quarta-feira, 27 de março de 2024

27 DE MARÇO: DIA INTERNACIONAL DO TEATRO - UMA HOMENAGEM A CHICO DE ASSIS

 UMA HOMENAGEM A CHICO DE ASSIS

(Chico de Assis, ao receber o prêmio por notável saber)

Quando recebi o pedido de MÁRCIO BOARO E MÔNICA RAPHAEL para escrever o livro sobre a dramaturgia de Chico de Assis, ou seja, sobre as aulas do SEMDA, pensei, em primeiro lugar, em pedir ajuda a todos os seus alunos que tivessem anotações para compartilhar comigo. No entanto, o prazo era muito curto e não teria tempo hábil para isso. Tive, então, que usar somente minhas anotações e fazer um esforço hercúleo de memória, para escrever esse pequeno livro (tinha também a limitação de extensão). Relato isso agora, como um pedido de desculpas a todos os alunos do Chico de Assis que poderiam ter-me fornecido material e sugestões para a obra. Tentei, portanto, com os recursos de que dispunha, fazer o melhor possível e aí está, não um livro que seja totalmente digno do Mestre, mas o fruto do esforço de um dos seus alunos que sempre o admirou. E nessa data, O DIA INTERNACIONAL DO TEATRO, quero relembrar o Mestre e homenageá-lo, com a publicação de um pequeno texto do livro  O TEMPO DO TEMPLO E O TEMPO DO MUNDO: A DRAMATURGIA DE CHICO DE ASSIS:




O DRAMATURGO

 

Dramaturgo é quem escreve peças de teatro, adapta textos para o teatro etc. Essa afirmação simples e até simplória esconde, no entanto, discussões bastante complexas com relação à arte de escrever para teatro.

Conto uma breve história, sem citar o nome do espetáculo, para não melindrar ninguém, nem polemizar: há alguns anos, um espetáculo de teatro fazia grande sucesso e atraía um público imenso. O gênero: comédia. Tomei coragem e fui assistir à peça. Bem escrita, diálogos ótimos, ri-se do começo ao fim, estrutura correta em termos de comédia, com todos os seus elementos bem trabalhados. Depois do teatro, coroando a noite, um jantar num bom restaurante, boa conversa etc. Duas horas depois, se alguém me perguntasse sobre a peça, diria que havia gostado, que havia me divertido, mas... só isso, não acrescentou nada à minha vida e algumas horas mais nem me lembrava de seu enredo ou se de seu conteúdo, apenas ficaram a lembrança da interpretação dos atores, algumas piadas... Mais nada, absolutamente nada.

Em 1969, ainda muito jovem, assisti à encenação de O BALCÃO, de Jean Genet, com direção de Vítor Garcia, no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo. Genet tem pouco domínio da técnica dramatúrgica, mas... que espetáculo! Até hoje, passados tantos anos, ainda me lembro do quanto se discutiu a respeito dessa peça. E não apenas pela montagem inovadora do diretor, Victor García: havia/há no texto de Genet, revisto muitos anos depois numa outra montagem, mais tradicional, conceitos que impactam nosso pensamento, provocam-nos intelectualmente, ou seja, mudam nossa visão de mundo ou, no mínimo, tiram-nos de nossa zona de conforto.

Tanto o autor da comédia quanto Jean Genet são dramaturgos. Mas há diferenças enormes entre eles. O primeiro domina a carpintaria da comédia, mas não nos faz pensar. O segundo não tem um apurado domínio da técnica, mas nos faz sair do teatro incomodados, mesmo que não concordemos com seu pensamento.

Essa pequena introdução serve para que eu me lembre das palavras de Chico de Assis sobre a sutil diferença que ele estabelecia entre o dramaturgo (aquele que escreve peças de teatro e tem domínio de sua carpintaria) e autor (aquele que escreve peças de teatro e não tem um “olhar ingênuo” sobre o mundo).

Na verdade, o que Mestre desejava é que todo dramaturgo tivesse domínio da técnica dramatúrgica, mas também tivesse o olhar de autor, tivesse experiência de vida, observasse a realidade como um laboratório. Para ele, nós observamos até a nós mesmos e a arte de observar é profundamente complexa. Há pessoas que observam porque amam profundamente a realidade e outros há que observam porque amam profundamente a sua opinião sobre a realidade (objetividade e subjetividade).

Quando se cria, o eu experimentador não pode ser inocente, para não ser enganado pela realidade. Quanto mais treinado é o observador, quanto mais conhece a respeito da realidade sobre a qual escreve, mais fácil para ele tirar dessa realidade aquilo que o Mestre chama de “o ouro do fato”, os aspectos mais importantes, mais preciosos, mais profundos.

Uma outra forma de observar os fatos, de buscar aquilo que mais importa para a obra, é através da pesquisa, da leitura não só de outras obras de dramaturgos importantes, mas também do conhecimento de História, de Filosofia etc.

Vivência, observação, estudo, tudo isso para evitar o olhar ingênuo, que não serve ao dramaturgo, que deve ter visão de raio X, enxergar o que os outros não veem, já que a vida é cheia de “som e fúria”, como já nos alertava Shakespeare.

“Talento é transformar razão em emoção e emoção em razão. Só é conseguido na maneira de fazer. Na técnica.” E essas são palavras literais de Chico de Assis. Para ele, não importa que tipo de dramaturgia se pratique, há necessidade de buscar sempre a “melhor forma”, através do conhecimento da carpintaria teatral, dos elementos que não deixam que uma peça entre em “entropia”, isto é, perca a sua força diante do espectador, mas principalmente não ter o “olhar ingênuo”. E ele dava um exemplo bastante simples para o “insight” de uma peça:

UM HOMEM CAÍDO NA RUA: QUEM É?

Pode ser o Diabo, por exemplo, e isso poderia despertar o interesse da plateia e levar o dramaturgo a construir uma estrutura dramática de grande força.

Mas, se ele cair na tentação do “fato comum”, como o desemprego, poderá cair no abismo do drama “pequeno”, naturalista, com personagens frágeis. Para evitar isso, teria que buscar uma história forte, inserida num contexto social ou político em que se movessem personagens de grande interesse, com um protagonista que tenha uma forte vontade dramática ante obstáculos difíceis de transpor.

Plínio Marcos, por exemplo, não tinha o olhar ingênuo, ainda que se possa afirmar que sua técnica não fosse tão apurada. Outro que também não era nada ingênuo: Jean Genet, como já citamos.

 

CURA DO "OLHAR INGÊNUO"

cavoucar profundamente no caos, no ser humano;

ultrapassar os limites sociais, históricos e políticos;

para mergulhar no caos, é preciso, também, técnica (quem não sabe mergulhar, fica na superfície);

ultrapassar os modelos europeus e americanos;

livrar-se dos resíduos da moral (moral alta, nível ético baixo).

 

Para encerrar essas observações sobre o dramaturgo, deixo uma citação que Chico de Assis gostava de repetir:

 

"SE VOCÊ VAI A UM LUGAR QUE NÃO SABE ONDE É, NÃO VÁ POR CAMINHOS QUE VOCÊ JÁ CONHECE." (São João da Cruz).

segunda-feira, 25 de março de 2024

IZAIAS ALMADA ESCREVEU: AMIGOS PARA SEMPRE: AUGUSTO BOAL (*)

 

AMIGOS PARA SEMPRE: AUGUSTO BOAL,

por Izaías Almada


 


       


PRIMEIRO ATO:



Mestre a amigo. Dito assim, a constatação da minha amizade com Boal, pode ser entendida apenas como um lugar comum biográfico, quando é exatamente o contrário.

No livro que escrevi com o professor de teatro e psicanalista Anderson Zanetti, lançado pela Editora Metanóia, inicio assim o meu artigo:



“AUGUSTO Pinto Rodrigues BOAL, nascido no Rio de Janeiro em 1931 e adotado pelo teatro paulista e mundial a partir da década de 50, é um dos nomes mais sonantes do teatro brasileiro. Encenador, dramaturgo, ensaísta, escritor, político, teórico, revolucionário, são atividades às quais se dedicou, sem que nenhuma delas ou mesmo o seu conjunto possa definir com maior alcance a personalidade, o humanismo e a grandeza de espírito que caracterizou esse que é dos mais dignos entusiastas da atividade que imortalizou a arte de Sófocles, Shakespeare, Tchecov, Brecht, Guarnieri, Vianinha e Jorge Andrade, para ficarmos apenas nesses nomes. Criador e incentivador do Teatro do Oprimido, Augusto Boal se tornou com ele conhecido mundialmente e tal reconhecimento lhe valeu, em 2008, a indicação para o prêmio Nobel da Paz”.

Nossa amizade começou na Escola de Arte Dramática de São Paulo em 1963, ganhou fôlego no Teatro de Arena (1964/1968) e solidificou-se durante nossas prisões nos anos de 1969 e 1971, durante a ditadura civil/militar criada pelo golpe de 1964.

Quando aceitei o convite para ir ajudar na montagem do show “Opinião” no Rio de Janeiro, minha primeira tarefa como “assistente de direção” foi retornar a São Paulo e contratar um caminhão para transportar as cadeiras de um velho cinema da cidade, pois o espaço conseguido na Rua Siqueira Campos em Copacabana no RJ era um mezanino de cimento armado totalmente vazio.

Instaladas as cadeiras, acompanhei todos os ensaios observando atentamente como Boal dirigia Nara Leão, Zé Keti e João do Vale, uma aula inesquecível para mim.

Penso que um dos principais fatores das verdadeiras amizades se dá pelo respeito ao outro e no cumprimento da palavra empenhada, sobretudo “para quem não conhece as pedras do caminho”.

Foi o que se passou comigo, quando alguns dias após a estreia de “Opinião”, Boal me perguntou se eu aceitaria substituir o ator Chant Dessian na montagem de “Arena Conta Zumbi”, em São Paulo. Aceitei, claro, e lá fui eu para a arena da Rua Theodoro Bayma cheio de alegria e contentamento.

“Arena conta Zumbi”, “Inspetor Geral” e a responsabilidade de coordenar o Núcleo 2 do Arena por um ano, onde foram encenadas três peças: “O Processo”, de Kafka, “Escola de Mulheres” de Molière e “A Farsa do Cangaceiro com Truco e Padre”, de Chico de Assis. Foi uma fase de trabalho que conquistei graças à confiança de Boal.



SEGUNDO ATO:



Na introdução do meu artigo no livro “Augusto Boal: Embaixador do Teatro Brasileiro” abri o parágrafo com uma pergunta:

Por que Augusto Boal?

No natal do ano 2000 estava eu visitando minha filha Ana Luísa, na época morando em Londres, quando por ela fui convidado a conhecer uma conceituada livraria da cidade. Como ela estava nos primeiros meses de maternidade, com o nascimento do meu neto Leonardo, sugeriu uma grande livraria onde, entre outros serviços, havia um departamento para cuidar de bebês, deixando pais e avós descansados para procurarem os livros que quisessem.

Livraria de grandes dimensões, constituída por vários andares, pedi que me indicassem a seção de teatro e lá fui eu com a minha companheira Bernadette Figueiredo, ficando minha filha entretida no tal departamento infantil. O volume de livros sobre teatro já era impressionante, mas fiquei mais impressionado ainda quando vi uma estante de aproximadamente uns três metros de extensão, toda ela tomada por livros sobre e de Augusto Boal.

O exílio provocado por sua prisão em 1971 fez com que Boal se dedicasse à sua melhor criação teórica e prática: o teatro do oprimido que, segundo estatísticas, é praticado em mais de 70 países mundo afora…

Naquele mesmo ano de 2000 tive a honra de falar no lançamento do livro Hamlet e o filho do padeiro na cidade de São Paulo.

Revi Boal depois de vários anos sem nos encontrarmos. O lançamento, feito no auditório do Museu de Arte Moderna (MAM), no Parque do Ibirapuera, recebeu um grande público, ocasião em que improvisei um pequeno discurso sobre aquele que foi o meu mestre nas artes cênicas…

Os anos passaram, mas a amizade permaneceu, fruto de uma sintonia sobre o que pode representar uma arte milenar, como o teatro, no mundo contemporâneo. Nada mais, nada menos do que se constituir numa ferramenta de transformação social.

Viver é representar, é fazer teatro diariamente. E nessa representação temos a liberdade de escolher entre dois grandes personagens: Iago ou Che Guevara.

Não tenho a menor ideia onde você estará nesse momento, Boal. Talvez ensinando o Teatro do Oprimido aos doze apóstolos, mas como já disse e cantou outro grande amigo seu, de nome Chico Buarque, aqui na terra continua o futebol, tem muito golpe na internet e besteirol, nuns dias choro, noutros dias pego sol, mas posso lhe dizer que a coisa ‘inda está preta…

A ver, vamos…

 

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

 

(*) "Penso que um dos principais fatores das verdadeiras amizades se dá pelo respeito ao outro e no cumprimento da palavra empenhada" - esta é a frase de abertura deste texto, que é parte de uma série de artigos que Izaias Almada escreveu sobre a amizade. 


Fontes:

jornalggn@gmail.com

https://jornalggn.com.br/cronica/amigos-para-sempre-iv-augusto-boal-por-izaias-almada/?fbclid=IwAR1rj3r4hR1O4LS5y3zN69-_issd_8p21UPUeZRAdSXa3MxUO7ruKOCca74

Publicado em 14 de fevereiro de 2024