MONTAR A CARA – A IDENTIDADE NACIONAL EM CENA
(continuação)
Teatro na Câmara
Hoje, o trabalho dos dois centros de "teatro do oprimido" - um na França e outro no Canadá - é um indício de que o Arena, enquanto grupo, iria necessariamente se desmembrar. Isso é ainda mais claro na adesão de Boal à política tradicional. Como vereador do Rio de Janeiro pelo PT ele está exercendo mandato com uma plataforma revolucionária na forma. Segundo ele "nos anos 60 nós desvendamos o que há de político no teatro, agora vamos desvendar o que há de teatral na atividade política". Seu método: um grupo de atores vai usar suas técnicas de teatro do oprimido para levar as discussões de projetos da Câmara às ruas, captar lá as posições populares sobre esses assuntos e levá-las para o plenário.
Nesse caminho do teatro para a política ficaram órfãos exatamente aqueles que haviam feito o caminho contrário. Vianinha e Guarnieri fundaram o TPE (Teatro Paulista do Estudante) como tarefa para o PCB. Fizeram um teatro que só se distinguia do realismo socialista por ter bom gosto e uma ginga própria. A ditadura fez com que ambos encontrassem terreno apropriado para amadurecer a sua dramaturgia. Guarnieri conseguiu ser mais afinado do que nunca com seu tempo em peças como Um grito parado no ar e Ponto de partida e Vianinha alcançou a maestria em Rasga coração - exatamente um texto sobre as opções possíveis para um coração de esquerda numa sociedade vocacionada para a direita.
Mas a redemocratização vai deixar essa ala sem projeto. Vianinha, prematuramente falecido, talvez pudesse achar novos caminhos com sua proverbial capacidade de trabalho e de autocrítica. O mesmo não aconteceu com Guarnieri.
O autor que colocou o operariado no centro da cena (Eles não usam black tie, 1958) não evoluiu com o tempo. Partiu para uma dramaturgia auto-indulgente (Pegando fogo lá fora, 1988) e para um projeto auto-referente: a re-ocupação do teatro de Arena. Esse vinha sendo utilizado por períodos de dois anos por grupos fixos. O primeiro projeto capitaneado por Fauzi Arap - Tarô: Rosa dos ventos - rearticulou um Seminário de Dramaturgia que desde então (88) mantém-se em atividade permanente sob a direção de Chico de Assis e conseguiu realizar pelo menos uma reflexão poética sobre a impossibilidade de se retomar o projeto dos anos 60 de forma mecânica na obra-prima Às margens do lpiranga, texto e direção do próprio Fauzi Arap. Os dois anos seguintes, 1990-91, foram utilizados por Francisco Medeiros e seu Maioridade de 68 que reuniu, durante um ano, depoimentos públicos de personagens como José Dirceu, Fernando Gabeira, Fernanda Montenegro e Zuenir Ventura.
Mais uma vez a chave lírica foi acionada para se trabalhar esse material em espetáculos como Homeless, com texto de Noemi Marinho, e Antares, de Alcides Nogueira. Em 1992, depois de duas experiências vitoriosas, o espaço foi cedido a Guarnieri. Não se pode falar em decepção. A verdade é que nada ou quase nada aconteceu no espaço da Teodoro Baima. É como se a paralisação do artista – que, aliás, ficou doze anos sem mostrar textos novos antes do fracassado Pegando fogo... - se refletisse no homem público e político (lembre-se que Guarnieri foi secretário municipal da Cultura). Praticamente fechado, a não ser por uma curta temporada de Meu nome é Pablo Neruda, texto escrito às pressas para preencher um buraco criado por problemas de direito autoral, o Arena permanece fechado como um símbolo da perplexidade em que se encontra toda uma geração que fez uma opção preferencial pelo compromisso ideológico e que não consegue reagir à aparente derrocada de seu universo de referências ideológicas.
Teatro Político
O trabalho que mais se apropria das questões e procedimentos do teatro político como foi entendido pela geração de Guarnieri, sintonizando-o com a realidade mais imediata é o de Aderbal Freire Filho e seu Centro de Construção e Demolição do Espetáculo. Em dois espetáculos, O tiro que mudou a história e Tiradentes, ele inaugurou um Núcleo de Teatro Político e redimensionou a questão do viés ideológico em qualquer análise histórica.
O tiro... reviveu durante dois anos de temporada a última noite de Getúlio Vargas no próprio Palácio do Catete, hoje Museu da República. A equação "épico versus dramático" encontrou aí um equilíbrio delicado, reproduzindo em outra chave os procedimentos erigidos pelo Arena na fase dos musicais. Já Tiradentes levava o público em ônibus pelo Rio parando em cinco estações da via-sacra do personagem título (não por acaso presente no repertório do Arena - Arena conta Tiradentes).
Aderbal encara a questão de frente, nomeando-a. Aceitando o rótulo de teatro político, ele tenta desmitificar a categoria e a aproxima da questão puramente teatral - como se fosse possível dissociá-las.
Mas o trabalho do Centro não se resume a seu Núcleo de Teatro Político. Aderbal enfrentou a questão da transposição da linguagem literária para o palco em A mulher carioca aos 22 anos, de João de Minas. O romance desse predecessor de Nelson Rodrigues ganhou montagem radical do Centro: o uso de uma derivação do Sistema Coringa aplicada ao texto amoral e debochado espalhou-se num primeiro momento por mais de cinco horas numa opção por transpô-lo na íntegra. A falta de concentração de um público desacostumado a montagens longas (comuns na Europa) obrigou a realização de cortes drásticos, que não descaracterizaram a proposta.
Está pois a tradição do Arena muito bem representada. Paradoxalmente por alguém que fez opções opostas às dos pressupostos daquele grupo. Senão vejamos: para Aderbal a questão inicial é a da ética e não a ideológica, ao contrário da própria história da formação do Arena. Em segundo lugar, Aderbal não adere à ilusão da inevitabilidade da vitória do socialismo ou da superioridade natural das formas populares - suas opções estéticas são sofisticadíssimas. E, melhor, não cai na falácia da morte das ideologias. Ele não teme a dúvida, mas se orgulha de suas certezas.
Museu Proletário
Já a tradição do CPC (Centro Popular de Cultura), derivada da face mais engajada da odisséia do Arena, também mantém seus desdobramentos. Amir Haddad e César Vieira tratam de manter a chama acesa.
César Vieira, nome artístico do corajoso advogado de presos políticos Idibal Piveta, mantém há décadas seu União e Olho Vivo como uma espécie de museu vivo do teatro proletário e revolucionário, resultado de uma tradição que começa no teatro político de Piscator, passa pelos grupos anarquistas em São Paulo e desemboca nesse grupo que desde 1972, permanece fiel a seus objetivos e procedimentos. Nele os conceitos de popular e nacional são já definidos, não cabendo dúvida ou dissensão.
Amir Haddad e seu grupo Tá na Rua é seu oposto. Sem nenhuma certeza apriorística, ele procura realizar um trabalho popular e voltado para as questões nacionais. Haddad abdicou até do consagrado espaço do palco, preferindo a rua. Seu teatro não é "teatro na rua", é "teatro da rua", pensado e realizado na via pública, no espaço aberto. Ele procura cooptar o público para a ação, alterando-a pelo processo - sem se preocupar com a clareza da mesma mensagem ou a pureza dos meios. É um verdadeiro revolucionário que tem espalhado sua inquietação - e não suas certezas - por grupos de rua de Porto Alegre, do Nordeste e, principalmente, do Rio de Janeiro, onde reside e atua mais seguidamente. Haddad realiza o sonho do CPC, ainda que não seja à primeira vista politicamente correto. Seu teatro é popular, de adesão imediata pela massa e é revolucionário, na medida em que consegue transformar em reflexão orgânica o que encontra como manifestação ideológica nas praças das grandes cidades. Não é por acaso que o grupo resiste com dificuldade, sem nenhuma ajuda substancial dos órgãos públicos. No que aliás é assemelhado ao grupo de Aderbal Freire Filho.
Pós-moderno
A esquerda, portanto, está presente em nossa produção teatral, apesar dela mesma, enquanto categoria, ter sua existência cotidianamente negada. Estaria a direita representada apenas pelo chamado teatro comercial que reproduz e referenda a ideologia burguesa? Ledo engano.
Como expôs brilhantemente Eugênio Bucci no último Festival de Teatro de Curitiba, "hoje mais do que nunca existe uma diferença clara entre esquerda e direita e esta diferença é imprescindível. Está mais à esquerda quem prioriza o direito à vida, inerente ao ser humano, em detrimento ao direito à propriedade. A posição contrária a essa é a direita".
E Bucci expande essa reflexão para os palcos: "Existe uma desonestidade da esquerda, sempre que subjuga os interesses estéticos à defesa de uma tese - e isso geralmente resulta em mau teatro. Mas existe seu equivalente à direita, é a chamada pós-modernidade, no momento em que vende a febre da razão, a impossibilidade de se definir um padrão de valores, como se fosse uma certeza irrefutável. Quando vejo esse engodo embrulhado em luz e fumaça, tenho vontade de sair do teatro".
À primeira vista essa colocação pode parecer um ataque direto ao trabalho de Gerald Thomas. No entanto, me parece que essa reflexão é mais pertinente se dirigida aos filhotes de Gerald Thomas espalhados pelo território nacional.
Thomas é encenador de primeiro time, grande artista plástico que realiza, na verdade, instalações às avessas, onde o público é que fica imobilizado - por tédio, deslumbramento ou compromisso com a "modernidade". Anos-luz na frente da maior parte de nossos profissionais, ele determinou um grau de exigência técnica que alterou radicalmente nosso panorama teatral em poucos anos. Seu calcanhar de Aquiles é justamente o mesmo de Antunes: não encontra material dramatúrgico à altura de suas aspirações estéticas. Mas é menos esperto que Antunes. Esse conhece suas limitações e usa os clássicos como rede de segurança. Gerald se arrisca como dramaturgo e aí os resultados são risíveis - principalmente se comparados com sua performance como encenador. Mas se descontarmos seu marketing pessoal e a irresponsabilidade de sua relação com a cultura nacional, trata-se de um artista maior à procura de um meio de expressão. O problema é que o que nele é orgânico, copiado vira pastiche de pós-modernidade. Paródia de paródia nem paródia é.
A reflexão de Bucci é ainda pertinente se aplicada ao grande contingente de encenadores que transitam numa faixa estreita entre as inovações das artes cênicas (onde as fronteiras entre dança, ópera e teatro são tênues) e a reflexão pseudofilosófica. São encenadores por vezes talentosos, mas que parecem paralisados pela quantidade de informação mal digerida. Jovens que têm opinião formada sobre Nietzsche, mas não se pronunciam sobre as próximas eleições. Grupos com uma azeitada máquina de produção, mas sem projeto estético. Citar nomes para esses casos seria apenas fazer uma provocação desnecessária. Inclusive porque sua confusão ideológica é involuntária. Eles recriam o espaço da "arte pela arte", do artista burguês cujo direito à expressão lírica está acima de seus compromissos com a realidade social onde sua produção se coloca. São românticos avant la lettre posando de racionalistas, para quem crítica é adesão ou ataque pessoal. Juventude é um mal que passa. Burrice não.
Oficina
O Oficina foi o ápice de um tempo em que o teatro brasileiro era vanguarda no mundo e dialogava com a comunidade e os outros componentes da cultura oficial, liderando-os. Seu protagonista foi José Celso Martinez Corrêa, gênio comprovado, que teve a capacidade de, numa trajetória de pouco menos que quinze anos, ingerir e deglutir, recriando antropofagicamente a trajetória teatral do Ocidente de Stanislavsky - na melhor montagem realista brasileira segundo vários críticos, Os pequenos burgueses de Máximo Gorki (1963) - , até a subversão das relações palco-platéia em Gracias Señor, espetáculo que sintetizava as suas vivências da contracultura em sua convivência com o Living Theatre no Brasil.
O Oficina, extinto pela ação da ditadura, iria terminar se transformando em outra coisa, de qualquer maneira - mas à moda do Arena. Sua vocação era para a teatralização da vida. Explodido o espaço convencional do palco, Zé buscava explodir o tempo. Teatro não é apenas das 9 às 11 da noite, mas por toda a vida.
Sua trajetória no exílio e depois de sua volta é uma ilustração dessa intenção. De 79, quando voltou, a 91, quando estreou seu primeiro espetáculo a fazer temporada regular desde As três irmãs (1973), Zé transformou sua atuação pelo tombamento do Oficina e depois por sua demolição e reconstrução em Uzina Uzona, terreiro multimídia, num longo espetáculo teatral. Invadiu os gabinetes dos burocratas com procissões dionisíacas (e registradas em vídeo), promoveu bacanais em espaços universitários, subverteu a lógica dos programas de televisão em que participou numa espécie de continuação do trabalho de Glauber Rocha. Seu palco é o mundo.
Em parte isso se deu porque as condições objetivas de produção se mostraram sempre inóspitas para ele. Por outro lado se formou uma espécie de rede de preconceitos, que culminou com o epíteto de "decano do ócio". Mas talvez o principal seja que o não atuar no espaço tradicional emoldura exatamente sua atuação na esfera pública, seu verdadeiro papel de poeta do palco, seja nos happennings ou leituras públicas que sempre terminavam por ser "montagens que poderiam entrar em cartaz", ou em sua atuação. Na mídia e diante de platéias espontâneas nas ante-salas dos gabinetes ou na praça pública.
Sua reestréia com As boas - leitura personalíssima das Criadas de Jean Genêt - transformou o texto numa metáfora para sua condição no teatro brasileiro, criada que mata por opção existencial a madame (na montagem Raul Cortez) e é por esta excluída das benesses da vida burguesa (ou da cidadania plena).
Louco do Tarôt, outsider que paga berrando, como bom bode, o preço de sua lucidez, Zé Celso é imprescindível para o equilíbrio da ecologia de nosso claustrofóbico mundo artístico e intelectual. Com a possível estréia de seu Hamlet reinaugurando o espaço da rua Jaceguai, ele voltará a ocupar também o tempo e lugar burocraticamente delimitados para o teatro. Sem abandonar a vida.
06/05/1993 - Aimar Labaki
Nenhum comentário:
Postar um comentário