segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

REBECA FUKS ESCREVEU: AUTO DA COMPADECIDA DE ARIANO SUASSUNA - RESUMO, ANÁLISE E OUTRAS INFORMAÇÕES SOBRE O AUTOR





A obra-prima do escritor brasileiro Ariano Suassuna foi escrita em 1955 e levada a palco pela primeira vez em 1956 no Teatro Santa Isabel. Auto da Compadecida é uma peça dividida em três atos e tem como pano de fundo o sertão nordestino. A obra foi uma das primeiras produções teatrais a carregar forte na tradição popular.

Caracterizada pela marcante presença do humor, a conhecida história ganhou um público ainda mais amplo em 1999, quando foi adaptada para a televisão (uma minissérie da TV Globo) e, no ano a seguir, virou longa metragem.

As aventuras de João Grilo e Chicó fazem parte do imaginário coletivo brasileiro e retratam com fidelidade o dia a dia daqueles que lutam pela sobrevivência em um meio adverso.



RESUMO



João Grilo e Chicó são os amigos inseparáveis que protagonizarão a história vivida no sertão nordestino. Assolados pela fome, pela aridez, pela seca, pela violência e pela pobreza, tentando sobreviver num ambiente hostil e miserável, os dois amigos usam da inteligência e da esperteza para contornarem os problemas.



(atenção, esse artigo contém spoilers)



O falecimento do cão

A história começa com a morte do cachorro da mulher do padeiro. Enquanto o cão estava vivo, a senhora, apaixonada pelo animal, tentou de todas as maneiras convencer o padre a benzê-lo.


Os dois funcionários da padaria do marido - os espertos João Grilo e Chicó - também embarcaram no desafio e intercederam pelo cão junto ao padre. De nada adiantou tamanho esforço, para desgraça da dona o cachorro morreu afinal sem ser benzido.


O enterro do animal

Convencida de que era necessário enterrar o animal com pompa e circunstância, a bela senhora tem a ajuda novamente dos espertos João Grilo e Chicó para tentar persuadir o padre a realizar o velório.

O maroto João Grilo diz então, em conversa com o padre, que o cão havia deixado um testamento onde prometia dez contos de reis para ele e três para o sacristão se o enterro fosse realizado em latim.

Depois de alguma hesitação o padre fecha negócio com João Grilo pensando nas moedas que receberia. O que ele não poderia imaginar é que apareceria o bispo a meio da transação.

O bispo fica horrorizado com a cena: onde já se viu um padre velar um cão (ainda por cima em latim!)? Sem saber o que fazer, João Grilo então diz que o testamento, na verdade, prometia seis contos para a arquidiocese e quatro para a paróquia. Mostrando-se também corrompível pelo dinheiro, o bispo faz vista grossa a situação.


A chegada do bando de Severino

A meio do negócio a cidade é invadida pelo perigoso bando do cangaceiro Severino. O bando mata praticamente todos (o bispo, o padre, o sacristão, o padeiro e a mulher).

Com medo da morte, João Grilo e Chicó tentam uma última saída: dizem para os membros do bando que tinham uma gaita benzida por Padrinho Padre Cícero que era capaz de ressuscitar os mortos e que poderiam entregá-la se os deixassem vivos.

Os cangaceiros não acreditam, mas os dois fazem uma demonstração. Chicó trazia escondido um saco com sangue e, quando João encena dar uma facada no amigo o que acontece é que a bolsa se rompe.

O bando acredita que o sujeito de fato morreu, até que João toca a tal gaita e Chicó supostamente ressuscita.


A morte do pobre João Grilo e o juízo final


O truque da gaita benta não se sustenta durante muito tempo e logo João Grilo acaba sendo morto pelos cangaceiros. Já no céu, todos os personagens se encontram. Chegada a hora do juízo final, Nossa Senhora intercede por cada um dos personagens.

Os considerados com difícil salvação (o padre, o bispo, o sacristão, o padeiro e a sua mulher) seguem direto para o purgatório.

A surpresa surge quando os respectivos religiosos são enviados direto para o purgatório enquanto Severino e o seu capanga, alegadamente criminosos, são mandados para o paraíso. Nossa Senhora consegue defender a tese de que os capangas eram naturalmente bons, mas foram corrompidos pelo sistema.

João Grilo, por sua vez, recebe a graça de voltar para o seu próprio corpo. Quando regressa à Terra, acorda e assiste o seu enterro, feito pelo melhor amigo Chicó. Chicó, por sua vez, havia prometido à Nossa Senhora que entregaria todo o dinheiro que tinha à Igreja caso João Grilo sobrevivesse. Como o milagre acontece, depois de muita hesitação os dois amigos fazem a devida doação prometida.


ANÁLISE




Linguagem utilizada

A peça Auto da Compadecida é profundamente marcada pela linguagem oral, Suassuna possui um estilo regionalista que pretende replicar com precisão a fala do nordestino:

JOÃO GRILO: Ó homem sem vergonha! Você inda pergunta? Está esquecido de que ela o deixou?

Os personagens possuem um mesmo registro de fala, compatível com o encontrado no ambiente do nordeste brasileiro, embora cada personagem tenha o seu discurso único e particular.

Para além da linguagem nordestina, convém lembrar uma série de elementos nos quais o autor investe para causar um efeito de verossimilhança: a narrativa faz, por exemplo, uso de objetos típicos nordestinos, figurinos habitualmente usados por moradores da região e até mesmo replica cenários do sertão que ajudam o espectador a imergir na história.


O dinheiro como aquilo que corrompe

No texto de Ariano Suassuna vemos como todos os personagens são corrompidos pelo dinheiro, até mesmo aqueles que supostamente não deveriam estar ligados à matéria (caso dos religiosos).

Vale lembrar o comportamento do padre, que aceitou suborno da mulher do padeiro para enterrar o cão e rezar uma missa, em latim, em homenagem ao animal.

JOÃO GRILO: Esse era um cachorro inteligente. Antes de morrer, olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia. Nesses últimos tempos, já doente para morrer, botava uns olhos bem compridos para os lados daqui, latindo na maior tristeza. Até que meu patrão entendeu, com a minha patroa, é claro, que ele queria ser abençoado pelo padre e morrer como cristão. Mas nem assim ele sossegou. Foi preciso que o patrão prometesse que vinha encomendar a bênção e que, no caso de ele morrer, teria um enterro em latim. Que em troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de réis para o padre e três para o sacristão.

SACRISTÃO, enxugando uma lágrima: Que animal inteligente! Que sentimento nobre! (Calculista.) E o testamento? Onde está?

Além do padre e do sacristão, também o bispo entrou na mesma jogada e demonstrou-se igualmente corrompível pelo dinheiro.


A inteligência como a única saída possível

Vemos ao longo da história como Chicó e João Grilo sofrem em meio a um cotidiano duro, marcado pela seca, pela fome e pela exploração do povo.

Diante desse contexto de penúria, o que resta para os personagens é usarem o único recurso que tem em mãos: a inteligência.

Noutro trecho da cena do julgamento, quando João Grilo procura recorrer a mais uma esperteza, para livrar-se da acusação do diabo, Cristo o adverte: “Deixe de chicana, João. Você pensa que isto aqui é o Palácio da Justiça?”

Os dois amigos não têm quase trabalho, não possuem praticamente dinheiro, não tiveram acesso ao conhecimento formal, mas lhes sobra esperteza, malandragem e perspicácia: Chicó e João Grilo observam as situações e rapidamente percebem como podem tirar proveito delas.


Crítica ao sistema

Os personagens humildes são vítimas da opressão provocada pelos coronéis, pelas autoridades religiosas, pelos donos das terras e pelos cangaceiros. Convém sublinhar que a peça é contada do ponto de vista dos mais humildes, e é com eles que o espectador cria imediata identificação.

JOÃO GRILO: Está esquecido da exploração que eles fazem conosco naquela padaria do inferno? Pensam que são o cão só porque enriqueceram, mas um dia hão de me pagar. E a raiva que eu tenho é porque quando estava doente, me acabando em cima de uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava para o cachorro. Até carne passada na manteiga tinha. Para mim, nada, João Grilo que se danasse. Um dia eu me vingo.

Aqueles que deveriam proteger os mais pobres - as entidades católicas (representadas pelo padre e pelo bispo) - acabam demonstrando pertencerem ao mesmo sistema corrupto e, por esse motivo, são tão satirizados quanto todos os outros poderosos.


O humor

João Grilo e Chicó representam o povo oprimido e toda a peça é uma grande sátira da triste e cruel realidade nordestina. Apesar do tema tratado por Suassuna ser denso, o tom da escrita é sempre baseado no humor e na leveza.

Vemos também no texto o registro dos "causos", isto é, mitos e lendas que se perpetuam no imaginário popular:



CHICÓ: Bom, eu digo assim porque sei como esse povo é cheio de coisas, mas não é nada de mais. Eu mesmo já tive um cavalo bento. (...)

JOÃO GRILO: Quando você teve o bicho? E foi você quem pariu o cavalo, Chico?

CHICÓ: Eu não. Mas do jeito que as coisas vão, não me admiro mais de nada. No mês passado uma mulher teve um, na serra do Araripe, para os lados do Ceará.

A linguagem quase brincalhona, marcada pela espontaneidade, é uma das características da prosa do escritor que agrega graça à peça. Outro aspecto que colabora para o quesito é a construção dos personagens, que são muitas vezes caricaturais, trazendo ainda mais comicidade à trama.



PERSONAGENS PRINCIPAIS

Grupo Mineiro Maria Cutia (Foto: Tati Motta) 

João Grilo

Um sujeito pobre e miserável, melhor amigo de Chicó, usa da sua esperteza para contornar as situações difíceis da vida. João Grilo representa uma parcela do povo nordestino que, diante de um cotidiano difícil, faz uso da malandragem e do improviso para se livrar de apertos.

Chicó

Amigo do peito de João Grilo, está ao seu lado em todas as aventuras e tenta se desvencilhar do cotidiano trágico que vive através do humor. É mais medroso do que o amigo e teme quando se vê embrenhado nas mentiras de João Grilo. Chicó é o típico sabido, que se vê obrigado à exercitar a imaginação para conseguir sobreviver.

Padeiro

Dono da padaria na região de Taperoá, o padeiro é o patrão de Chicó e João Grilo. Na vida pessoal tem uma mulher infiel por quem é apaixonado. O padeiro é um típico representante da classe média que tenta sobreviver, muitas vezes se fazendo às custas dos mais pobres.

A mulher do padeiro

Uma mulher infiel que socialmente se comporta como uma puritana. É apaixonada pelo cão e o trata melhor do que os seres humanos ao redor. A mulher do padeiro é um símbolo da hipocrisia social.

Padre João

Devido à sua posição religiosa como comandante da paróquia local, o padre supostamente era um sujeito incorruptível, despojado de ambições financeiras, mas que acaba por ser tão corrupto quanto qualquer outro ser humano. Vemos no padre João um retrato da ganância e da cobiça (por ironia um dos pecados capitais condenados pela Igreja).

Bispo

Superior ao padre em termos de hierarquia, o Bispo tenta puni-lo quando descobre a situação do velório do cão. Entretanto cai no mesmo erro do padre quando a propina também é oferecida a ele. O Bispo afinal se mostra tão corrompível e mesquinho quanto o padre.

Cangaceiro Severino

É o cangaceiro chefe do bando. Temido por todos na região, já fez uma série de vítimas e acabou caindo no mundo do crime por falta de oportunidades. O cangaceiro Severino é o representante de uma enorme parcela da população que acaba caindo em um destino de violência porque não teve outras hipóteses.

Nossa Senhora

Intercede por todos durante o julgamento final e intervêm com comentários inimagináveis como, por exemplo, quando toma a palavra para defender o Cangaceiro Severino. Nossa Senhora é profundamente bondosa e tenta levar todos para o paraíso: ela busca argumentos racionais e lógicos para justificar possíveis falhas de caráter.


SOBRE A PEÇA

Companhia do Nordeste.
 Foto: Isabella Mayer


A peça teatral com tema nordestino foi dividida em três atos. Escrita em 1955, Auto da Compadecida foi levado a público pela primeira vez no ano a seguir, em 1956.

Mas foi no ano seguinte, em 1957, no Rio de Janeiro, que a peça ganhou grande destaque. O Auto da Compadecida foi encenado no Rio de Janeiro durante o 1º Festival de Amadores Nacionais.

Muitos anos depois, em 1999, a história ganhou uma adaptação televisiva e no ano a seguir virou longa metragem.


Livro na íntegra




O livro Auto da Compadecida encontra-se disponível na íntegra em formato PDF.


Série de TV



O livro de Ariano Suassuna foi inicialmente adaptado para a TV como uma minissérie de 4 capítulos. O resultado foi exibido pela Rede Globo de Televisão entre 5 de janeiro e 8 de janeiro de 1998.

Devido ao enorme sucesso de público, os realizadores cogitaram criar um longa metragem (projeto que efetivamente seguiu em frente e deu origem ao filme O Auto da Compadecida, de Guel Arraes).

Os quatro episódios já estão disponíveis online na íntegra. 



Filme O Auto da Compadecida


Dirigido por Guel Arraes com o roteiro assinado por Adriana Falcão, João Falcão e o próprio Guel Arraes, a adaptação para o cinema do clássico de Ariano Suassuna foi realizada pela Globo Filmes no ano 2000.

O longa metragem com 1h35min de duração conta com grande elenco (Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Denise Fraga, Marco Nanini, Lima Duarte, Fernanda Montenegro, etc).

O longa foi filmado em Cabaceiras, no sertão da Paraíba, e quando foi exibido teve um rápido sucesso de público (mais de 2 milhões de espectadores brasileiros foram ao cinema).

Em termos de crítica, o filme fez sucesso no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro do ano de 2001. O Auto da Compadecida levou para casa os seguintes prêmios:


Melhor Diretor (Guel Arraes)

Melhor Ator (Matheus Nachtergaele)

Melhor Roteiro (Adriana Falcão, João Falcão e Guel Arraes)

Melhor Lançamento


QUEM FOI ARIANO SUASSUNA?



Ariano Vilar Suassuna, conhecido pelo grande público apenas como Ariano Suassuna, nasceu no dia 16 de Junho de 1927 em Nossa Senhora das Neves, hoje João Pessoa, capital da Paraíba. Era filho de Cássia Villar e do político João Suassuna.

O pai de Ariano foi assassinado no Rio de Janeiro. Em 1942, Ariano mudou-se para o Recife, onde completou os estudos secundários e entrou para o curso de Direito.

Suassuana escreveu a sua primeira peça em 1947 (tratava-se de Uma mulher vestida de sol). Já no ano a seguir, em 1948, escreveu outra peça (Cantam as harpas de Sião ou O despertar da princesa) e pela primeira vez assistiu a um trabalho seu montado. Os idealizadores foram os membros do Teatro do Estudante de Pernambuco.

Em 1950 recebeu o seu primeiro prêmio (o Prêmio Martins Pena) pelo Auto de João da Cruz. Seis anos mais tarde virou professor de Estética na Universidade Federal de Pernambuco. Lecionou durante muitos anos até se aposentar em 1994.

Teve uma carreira no teatro e na literatura muitíssimo produtiva, com inúmeras peças e livros publicados. Suassuna morreu aos oitenta e sete anos no dia 23 de julho de 2014


Obras literárias de autoria de Ariano Suassuna


Peças de teatro


Uma Mulher Vestida de Sol (1947)

Cantam as Harpas de Sião (ou O Desertor de Princesa) (1948)

Os Homens de Barro (1949)

Auto de João da Cruz (1950)

Torturas de um Coração (1951)

O Arco Desolado (1952)

O Castigo da Soberba (1953)

O Rico Avarento (1954)

Auto da Compadecida (1955)

O Desertor de Princesa (Reescritura de Cantam as Harpas de Sião), (1958)

O Casamento Suspeitoso (1957)

O Santo e a Porca, imitação nordestina de Plauto (1957)

O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna (1958)

A Pena e a Lei (1959)

Farsa da Boa Preguiça (1960)

A Caseira e a Catarina (1962)

As Conchambranças de Quaderna (1987)

Waldemar de Oliveira (1988)

A História de Amor de Romeu e Julieta (1997)


Ficção


A história do amor de Fernando e Isaura (1956)

Fernando e Isaura (1956)

Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971)

As Infâncias de Quaderna (Folhetim semanal no Diário de Pernambuco, 1976-77)

História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão / Ao Sol da Onça Caetana (1977)




Rebeca Fuks

Doutora em Estudos da Cultura

 

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

FRANCO ZAMPARI E O TEATRO BRASILEIRO DE COMÉDIA

 

Alfredo Mesquita [à esquerda] e Franco Zampari [à direita], 1958
Acervo Idart/Centro Cultural São Paulo



Na história do Teatro no Brasil, o nome do napolitano Franco Zampari está associado à criação de uma importante companhia paulistana: o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) fundado em 1948.

“O Teatro Brasileiro de Comédia é o grande modernizador do teatro no país. No comando do TBC está Franco Zampari, italiano radicado no Brasil desde 1922. Em 1945, Franco Zampari escreve uma peça de teatro chamada 'A Mulher de Braços Alçados'.

Napolitano, engenheiro das Indústrias Matarazzo e amante das artes, Zampari apresenta sua peça numa festa da alta sociedade de São Paulo. Essa brincadeira entre amigos é a semente que brota e acaba motivando Zampari para uma dedicação mais profunda ao teatro.

Nas décadas de 30 e 40 predominavam, no teatro brasileiro, espetáculos humorísticos centrados em um ator principal, valorizado por sua capacidade de comunicação direta com o público e suas habilidades de improvisador. O ator era, em geral, o dono da companhia e sua principal atração. Procópio Ferreira, Jaime Costa e Dulcina de Morais são exemplos.

Nos anos 40, uma vontade geral de transformar esse modo de fazer teatro se propaga por grupos amadores, formados por universitários, intelectuais e profissionais liberais. Décio de Almeida Prado funda o Grupo Universitário de Teatro. Alfredo Mesquita dirige o Grupo de Teatro Experimental e funda a primeira escola de atores do Brasil, a EAD - Escola de Arte Dramática, em São Paulo. Esta febre de mudanças tem dois alvos prioritários: o repertório dos textos encenados e a técnica. Movidos pela força da paixão, os amadores brasileiros viabilizam parte desse projeto.

TBC - fotode Alesssandra Haro

Em 1948, Franco Zampari, associado a um grupo de empresários de São Paulo, cria o TBC - Teatro Brasileiro de Comédia. Transforma um velho casarão em teatro aparelhado com 18 camarins, duas salas de ensaio, uma sala de leitura, oficina de carpintaria e marcenaria, almoxarifados para cenografia e figurinos, além de modernos equipamentos de luz e som. Um luxo para a época. Na noite de 11 de outubro , o TBC estréia com espetáculo duplo. "A Voz Humana", monólogo de Jean Cocteau, interpretado em francês pela atriz Henriette Morineau. Completa a apresentação a peça "A Mulher do Próximo", escrita e dirigida por Abílio Pereira de Almeida. No elenco está a jovem atriz Cacilda Becker, que mais tarde se torna um dos maiores mitos do teatro brasileiro. A estréia é um sucesso.

O TBC renova a sistemática do trabalho teatral. Monta uma equipe fixa, com encenadores estrangeiros como Adolfo Celi, Ziembinski, Ruggero Jacobi, Luciano Salce e Flamínio Bollini Cerri. Além de cenógrafos, iluminadores e cenotécnicos, contrata um corpo de atores que inclui Cacilda Becker, Sérgio Cardoso, Nydia Lícia, Cleyde Yáconis, Paulo Autran, Tônia Carrero e muitos outros nomes importantes para o teatro brasileiro.

A partir de 1949, Zampari expande suas atividades nas artes e inicia a Companhia Cinematográfica Vera Cruz. As histórias da Vera Cruz e do TBC se misturam. Diversos artistas e técnicos trabalham para as duas companhias. Ao longo de sua existência, o TBC alterna grandes sucessos com fracassos de público. As constantes crises econômicas da companhia levam-na ao fechamento em 1964. O TBC é um marco na história do teatro brasileiro.

Cleyde Yáconis e Sérgio Cardoso: foto de Fredi Kleemann

Formou toda uma geração de atores, diretores e dramaturgos. Suas encenações estão documentadas em fotos de Fredi Kleemann, ator do TBC e fotógrafo de teatro. Diversas companhias teatrais têm origem no TBC, como as de Nydia Lícia e Sérgio Cardoso; de Tônia Carrero, Adolfo Celi e Paulo Autran; e de Cacilda Becker. Também o Teatro de Arena e o Teatro Oficina, que apesar de terem propostas diferentes, partem do TBC como referência. O TBC fez uma das mais importantes revoluções no teatro brasileiro ao estabelecer um novo conceito de profissionalismo. Encenou textos de qualidade, com montagens bem cuidadas e renovou o ambiente cultural brasileiro". (Fonte: Tv Cultura)



Postado por Eduardo Fiora 

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

AIMAR LABAKI ESCREVEU... EM 1993 - 3





MONTAR A CARA – A IDENTIDADE NACIONAL EM CENA

(conclusão)



Novos expoentes

(Romeu e Julieta - direção de Gabriel Vilela, 1992)


A novíssima geração já escolheu seus expoentes. Em São Paulo é Gabriel Vilela. No Rio, Moacyr Góes.

Vilela colecionou em quatro anos de carreira mais de setenta prêmios para seus espetáculos. Trabalhou com grupos de forte identidade como o Boi Voador, o Circo Graffiti e o Galpão (de Belo Horizonte) e também com estrelas como Regina Duarte, Xuxa Lopes, Lucinha Lins e Beatriz Segall.

Partindo de Shakespeare, C. A. Sofredinni, Heiner Muller ou Raymond Queneau o resultado é sempre autoral: o universo de Vilela é reconhecível já ao se abrir o pano. Cenógrafo estupendo, em seu trabalho é impossível dissociar o aspecto visual da encenação propriamente dita.

Ele procura o essencialmente brasileiro através de referências pessoais - chega a usar objetos e roupas de sua cidade natal, Carmo do Rio Claro com lugares comuns, o circo, teatro, o melodrama, o clown.

Sua última encenação, A Guerra Santa de Luiz Alberto de Abreu, estreou em Londres, no Lift-London International Festival of Theather e talvez seja o seu espetáculo mais equilibrado até aqui. Nele, as referencias locais e universais se mesclam até formarem um terceiro elemento, onde a marca do diretor é indelével. É trabalho de maturidade.

(A escola de bufoes - direção de Moacyr Goes, 1990)

Moacyr Góes também amadurece a olhos vistos. Do quase preciosismo de seu primeiro espetáculo de impacto "Escola de bufões" - ele alcançou uma depurada síntese entre informação e viés lírico em Epifanias, uma versão muito pessoal e muito brasileira do Sonho de Strindberg.

Ainda que esteticamente distantes, algo une Vilela a Góes: no centro de seu teatro está a questão ética. Ambos buscam compreender (ou forjar miticamente) um sistema de valores que os sintonize com um projeto de país que aparentemente os exclui. Não há lugar para o artesanal na Nova Ordem Mundial. Que não se veja aí uma ojeriza à tecnologia e sim um resgate da dimensão humana na questão da produção.

Os descamisados substituem os simplesmente humanos na peça de Strinberg revisitada por Góes. Vilela faz de Dante um ser enlouquecido pelo convívio cotidiano com a miséria da população e a impotência diante da violência organizada. Entre a violência (Dante) e a poesia (Virgílio), uma patética Beatriz simboliza a natureza tentando salvar ao menos a cara de uma humanidade que convive pacificamente com a barbárie, sem compreender que pode (e vai) ser dragada por ela.

Vilela e Góes, sistematicamente acusados de maneiristas, são os dois diretores da nova geração que têm atacado essa questão central de forma mais direta e inteligente.



Outros centros

(Fernanda Montenegro e Fernanda Torres no 1º festival de Curitiba, 1992)


Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Curitiba, Salvador, Belém - para ficarmos apenas nas capitais - têm uma tradição de produção e de consumo de espetáculos teatrais. Nessas cidades a divisão entre amadores e profissionais é tão tênue quanto no eixo Rio-São Paulo. Quantos profissionais, dentre os envolvidos nas mais de quatrocentas estréias do ano de 92 em São Paulo vivem realmente de seu trabalho? O que sustenta o ator brasileiro é - parodiando um bem sucedido produtor de São Paulo - a propaganda, a família e a telenovela. As exceções são, é claro, exceções.

A recessão, é óbvio, piorou essa realidade. Mas talvez a tenha depurado para melhor. O Grupo Ponto de Partida, de Barbacena, por exemplo, organizou uma estrutura de produção que, baseada na inter-relação com a comunidade, mostrou-se extremamente eficaz. O resultado é esteticamente sintonizado com essa comunidade - e com outras, como atesta o estrondoso sucesso em Montevidéu do espetáculo Beco - a ópera do lixo.

Exemplo semelhante encontramos em Salvador, onde a indústria cultural escreveu um capítulo à parte através do trabalho soteropolitano que produz e consome cultura autóctone, mas não xenófoba.

O melhor exemplo da viabilidade da produção em centros urbanos menores é a trajetória do Festival de Teatro de Curitiba. Em duas edições, o Festival passou desventura corajosa a empreendimento com repercussões internacionais.

Ele é, hoje, a vitrine do teatro brasileiro para o circuito internacional. De suas edições resultaram, por exemplo, a estréia de Gabriel Vilela em Londres e o convite a Bia Lessa para se apresentar em Montreal com Orlando - sendo ali aclamada como a grande promessa do teatro latino-americano, o que lhe abriu as portas para o circuito de distribuição europeu.

Mas o mais importante é que Curitiba se firmou como um espaço de reflexão dos profissionais da área brasileira em debates que invariavelmente tiveram lotação esgotada.

Isso só é possível porque Curitiba cultivou um público que se habituou a comparecer a espetáculos e manteve uma produção ininterrupta desde os anos 60, formando uma geração de diretores e atores sintonizada com a cena mundial. Diretores como Raul Cruz (prematuramente falecido), Marcelo Marchioro e Edson Bueno têm dado contribuições significativas à cena brasileira.

O surgimento da Rede Brasil de Produtores, conectada à Rede Latino-americana de Produtores Independentes de Arte Contemporânea, em funcionamento há três anos, tornou possível, agora, um aspecto imprescindível para a viabilização de um mercado nacional para artes cênicas: a circulação de informações. Se as produções do Rio e de São Paulo se desconhecem imaginem o que se passa entre Canela (RS) e Campina Grande (PB) apenas para citar duas cidades cujos festivais têm sido focos de resistência à impermeabilidade da mídia a formas "artesanais" e "não modernas" de arte.

A existência dessas redes e o fortalecimento do Festival de Curitiba como vitrine da melhor produção dita profissional e dos festivais de Londrina e Campinas como porta para o teatro vinculado à Universidade ou à reflexão mais geral são a saída visível para a falta de informações que torna nossos profissionais tão vulneráveis à repetição de erros e a uma visão distorcida de suas possibilidades.



Estado

(Denise Stoklos em cena de Um Orgasmo Adulto Escapa do Zoológico, 1983; foto de  Sylvia Masini,)


O teatro brasileiro - como toda a cultura - não pode depender do Estado. Governos que não conseguem nem criar uma política agrícola, num país como o Brasil, com certeza não sabem nem o que significa "política cultural". Ficamos assim à mercê de ações criminosas como as da quadrilha Fernando Collor/Ipojuca Pontes ou das limitações de competência de gestões politicamente corretas, mas inoperantes como a de Marilena Chaui.

Mas a rigor só saímos formalmente dos tempos de exceções a pouco mais de dois anos - com a posse do primeiro presidente eleito. E o processo democrático levará, no mínimo, uma geração para novamente funcionar sem as febres da primeira infância.

Na mão de outsiders como Fauzi Arap, Denise Stocklos, Antonio Nóbrega, Naum Alves de Souza, C. A. Sofredini, Hamilton Vaz Pereira, pessoas cujos projetos transcendem suas raízes históricas, é que talvez esteja a chave de uma estética mais afinada com o futuro do país. O cidadão-contribuinte, na perfeita definição de Plínio Marcos, começa a enxergar possibilidades na cena oficial. No momento em que a grande massa marginalizada do processo econômico tiver acesso às possibilidades do jogo teatral, talvez não se solucione a questão econômica, mas a questão política terá com certeza amadurecido.

O teatro protagonizou nosso único surto de identidade cultural (1950 a 1968) e sobreviveu a todos os ataques econômicos, físicos e políticos da ditadura explícita (1964 a 1984) ou implícita (1985 a 1990). Tem tudo para ser novamente deflagrador de um processo de construção (ou identificação) de uma identidade nacional. Ainda que de maneira involuntária.




06/05/1993



Aimar Labaki é jornalista e dramaturgo.