UMA HOMENAGEM A CHICO DE ASSIS
Quando recebi o pedido de MÁRCIO BOARO E MÔNICA RAPHAEL para escrever o livro sobre a dramaturgia de Chico de Assis, ou seja, sobre as aulas do SEMDA, pensei, em primeiro lugar, em pedir ajuda a todos os seus alunos que tivessem anotações para compartilhar comigo. No entanto, o prazo era muito curto e não teria tempo hábil para isso. Tive, então, que usar somente minhas anotações e fazer um esforço hercúleo de memória, para escrever esse pequeno livro (tinha também a limitação de extensão). Relato isso agora, como um pedido de desculpas a todos os alunos do Chico de Assis que poderiam ter-me fornecido material e sugestões para a obra. Tentei, portanto, com os recursos de que dispunha, fazer o melhor possível e aí está, não um livro que seja totalmente digno do Mestre, mas o fruto do esforço de um dos seus alunos que sempre o admirou. E nessa data, O DIA INTERNACIONAL DO TEATRO, quero relembrar o Mestre e homenageá-lo, com a publicação de um pequeno texto do livro O TEMPO DO TEMPLO E O TEMPO DO MUNDO: A DRAMATURGIA DE CHICO DE ASSIS:
Dramaturgo é quem escreve peças de teatro, adapta
textos para o teatro etc. Essa afirmação simples e até simplória esconde, no
entanto, discussões bastante complexas com relação à arte de escrever para
teatro.
Conto uma breve história, sem citar o nome do
espetáculo, para não melindrar ninguém, nem polemizar: há alguns anos, um
espetáculo de teatro fazia grande sucesso e atraía um público imenso. O gênero:
comédia. Tomei coragem e fui assistir à peça. Bem escrita, diálogos ótimos,
ri-se do começo ao fim, estrutura correta em termos de comédia, com todos os
seus elementos bem trabalhados. Depois do teatro, coroando a noite, um jantar
num bom restaurante, boa conversa etc. Duas horas depois, se alguém me
perguntasse sobre a peça, diria que havia gostado, que havia me divertido,
mas... só isso, não acrescentou nada à minha vida e algumas horas mais nem me
lembrava de seu enredo ou se de seu conteúdo, apenas ficaram a lembrança da
interpretação dos atores, algumas piadas... Mais nada, absolutamente nada.
Em 1969, ainda muito jovem, assisti à encenação de O
BALCÃO, de Jean Genet, com direção de Vítor Garcia, no Teatro Ruth Escobar, em
São Paulo. Genet tem pouco domínio da técnica dramatúrgica, mas... que
espetáculo! Até hoje, passados tantos anos, ainda me lembro do quanto se
discutiu a respeito dessa peça. E não apenas pela montagem inovadora do diretor,
Victor García: havia/há no texto de Genet, revisto muitos anos depois numa
outra montagem, mais tradicional, conceitos que impactam nosso pensamento,
provocam-nos intelectualmente, ou seja, mudam nossa visão de mundo ou, no
mínimo, tiram-nos de nossa zona de conforto.
Tanto o autor da comédia quanto Jean Genet são
dramaturgos. Mas há diferenças enormes entre eles. O primeiro domina a
carpintaria da comédia, mas não nos faz pensar. O segundo não tem um apurado
domínio da técnica, mas nos faz sair do teatro incomodados, mesmo que não
concordemos com seu pensamento.
Essa pequena introdução serve para que eu me lembre
das palavras de Chico de Assis sobre a sutil diferença que ele estabelecia
entre o dramaturgo (aquele que escreve peças de teatro e tem domínio de
sua carpintaria) e autor (aquele que escreve peças de teatro e não tem
um “olhar ingênuo” sobre o mundo).
Na verdade, o que Mestre desejava é que todo
dramaturgo tivesse domínio da técnica dramatúrgica, mas também tivesse o olhar
de autor, tivesse experiência de vida, observasse a realidade como um
laboratório. Para ele, nós observamos até a nós mesmos e a arte de observar é
profundamente complexa. Há pessoas que observam porque amam profundamente a
realidade e outros há que observam porque amam profundamente a sua opinião
sobre a realidade (objetividade e subjetividade).
Quando se cria, o eu experimentador não pode ser
inocente, para não ser enganado pela realidade. Quanto mais treinado é o
observador, quanto mais conhece a respeito da realidade sobre a qual escreve,
mais fácil para ele tirar dessa realidade aquilo que o Mestre chama de “o ouro
do fato”, os aspectos mais importantes, mais preciosos, mais profundos.
Uma outra forma de observar os fatos, de buscar aquilo
que mais importa para a obra, é através da pesquisa, da leitura não só de
outras obras de dramaturgos importantes, mas também do conhecimento de
História, de Filosofia etc.
Vivência, observação, estudo, tudo isso para evitar o
olhar ingênuo, que não serve ao dramaturgo, que deve ter visão de raio X,
enxergar o que os outros não veem, já que a vida é cheia de “som e fúria”, como
já nos alertava Shakespeare.
“Talento é transformar razão em emoção e emoção em
razão. Só é conseguido na maneira de fazer. Na técnica.” E essas são palavras
literais de Chico de Assis. Para ele, não importa que tipo de dramaturgia se
pratique, há necessidade de buscar sempre a “melhor forma”, através do
conhecimento da carpintaria teatral, dos elementos que não deixam que uma peça
entre em “entropia”, isto é, perca a sua força diante do espectador, mas
principalmente não ter o “olhar ingênuo”. E ele dava um exemplo bastante
simples para o “insight” de uma peça:
UM HOMEM CAÍDO NA RUA:
QUEM É?
Pode ser o Diabo, por exemplo, e isso poderia
despertar o interesse da plateia e levar o dramaturgo a construir uma estrutura
dramática de grande força.
Mas, se ele cair na tentação do “fato comum”, como o
desemprego, poderá cair no abismo do drama “pequeno”, naturalista, com
personagens frágeis. Para evitar isso, teria que buscar uma história forte,
inserida num contexto social ou político em que se movessem personagens de
grande interesse, com um protagonista que tenha uma forte vontade dramática
ante obstáculos difíceis de transpor.
Plínio Marcos, por exemplo, não tinha o olhar ingênuo,
ainda que se possa afirmar que sua técnica não fosse tão apurada. Outro que
também não era nada ingênuo: Jean Genet, como já citamos.
CURA
DO "OLHAR INGÊNUO"
cavoucar
profundamente no caos, no ser humano;
ultrapassar os
limites sociais, históricos e políticos;
para mergulhar no
caos, é preciso, também, técnica (quem não sabe mergulhar, fica na superfície);
ultrapassar os
modelos europeus e americanos;
livrar-se dos
resíduos da moral (moral alta, nível ético baixo).
Para encerrar essas observações sobre o dramaturgo,
deixo uma citação que Chico de Assis gostava de repetir:
"SE VOCÊ VAI A UM LUGAR QUE NÃO SABE ONDE É,
NÃO VÁ POR CAMINHOS QUE VOCÊ JÁ CONHECE." (São João da Cruz).
Nenhum comentário:
Postar um comentário