sexta-feira, 15 de abril de 2016

RODOLFO GARCÍA VÁZQUEZ ESCREVEU: PODE A DRAMATURGIA NACIONAL MOFAR?



PODE A DRAMATURGIA NACIONAL MOFAR?








Numa leitura dramática há alguns dias, um jovem autor teatral foi confrontado com as opiniões do público que acabara de assistir à leitura de seu texto. Um dramaturgo, o "senhor X", sentado na platéia, do alto de seus trinta anos de teatro, pede a palavra e diz o seguinte: "Lamentável. Isto não pode ser teatro. Isto não é teatro."





Seguiu-se uma interminável polêmica sobre o que é e o que pode ser o texto teatral e quais são suas possíveis manifestações. Um dos argumentos do "senhor X" era de que aquele texto continha elementos concernentes à discussões pertinentes, por exemplo, na Noruega, mas não tinha a cara do Brasil e, portanto, isso não interessaria ao teatro brasileiro.




Com estas palavras, ele não expressava apenas a sua opinião, mas denunciava um profundo preconceito arraigado em parte da nossa cultura teatral. Tal ideário afirma que o teatro nacional, por pertencer a um país tão cheio de contradições, corrupção e miséria, não pode e nem deve falar de nada que não seja essa condição.



Essa regra da nossa produção dramatúrgica pode ser também reconhecida em parte da produção cinematográfica nacional. O que nos leva a viver o mesmo dilema do Teatro de Arena durante a década de 60: um grupo de jovens de classe média intelectualizada vivendo no palco os papéis dos miseráveis brasileiros diante de uma platéia de classe média universitária.

(Ópera dos vivos)

O discurso dos artistas abastados sobre os miseráveis brasileiros acaba sendo perigoso, afinal, o nosso viés é sempre carregado dessa culpa ancestral, e financiado com fundos públicos.

A perversidade desse jogo de verbas públicas é que estas nunca estão disponíveis para que os próprios marginalizados consigam produzir o seu discurso e a sua arte.

(Ismael Ivo)

Experiências como as recentes empreitadas de Ismael Ivo são raras. A complexidade da condição nacional ainda não foi devidamente equacionada em nossos órgãos públicos.

Adorno discute a arte como fato social e manifestação das condições materiais de desenvolvimento de uma sociedade. Seu movimento, no entanto, não é de submissão, mas sim de libertação da esfera social propriamente dita, através de sua forma estética diferenciada e da "promesse de bonheur" que ela traz.

(Biblioteca-del-corpo)

Assim, o teatro só pode existir como fenômeno por romper com o real e transformá-lo em linguagem, com dinâmica e sentidos próprios. A força libertadora do teatro não reside em seus dogmas, mas em seus avanços estéticos na expressão formal da sensualidade e da razão humanas.

O Brasil da década de 50 era mais miserável e camponês do que hoje e, no entanto, produziu um teatro burguês de primeira qualidade. O Brasil dos anos 50 era de Jeca Tatu, mas também era o TBC. E aqueles diretores estrangeiros todos trabalhando em nossas terras manifestavam não apenas a condição brasileira de otimismo desenvolvimentista, mas também os estragos que a Segunda Guerra Mundial provocava em seus países de origem.



Mas o "senhor X" diria, provavelmente, que o TBC era "lamentável", que o inglês Shakespeare jamais poderia falar sobre um príncipe dinamarquês ou sobre um romance de jovens italianos, que Peter Brook não deveria montar "Mahabarata" em Paris. Enfim, o "senhor X" nos teria deixado muito pouco teatro.

E o pior: o "senhor X" tem muitos amigos que pensam de forma semelhante, espalhados por jornais, revistas culturais, órgãos públicos. Todos eles ansiosos para poder punir aqueles que buscam fugir do dogma.

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Mas a discussão com o jovem dramaturgo deixou em aberto outra questão importante sobre a nossa dramaturgia: onde estão os autores nacionais que pesquisam novas vertentes da linguagem dramatúrgica?

O realismo é um dos principais desafios da nova onda de dramaturgia nacional, pois, ao mesmo tempo que possui fórmulas fáceis de serem aplicadas, aprisiona o potencial criativo. Os modernos pesquisaram incessantemente a quebra do realismo, utilizando-se de vários recursos estilísticos. Os avanços das obras de Mário de Andrade não puderam ser assimilados pelo teatro daquela época, e o exemplo de "O Rei da Vela" é o mais veemente desta defasagem. Mas hoje em dia, o movimento parece o contrário: buscamos novos Mários de Andrade. O fato é que o realismo, com seus prós e contras, assumiu-se como a regra.


(Navalha-na-Carne)

Vivemos a síndrome da influência de Plínio Marcos. Personagens como divindades, forças da natureza, anjos, seres fantásticos e ainda situações surrealistas ficam restritas a textos infantis ou montagens de Shakespeare.

Este fenômeno não é exclusivamente brasileiro. Em todas as discussões internacionais sobre o famigerado pós-modernismo, o teatro é mencionado de relance.



No "Dicionário de Teatro", de Patrice Pavis, o termo é ridicularizado. O problema está no termo ou nos caminhos que o teatro tem seguido? Em tempos como estes, seria ridículo professar a morte do realismo no teatro. Alguns dos mais importantes momentos da renovação dramatúrgica brasileira usam dessa estética. Mas pior é pensar que o realismo nos extorquiu todas as outras possibilidades dramatúrgicas.

Afinal, perdemos a fantasia ou a ousadia? Ou seria a culpa atávica da classe média brasileira que nos impede de pesquisar novos universos?

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Outro dos grandes desafios da dramaturgia é a necessidade de se montar os textos já escritos. Jarbas Capusso, dramaturgo paulista, procurou, por diversas vezes, grupos e atores para montarem o seu texto "A noite em que Blanche Dubois Chorou Sobre a Minha Alma".

Jarbas é um dos muitos autores teatrais que não tem acesso aos grandes palcos. Seus textos, muitos, estão em gavetas, aguardando serem descobertos. Muitas vezes, entrou em contato comigo, inclusive.




Esta semana, saiu o resultado do Prêmio Funarte de Dramaturgia, e ele foi o vencedor exatamente com esse texto. Finalmente, li o texto (por que eu demorei tanto?), e vi uma belíssima obra de teatro, de um realismo amargo e desesperançado, metalinguístico e tocante, com um jogo de intertextualidades absolutamente deslumbrante. O "senhor X" odiaria a menção a uma personagem americana (urgh!) em um título de peça nacional. Seu amigo Jdanov diria que é puro colonialismo. Por outro lado, os críticos do realismo no teatro teriam que se calar.

Quais são as perspectivas de Jarbas e de seu texto? Poucas, pois a política oficial de distribuição de verbas públicas está mais voltada para o trabalho de grupos (no caso do Fomento) ou premiação de textos (no caso da Funarte). Mas não existem políticas consistentes dirigidas para a montagem e exibição de textos nacionais inéditos. E Jarbas Capusso deve esperar por um milagre.

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Muitos dos maiores dramaturgos de todos os tempos, de Molière a Lope de Vega, Racine, Ibsen, Strindberg e Shakespeare, (só para citar alguns nomes) viveram intensamente dentro do micro-universo do teatro. Sua imaginação dava vazão a personagens e situações que eles próprios compartilhavam com atores, diretores, produtores. Muitos se apaixonavam por suas atrizes. Estavam sempre ligados a grupos e artistas, que acabavam dando forma a suas aventuras dramatúrgicas.

Este é um outro caminho que vem surgindo com força dentro do panorama da dramaturgia nacional, acontecendo, em especial, nos grupos com teatro de pesquisa. Os resultados tem sido bastante promissores e novos dramaturgos vem surgindo desses processos.

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(Macunaíma de Antunes Filho)

Essas são apenas algumas das inúmeras questões que se pode colocar sobre o panorama da dramaturgia nacional contemporânea. As dificuldades são muitas, mas o medo maior seria a mumificação da nossa escrita teatral. Parodiando a protagonista do texto de Capusso, a questão é: pode a dramaturgia brasileira mofar? Com a palavra, o "senhor X "e seus amigos Jdanovs.

PS: peço desculpas ao experiente dramaturgo brasileiro por chamá-lo de "senhor X", plagiando o nome de uma personagem daquele famoso autor sueco.

(a-filosofia-na-alcova-satyros)


16:18 08/12


Especial para o Aplauso Brasil (Rodolfo@aplausobrasil.com )



Rodolfo García Vázquez é diretor teatral e um dos fundadores da companhia de teatro Os Satyros e está em cartaz com o espetáculo "A Filosofia na Alcova", do Marquês de Sade.


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