quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

AIMAR LABAKI ESCREVEU... EM 1993 - 3





MONTAR A CARA – A IDENTIDADE NACIONAL EM CENA

(conclusão)



Novos expoentes

(Romeu e Julieta - direção de Gabriel Vilela, 1992)


A novíssima geração já escolheu seus expoentes. Em São Paulo é Gabriel Vilela. No Rio, Moacyr Góes.

Vilela colecionou em quatro anos de carreira mais de setenta prêmios para seus espetáculos. Trabalhou com grupos de forte identidade como o Boi Voador, o Circo Graffiti e o Galpão (de Belo Horizonte) e também com estrelas como Regina Duarte, Xuxa Lopes, Lucinha Lins e Beatriz Segall.

Partindo de Shakespeare, C. A. Sofredinni, Heiner Muller ou Raymond Queneau o resultado é sempre autoral: o universo de Vilela é reconhecível já ao se abrir o pano. Cenógrafo estupendo, em seu trabalho é impossível dissociar o aspecto visual da encenação propriamente dita.

Ele procura o essencialmente brasileiro através de referências pessoais - chega a usar objetos e roupas de sua cidade natal, Carmo do Rio Claro com lugares comuns, o circo, teatro, o melodrama, o clown.

Sua última encenação, A Guerra Santa de Luiz Alberto de Abreu, estreou em Londres, no Lift-London International Festival of Theather e talvez seja o seu espetáculo mais equilibrado até aqui. Nele, as referencias locais e universais se mesclam até formarem um terceiro elemento, onde a marca do diretor é indelével. É trabalho de maturidade.

(A escola de bufoes - direção de Moacyr Goes, 1990)

Moacyr Góes também amadurece a olhos vistos. Do quase preciosismo de seu primeiro espetáculo de impacto "Escola de bufões" - ele alcançou uma depurada síntese entre informação e viés lírico em Epifanias, uma versão muito pessoal e muito brasileira do Sonho de Strindberg.

Ainda que esteticamente distantes, algo une Vilela a Góes: no centro de seu teatro está a questão ética. Ambos buscam compreender (ou forjar miticamente) um sistema de valores que os sintonize com um projeto de país que aparentemente os exclui. Não há lugar para o artesanal na Nova Ordem Mundial. Que não se veja aí uma ojeriza à tecnologia e sim um resgate da dimensão humana na questão da produção.

Os descamisados substituem os simplesmente humanos na peça de Strinberg revisitada por Góes. Vilela faz de Dante um ser enlouquecido pelo convívio cotidiano com a miséria da população e a impotência diante da violência organizada. Entre a violência (Dante) e a poesia (Virgílio), uma patética Beatriz simboliza a natureza tentando salvar ao menos a cara de uma humanidade que convive pacificamente com a barbárie, sem compreender que pode (e vai) ser dragada por ela.

Vilela e Góes, sistematicamente acusados de maneiristas, são os dois diretores da nova geração que têm atacado essa questão central de forma mais direta e inteligente.



Outros centros

(Fernanda Montenegro e Fernanda Torres no 1º festival de Curitiba, 1992)


Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Curitiba, Salvador, Belém - para ficarmos apenas nas capitais - têm uma tradição de produção e de consumo de espetáculos teatrais. Nessas cidades a divisão entre amadores e profissionais é tão tênue quanto no eixo Rio-São Paulo. Quantos profissionais, dentre os envolvidos nas mais de quatrocentas estréias do ano de 92 em São Paulo vivem realmente de seu trabalho? O que sustenta o ator brasileiro é - parodiando um bem sucedido produtor de São Paulo - a propaganda, a família e a telenovela. As exceções são, é claro, exceções.

A recessão, é óbvio, piorou essa realidade. Mas talvez a tenha depurado para melhor. O Grupo Ponto de Partida, de Barbacena, por exemplo, organizou uma estrutura de produção que, baseada na inter-relação com a comunidade, mostrou-se extremamente eficaz. O resultado é esteticamente sintonizado com essa comunidade - e com outras, como atesta o estrondoso sucesso em Montevidéu do espetáculo Beco - a ópera do lixo.

Exemplo semelhante encontramos em Salvador, onde a indústria cultural escreveu um capítulo à parte através do trabalho soteropolitano que produz e consome cultura autóctone, mas não xenófoba.

O melhor exemplo da viabilidade da produção em centros urbanos menores é a trajetória do Festival de Teatro de Curitiba. Em duas edições, o Festival passou desventura corajosa a empreendimento com repercussões internacionais.

Ele é, hoje, a vitrine do teatro brasileiro para o circuito internacional. De suas edições resultaram, por exemplo, a estréia de Gabriel Vilela em Londres e o convite a Bia Lessa para se apresentar em Montreal com Orlando - sendo ali aclamada como a grande promessa do teatro latino-americano, o que lhe abriu as portas para o circuito de distribuição europeu.

Mas o mais importante é que Curitiba se firmou como um espaço de reflexão dos profissionais da área brasileira em debates que invariavelmente tiveram lotação esgotada.

Isso só é possível porque Curitiba cultivou um público que se habituou a comparecer a espetáculos e manteve uma produção ininterrupta desde os anos 60, formando uma geração de diretores e atores sintonizada com a cena mundial. Diretores como Raul Cruz (prematuramente falecido), Marcelo Marchioro e Edson Bueno têm dado contribuições significativas à cena brasileira.

O surgimento da Rede Brasil de Produtores, conectada à Rede Latino-americana de Produtores Independentes de Arte Contemporânea, em funcionamento há três anos, tornou possível, agora, um aspecto imprescindível para a viabilização de um mercado nacional para artes cênicas: a circulação de informações. Se as produções do Rio e de São Paulo se desconhecem imaginem o que se passa entre Canela (RS) e Campina Grande (PB) apenas para citar duas cidades cujos festivais têm sido focos de resistência à impermeabilidade da mídia a formas "artesanais" e "não modernas" de arte.

A existência dessas redes e o fortalecimento do Festival de Curitiba como vitrine da melhor produção dita profissional e dos festivais de Londrina e Campinas como porta para o teatro vinculado à Universidade ou à reflexão mais geral são a saída visível para a falta de informações que torna nossos profissionais tão vulneráveis à repetição de erros e a uma visão distorcida de suas possibilidades.



Estado

(Denise Stoklos em cena de Um Orgasmo Adulto Escapa do Zoológico, 1983; foto de  Sylvia Masini,)


O teatro brasileiro - como toda a cultura - não pode depender do Estado. Governos que não conseguem nem criar uma política agrícola, num país como o Brasil, com certeza não sabem nem o que significa "política cultural". Ficamos assim à mercê de ações criminosas como as da quadrilha Fernando Collor/Ipojuca Pontes ou das limitações de competência de gestões politicamente corretas, mas inoperantes como a de Marilena Chaui.

Mas a rigor só saímos formalmente dos tempos de exceções a pouco mais de dois anos - com a posse do primeiro presidente eleito. E o processo democrático levará, no mínimo, uma geração para novamente funcionar sem as febres da primeira infância.

Na mão de outsiders como Fauzi Arap, Denise Stocklos, Antonio Nóbrega, Naum Alves de Souza, C. A. Sofredini, Hamilton Vaz Pereira, pessoas cujos projetos transcendem suas raízes históricas, é que talvez esteja a chave de uma estética mais afinada com o futuro do país. O cidadão-contribuinte, na perfeita definição de Plínio Marcos, começa a enxergar possibilidades na cena oficial. No momento em que a grande massa marginalizada do processo econômico tiver acesso às possibilidades do jogo teatral, talvez não se solucione a questão econômica, mas a questão política terá com certeza amadurecido.

O teatro protagonizou nosso único surto de identidade cultural (1950 a 1968) e sobreviveu a todos os ataques econômicos, físicos e políticos da ditadura explícita (1964 a 1984) ou implícita (1985 a 1990). Tem tudo para ser novamente deflagrador de um processo de construção (ou identificação) de uma identidade nacional. Ainda que de maneira involuntária.




06/05/1993



Aimar Labaki é jornalista e dramaturgo.

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