hitler quase contemporânea da realizada em escrita por Brecht. Wuttke recondiciona o tipo, tira-lhe o bigode, altera o cabelo e lembra um antor pop. Refunde um Hitler-Stalin contemporâneo, que provoca gargalhadas, paixões e indignação.




Luís Antônio Giron

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