PODE A DRAMATURGIA NACIONAL MOFAR?
Numa leitura dramática há alguns dias, um jovem
autor teatral foi confrontado com as opiniões do público que acabara de
assistir à leitura de seu texto. Um dramaturgo, o "senhor X", sentado
na platéia, do alto de seus trinta anos de teatro, pede a palavra e diz o
seguinte: "Lamentável. Isto não pode ser teatro. Isto não é teatro."
Seguiu-se uma interminável polêmica sobre o que é e o que
pode ser o texto teatral e quais são suas possíveis manifestações. Um dos
argumentos do "senhor X" era de que aquele texto continha elementos
concernentes à discussões pertinentes, por exemplo, na Noruega, mas não tinha a
cara do Brasil e, portanto, isso não interessaria ao teatro brasileiro.
Com estas palavras, ele não expressava apenas a sua opinião,
mas denunciava um profundo preconceito arraigado em parte da nossa cultura
teatral. Tal ideário afirma que o teatro nacional, por pertencer a um país tão
cheio de contradições, corrupção e miséria, não pode e nem deve falar de nada
que não seja essa condição.
Essa regra da nossa produção dramatúrgica pode ser também
reconhecida em parte da produção cinematográfica nacional. O que nos leva a
viver o mesmo dilema do Teatro de Arena durante a década de 60: um grupo de
jovens de classe média intelectualizada vivendo no palco os papéis dos
miseráveis brasileiros diante de uma platéia de classe média universitária.
(Ópera dos vivos)
O discurso dos artistas abastados sobre os miseráveis
brasileiros acaba sendo perigoso, afinal, o nosso viés é sempre carregado dessa
culpa ancestral, e financiado com fundos públicos.
A perversidade desse jogo de verbas públicas é que estas
nunca estão disponíveis para que os próprios marginalizados consigam produzir o
seu discurso e a sua arte.
(Ismael Ivo)
Experiências como as recentes empreitadas de Ismael Ivo são
raras. A complexidade da condição nacional ainda não foi devidamente
equacionada em nossos órgãos públicos.
Adorno discute a arte como fato social e manifestação das
condições materiais de desenvolvimento de uma sociedade. Seu movimento, no
entanto, não é de submissão, mas sim de libertação da esfera social
propriamente dita, através de sua forma estética diferenciada e da
"promesse de bonheur" que ela traz.
(Biblioteca-del-corpo)
Assim, o teatro só pode existir como fenômeno por romper com
o real e transformá-lo em linguagem, com dinâmica e sentidos próprios. A força
libertadora do teatro não reside em seus dogmas, mas em seus avanços estéticos
na expressão formal da sensualidade e da razão humanas.
O Brasil da década de 50 era mais miserável e camponês do
que hoje e, no entanto, produziu um teatro burguês de primeira qualidade. O
Brasil dos anos 50 era de Jeca Tatu, mas também era o TBC. E aqueles diretores
estrangeiros todos trabalhando em nossas terras manifestavam não apenas a
condição brasileira de otimismo desenvolvimentista, mas também os estragos que
a Segunda Guerra Mundial provocava em seus países de origem.
Mas o "senhor X" diria, provavelmente, que o TBC
era "lamentável", que o inglês Shakespeare jamais poderia falar sobre
um príncipe dinamarquês ou sobre um romance de jovens italianos, que Peter
Brook não deveria montar "Mahabarata" em Paris. Enfim, o "senhor
X" nos teria deixado muito pouco teatro.
E o pior: o "senhor X" tem muitos amigos que
pensam de forma semelhante, espalhados por jornais, revistas culturais, órgãos
públicos. Todos eles ansiosos para poder punir aqueles que buscam fugir do
dogma.
***
Mas a discussão com o jovem dramaturgo deixou em aberto
outra questão importante sobre a nossa dramaturgia: onde estão os autores
nacionais que pesquisam novas vertentes da linguagem dramatúrgica?
O realismo é um dos principais desafios da nova onda de
dramaturgia nacional, pois, ao mesmo tempo que possui fórmulas fáceis de serem
aplicadas, aprisiona o potencial criativo. Os modernos pesquisaram
incessantemente a quebra do realismo, utilizando-se de vários recursos
estilísticos. Os avanços das obras de Mário de Andrade não puderam ser
assimilados pelo teatro daquela época, e o exemplo de "O Rei da Vela"
é o mais veemente desta defasagem. Mas hoje em dia, o movimento parece o
contrário: buscamos novos Mários de Andrade. O fato é que o realismo, com seus prós
e contras, assumiu-se como a regra.
Vivemos a síndrome da influência de Plínio Marcos.
Personagens como divindades, forças da natureza, anjos, seres fantásticos e
ainda situações surrealistas ficam restritas a textos infantis ou montagens de
Shakespeare.
Este fenômeno não é exclusivamente brasileiro. Em todas as
discussões internacionais sobre o famigerado pós-modernismo, o teatro é
mencionado de relance.
No "Dicionário de Teatro", de Patrice Pavis, o
termo é ridicularizado. O problema está no termo ou nos caminhos que o teatro
tem seguido? Em tempos como estes, seria ridículo professar a morte do realismo
no teatro. Alguns dos mais importantes momentos da renovação dramatúrgica
brasileira usam dessa estética. Mas pior é pensar que o realismo nos extorquiu todas
as outras possibilidades dramatúrgicas.
Afinal, perdemos a fantasia ou a ousadia? Ou seria a culpa
atávica da classe média brasileira que nos impede de pesquisar novos universos?
***
Outro dos grandes desafios da dramaturgia é a necessidade de
se montar os textos já escritos. Jarbas Capusso, dramaturgo paulista, procurou,
por diversas vezes, grupos e atores para montarem o seu texto "A noite em
que Blanche Dubois Chorou Sobre a Minha Alma".
Jarbas é um dos muitos autores teatrais que não tem acesso
aos grandes palcos. Seus textos, muitos, estão em gavetas, aguardando serem
descobertos. Muitas vezes, entrou em contato comigo, inclusive.
Esta semana, saiu o resultado do Prêmio Funarte de
Dramaturgia, e ele foi o vencedor exatamente com esse texto. Finalmente, li o
texto (por que eu demorei tanto?), e vi uma belíssima obra de teatro, de um
realismo amargo e desesperançado, metalinguístico e tocante, com um jogo de
intertextualidades absolutamente deslumbrante. O "senhor X" odiaria a
menção a uma personagem americana (urgh!) em um título de peça nacional. Seu
amigo Jdanov diria que é puro colonialismo. Por outro lado, os críticos do
realismo no teatro teriam que se calar.
Quais são as perspectivas de Jarbas e de seu texto? Poucas,
pois a política oficial de distribuição de verbas públicas está mais voltada
para o trabalho de grupos (no caso do Fomento) ou premiação de textos (no caso
da Funarte). Mas não existem políticas consistentes dirigidas para a montagem e
exibição de textos nacionais inéditos. E Jarbas Capusso deve esperar por um
milagre.
***
Muitos dos maiores dramaturgos de todos os tempos, de
Molière a Lope de Vega, Racine, Ibsen, Strindberg e Shakespeare, (só para citar
alguns nomes) viveram intensamente dentro do micro-universo do teatro. Sua
imaginação dava vazão a personagens e situações que eles próprios
compartilhavam com atores, diretores, produtores. Muitos se apaixonavam por
suas atrizes. Estavam sempre ligados a grupos e artistas, que acabavam dando
forma a suas aventuras dramatúrgicas.
Este é um outro caminho que vem surgindo com força dentro do
panorama da dramaturgia nacional, acontecendo, em especial, nos grupos com
teatro de pesquisa. Os resultados tem sido bastante promissores e novos
dramaturgos vem surgindo desses processos.
***
(Macunaíma de Antunes Filho)
Essas são apenas algumas das inúmeras questões que se pode
colocar sobre o panorama da dramaturgia nacional contemporânea. As dificuldades
são muitas, mas o medo maior seria a mumificação da nossa escrita teatral.
Parodiando a protagonista do texto de Capusso, a questão é: pode a dramaturgia
brasileira mofar? Com a palavra, o "senhor X "e seus amigos Jdanovs.
PS: peço desculpas ao experiente dramaturgo brasileiro por
chamá-lo de "senhor X", plagiando o nome de uma personagem daquele
famoso autor sueco.
16:18 08/12
Especial para o Aplauso Brasil (Rodolfo@aplausobrasil.com )
Rodolfo García Vázquez é diretor teatral e um dos fundadores
da companhia de teatro Os Satyros e está em cartaz com o espetáculo "A
Filosofia na Alcova", do Marquês de Sade.
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