A PERSONAGEM FANTÁSTICA
Aristóteles foi um dos primeiros teóricos a debruçar-se sobre a questão da personagem. Partindo do conceito de “mimesis”, ele enfatizou a semelhança entre os seres fictícios e o homem. Além disso, como assinala Fernando Segolin, o Estagirita “fala-nos também de uma personagem possivelmente humana, dotada de uma humanidade ideal.” Como a semelhança entre a personagem fantástica e o homem ou entre ela e uma humanidade ideal só é possível depois de um elaborado processo de associações através das quais o leitor decodifica a metáfora do texto, desde logo percebe-se a inadequação do conceito aristotélico para defini-la.
O ser fantástico representa em si mesmo uma quebra das expectativas, uma subversão da “mimesis”. Para entendê-la, será, portanto, necessário compreender esta subversão. Tratando das interações entre retórica e ideologia, Umberto Eco assinala que “toda verdadeira subversão das expectativas ideológicas é efetivada na medida em que traduz em mensagens que também subvertam os sistemas de expectativas retóricas. E tôda subversão profunda das expectativas retóricas é também um redimensionamento das expectativas ideológicas. Nesse princípio se baseia a arte de vanguarda, mesmo nos seus momentos definidos como “formalista”, quando, usando o código de maneira altamente informativa, não só o põe em crise, mas obriga a repensar, através da crise do código, a crise das ideologias nas quais ele se identificava.”
Eco nos dá uma pista importante para entender a personagem fantástica. Sua inadequação ao conceito de “mimesis” aristotélico denuncia tanto a crise deste conceito, como também da própria língua. Incapaz de exprimir a mensagem do artista em razão de sua coerência, a língua é subvertida através da quebra de expectativas e o fantástico é instaurado no texto através da personagem anti-mimética. Rompendo as expectativas do discurso, ela questiona profundamente a idéia que o homem tem de si mesmo. Nesse sentido, pode-se dizer que a literatura fantástica é altamente ideologizada em virtude das características da personagem do gênero. Aliás, é o trabalho de construção da personagem que confere a marca distintiva da literatura fantástica.
O conceito de personagem formulado por Aristóteles é capaz de ajustar-se às mais diversas personagens literárias. Qualquer que seja a escola, a personagem sempre refletiu ou procurou refletir um aspecto do homem ou de uma humanidade ideal. Tanto D. Casmurro de Machado de Assis, quanto Werther de Goethe e Otelo de Willian Shakespeare retratam o homem apaixonado. O João da Paz de Érico Verisimo também. Só que o último é um não homem. Um morto que se levanta do caixão e retorna a Antares para denunciar como foi morto por tortura e tentar proteger a esposa e o filho que está por nascer. Assim, não é possível estabelecer qualquer relação entre ele e Bentinho, Werther e Otelo. O amor que João da Paz sente por Rita Paz é de uma natureza distinta do experimentado pelas outras personagens citadas. O amor de que fala Érico Verisimo é capaz de vencer a morte. É óbvio que isto se trata de uma metáfora, afinal a morte é absoluta e ninguém retorna dela. Todavia, Verisimo quer nos dizer que existem sentimentos mais fortes, mais delicados que o desejo de Werther por Carlota e o ciúmes de D. Casmurro por Capitu e de Otelo por Desdemona. É destes sentimentos que a personagem fantástica nos fala. João da Paz quebra as expectativas que temos do amor. Seu amor por Rita Paz é capaz de transcender o desejo e o ciúmes, por isso mesmo, só poderia partir de um morto. E é aqui que realidade e ficção se interpenetram no texto. Afinal, para amar é preciso despojar-se do egocentrismo e isso equivale a morrer. De alguma forma. Verissino poderia muito bem tratar do tema através de uma personagem mimética. Mas será que fazendo isto o texto surtiria o mesmo efeito?
Geralmente considera-se plana a personagem que recebe do meio “sua linguagem, seus gestos, seu porte, seus hábitos e mesmo seus modos de pensar e sentir. Por isso, funciona como uma espécie de índice social.” 3. A personagem redonda, ao contrário, obedece aos seus próprios impulsos e apresenta modificações ao longo da narrativa.
Esta distinção, útil para classificar as personagens miméticas, é um tanto problemática quando tratamos de personagens fantásticas. É claro que as mesmas podem representar um padrão, mas apenas simbolicamente. Afinal, como desde logo representam uma quebra das expectativas, sempre deveriam ser consideradas redondas. Mesmo quando sua conduta permanece inalterada, a personagem fantástica está sujeita a transformações, como é o caso de Dona Rebeca em “A mulher azul” de Jorge Miguel Marinho. Neste conto a tensão não decorre das modificações da personagem, mas da forma como ela passa a ser vista pelos familiares à medida que muda de cor (envelhece). Às vezes, a conduta da personagem indica que ela é aparentemente redonda. Este é o caso, por exemplo, de Dora em “O complexo de Ephedron”, do mesmo autor. Porém, à medida que se transforma em homem, Dora se torna aquilo que sempre foi: uma pessoa desconhecida para o esposo. Como então qualificá-la, plana ou redonda?
Analisando o papel que cada ser fictício desempenha na narrativa, Propp concluiu que “a personagem nada mais é que um feixe de funções, constituído pelos predicados que designam suas ações ao longo da intriga.” 4. O conceito de Propp pode muito bem ser aplicado à personagem fantástica, por dois motivos. Primeiro, Propp não parte da noção aristotélica de mimesis. Todo e qualquer ser fictício, mesmo o não mimético como é o caso do ser fantástico, pode ser considerado um feixe de funções na narrativa. Segundo, este teórico não se preocupa em qualificar as ações das personagens para classificá-las, antes classifica-as apenas segundo as funções que desempenham no texto. Além destas duas grandes virtudes, a teoria de Propp abre caminho para um estudo mais profundo da personagem fantástica. Ele procurou identificar as funções das personagens no texto e é nele, na sua linguagem, que devemos buscar as raízes dos seres fictícios não miméticos segundo Umberto Eco.
Feito este pequeno esforço teórico, cremos ser possível esboçar uma definição provisória para a personagem fantástica. Fantástica é a personagem que rompe com o conceito aristotélico de mimesis, subvertendo as expectativas ideológicas para cumprir uma função ideológica, que é obrigar-nos a repensar o homem, o mundo e a linguagem. Por isso, este tipo de personagem não pode ser qualificada como plana ou redonda. Estes dois conceitos são inadequados para definir suas ações, porque, como vimos, a personagem fantástica pode ser redonda quando plana e plana quando redonda.
BIBLIOGRAFIA
SEGOLIN, Fernando Personagem e Anti Personagem, Cortez & Moraes
Ltda., São Paulo, 1978
MOISÉS, Massaud A criação literária, 3ª edição, Melhoramentos, São
Paulo, 1970
ECO, Umberto A estrutura ausente, Edusp, São Paulo, 1971.
|
Para criar um personagem consistente, procure responder às
questões abaixo...
1. O que quer o personagem (força direcional > vontade)?
2. Quão forte é a sua vontade de conseguir o que deseja?
3. Os desejos dos outros personagens entram em conflito com os dele?
4. Existe conflito no personagem entre vontade e contravontade? Os demais
personagens intensificam ou amenizam esse conflito? De que forma?
5. São os temores do personagem baseados em problemas reais ou apenas
imaginários? Ele tem visão clara de si mesmo e sua situação ou auto-avaliação
falha de alguma forma?
6. O personagem responde aos acontecimentos e aos outros personagens de maneira
apropriada ou excessiva?
7. O personagem representa de alguma forma os problemas universais da
humanidade através do que ele crê, do que faz, ou do que lhe acontece? Entre
tais temas estão, p. ex., morte, sucesso, justiça, fé, responsabilidade
pessoal, honra, beleza, ambição, orgulho, amor? O autor aborda de forma
satisfatória o tema?
8. Qual a expressão corporal do personagem que sugere o texto? Por exemplo, ele
espalha seu corpo para fora ou se encolhe para dentro de si mesmo? Sua face é
tensa, franzida para baixo ou relaxada para cima? Seus movimentos são livres e
fáceis ou são presos e restritos? Tem cacoetes ou uma área do corpo que revela
sua tensão?
9. O personagem age e se movimenta da mesma forma quando está sozinho e quando
acompanhado, ou existem mudanças ainda que sutis em seu comportamento? De que
forma você interpreta tais mudanças?
10. Você acredita no seu personagem?
Nenhum comentário:
Postar um comentário