quinta-feira, 19 de maio de 2016

AUGUSTO BOAL ESCREVEU: O PROJETO PROMETEU (segunda parte do ensaio "Estética do Teatro do Oprimido")


O PROJETO PROMETEU

SEGUNDA PARTE DO ENSAIO 
“ESTÉTICA DO TEATRO DO OPRIMIDO”






No início deste ensaio falamos em nomear  Conjuntos – nomeemos, pois, este conjunto estético: Projeto Prometeu, em homenagem ao Titã que ensinou os humanos a fazer o fogo, que ele havia roubado aos deuses que só o queriam para si mesmos.

O Projeto visa desenvolver, nos integrantes de grupos de oprimidos organizados com os quais trabalhamos, todas as formas estéticas de percepção da realidade. Nele, quatro são as vertentes principais:

A PALAVRA

Nosso objetivo não é o de transformar todo cidadão em escritor de best-sellers de aeroporto, mas sim de permitir que todos tenham domínio sobre a maior invenção humana: a palavra, a linguagem simbólica.

As palavras, por serem símbolos – uma coisa que está em lugar de outra - precisam ser preenchidas com as esperanças, desejos, necessidades, experiências de vida de cada cidadão. A palavra é uma coisa, e o sentido que lhe damos é outra, nem sempre coincidentes.

Sabemos que toda palavra vem carregada com os desejos do emissor. Sabemos, também, que cada receptor tem as suas próprias estruturas de recepção-tradução.

Quando uma empregada doméstica ouve a palavra Maria, essa palavra vem associada a uma ordem imperativa: Maria, faz o jantar; Maria, lava a roupa; Maria, varre a casa; Maria, faz isso, faz aquilo. Maria passa a ser o prenúncio de uma ordem.
Um bater de continência em posição de sentido!

Quando, porém, Maria escreve o seu próprio nome porque, sobre si mesma, muito tem a dizer, ela se re-descobre e pode associar seu nome, Maria, ao amor, ao prazer, à política. Assumir seu nome - e a ele dar seus próprios valores - é uma maneira de se assumir como sujeito. Escrever é uma maneira de dominar a palavra, ao invés de ser por ela dominado.

Neste Capítulo, são três as vertentes principais:

O QUE MAIS ME IMPRESSIONOU NOS ÚLTIMOS ANOS – os participantes são convidados a escrever uma curta narrativa sobre um fato pessoal, íntimo, ou, pelo contrário, de interesse nacional, impossível de esquecer. Ao contrário da Declaração de Identidade, voltada para o interior do sujeito, esta é uma oportunidade para se refletir sobre uma visão panorâmica que cada um tem do mundo em que vive. Não basta narrar o fato - deve-se revelar de que maneira única esse fato o impressionou. Algo pessoal. Se a primeira tentativa ficar na simples narração, deve-se insistir em que o participante vá fundo na sua memória e revele impressões mais subjetivas. No debate, sim, deve-se relacionar essas impressões pessoais ao significado social e político do evento.

Sugestão - Uma prática interessante consiste em colocar na parede, ou fazer circular entre os presentes, os textos escritos, sem que conste a autoria da cada um.

Pergunta-se depois qual foi o texto que mais impressionou cada participante e por que razão. Só então se perguntará quem escreveu cada texto e se pedirá que o autor comente os comentários feitos sobre sua escrita. Todos devem intervir narrando fatos da mesma natureza e tentando descobrir a conexão entre eles.

DECLARAÇÕES DE IDENTIDADE: cada participante deverá, três vezes, declarar em poucas linhas quem é, tendo, porém, destinatários diferentes: a pessoa amada, a vizinha, o chefe do qual depende o seu emprego ou função, o presidente do país ou outra autoridade, o povo em geral... Alguns preferem se declarar ao gato, ao cachorro, ao seu jardim, ou ao seu prato de comida: também serve.

A cada vez que declara ser quem é, como a nossa identidade também nos é dada pela relação com os outros – nenhum de nós está encerrado dentro de si mesmo – o escritor descobre identidades que existem, são suas, porém em desuso ou insuspeitadas. Descobre sua multiplicidade e riqueza.

A Declaração de Identidade significa um mergulho dentro de si.

- “É uma maneira de nos dar coragem para falarmos em voz alta o que escrevemos em silêncio” – disse um participante de um dos nossos grupos.

POESIA - Cada participante deverá escrever um poema, seguindo sua intuição. Como estímulo, não como regra, podemos propor etapas, o participante:

a. escolhe um tema que o emocione – emoção é necessária. Pode ser os olhos da pessoa amada ou um buraco no sapato; o sorriso do recém-nascido ou os preços do supermercado;

b. escreve uma página com tudo que lhe desperta emoções e reflexões; as frases devem ser menores do que a largura do papel;

c. elimina as palavras inúteis como artigos e advérbios terminados em “mente”, que tornam as frases pesadas; a arte de bem escrever é a arte de saber cortar;

d. organiza a frase de maneira a criar ritmo; deve ler o texto em voz alta, observando se a leitura é embalada por um ritmo interno;

e. o poeta deve substituir, quando necessário, a última palavra de cada verso criando uma rima, se for seu desejo, mesmo sabendo que rimas não são necessárias à poesia;

f. eis o poema.

Se este processo não der resultados, inventem outros. Em arte, regras são apenas sugestões e não leis imperativas.

A IMAGEM

Devemos desenvolver nossa capacidade de ver e não apenas olhar. A criação de imagens produzidas por nós e não apenas pela natureza nem pelas máquinas, serve para mostrar que o mundo pode ser re-criado.

O participante intervém para mudar a realidade, como quando os pintores rupestres pintavam bisontes, ursos e mamutes em suas cavernas com a intenção, não apenas de admirar sua obra pictórica, mas para melhor estudar esses animais ferozes.

Embora eu não seja testemunha ocular da História, juro que os demais cavernícolas se juntavam em torno do pintor para estudarem formas de atacar as feras: a pintura estimulava a mímica, o teatro, a dança...

A pintura e a escultura são formas de se re-estruturar o mundo, de re-inventá-lo – é natural que pintores e escultores sintam-se deificados pois refazem e corrigem o trabalho da divindade...

As atividades básicas de Imagem deverão ser:

ESCULTURA E PINTURA – Cada grupo deverá produzir uma criação coletiva sob o título de Ser Humano No Lixo, utilizando os elementos do lixo limpo de suas comunidades ou locais de trabalho. Cada escultura deverá mostrar uma ou mais figuras humanas no trabalho, no lazer, no amor, em diálogo ou na solidão, como queiram.

Além do lixo limpo, poderão usar cola, barbantes, arames, madeira, e outros elementos que sustentem a escultura. Deverão fazer também pinturas com o mesmo tema. Este é o ponto de partida: outros temas devem ser buscados no âmbito de interesses do grupo: o trabalho, a casa, a rua, o futuro.

FOTOGRAFIA – As mãos são, depois do cérebro, o que mais de humano existe em cada um de nós.

Cada participante deverá fazer, ou pedir que façam, três fotos das suas mãos ou das mãos de pessoas que trabalham na mesma profissão, ou vivem na mesma comunidade.

Que fazem as mãos? Trabalham com a enxada, com o volante de um carro, a vassoura ou um teclado de computador, ou com as teclas de um piano? Acaricia um rosto, um copo, um corpo? Lavam pratos, agridem, ou jogam cartas? Traduzem em gestos seus pensamentos? São expressivas ou mecanizadas?

O fotógrafo deve fazer o que o fotografado quer, e não o que gostaria de fazer. O fotógrafo traz o seu conhecimento técnico de usar a câmera para que a foto reproduza o desejo do participante.

Outros temas podem ser: opressão, a casa onde moro, família, o mundo, meu trabalho, meu lazer... O tema é importante; mais importante é o diálogo que se deve instaurar sobre as imagens produzidas, as formas de percepção de cada imagem, as ideias que cada imagem provoca, lembranças, desejos...

RE-FORMANDO A FORMA – Apresenta-se uma imagem bem conhecida, como a bandeira nacional, a silhueta de uma garrafa de refrigerante ou a de um acidente geográfico (Pão de Açúcar, Corcovado), o símbolo de um fast-food, a forma de um campo de futebol, o perfil de uma cidade, um item publicitário em que se associa um corpo de mulher a uma bebida alcoólica, etc. Os participantes deverão refazê-la ou transformá-la – colorindo, re-estruturando suas linhas, eliminando ou adicionando linhas e cores -, de maneira a dar uma opinião sobre a figura e seu significado.

O SOM

A Música é a forma pela qual o ser humano se relaciona com o Universo, seus ritmos e sons aleatórios. É uma forma pela qual se relaciona consigo mesmo, com os seus ritmos cardíacos, respiratórios, circadianos (o sono, a fome...), e com a melodia do seu sangue nas veias.

A Música é o contato do ser humano com o seu coração e com o Cosmos.

Justamente por isso, o poder econômico encarcera a música em seus festivais, empresas fonográficas, distribuidoras, etc., favorecendo sempre ritmos padronizados que podem ser dominados por esse poder. Oitenta por cento da música que se ouve pelas rádios tem a missão de entorpecer a mente dos seus ouvintes. Os ritmos alucinantes têm a missão de alucinar, que é uma das melhores formas de se esconder a realidade opressiva.

Na Estética do Oprimido o que se busca não é aprender os ritmos que andam por aí, à solta, mas sim redescobrir e conectar-se com os ritmos internos de cada um de nós, com os ritmos da natureza, do trabalho e da vida social.

A partir dos jogos A Imagem da Hora, Jogo das Profissões, Máscaras e Rituais, e outros, os participantes poderão escolher qualquer atividade repetitiva de suas vidas profissionais ou cotidianas, e transformá-las em dança:

a) os atores mostram os gestos mudos repetitivos, mecanizados – inconscientes, às vezes - do seu trabalho profissional ou de um segmento de suas vidas cotidianas; deve ser uma atividade que o seu corpo esteja habituado a executar de forma mecânica;

b) ampliam esses gestos, eliminando os detalhes não significativos, e magnificando os essenciais. Forma-se, assim, uma sequência de movimentos essenciais. Cada ator deve procurar ver aquilo que o movimento cotidiano esconde – ver como cada movimento atua sobre o seu corpo, como o excita, estimula ou faz sofrer. Penetrar do único e não apenas reproduzir o óbvio. Esse movimento deve ser a espinha dorsal da dança a ser construída. Todos os demais a ele se referem. O grupo pode escolher apenas um, dois ou mais desses ritmos internos – o importante é que os sintam.

c) lentamente, transformam o movimento em dança, introduzindo ritmo; o grupo deve inventar a música que combine com essa dança usando, sempre que possível, instrumentos inventados a partir de objetos em uso nos locais de trabalho ou na comunidade do grupo. Todos os instrumentos musicais que existem foram construídos, não se encontravam prontos na natureza: muitos outros podem ser inventados. Inventemos!

d) depois de já terem a sequência de gestos rítmicos, deve-se imaginar uma cena da vida desses personagens: um encontro amoroso, um pedido de aumento de salário, um casamento, uma greve, uma reunião familiar... Os atores deverão contar a história escolhida, utilizando os gestos e movimentos rítmicos de sua dança;

e) como forma de ensaio que ajude os atores a criar a dança, o diretor deve pedir que ora tornem bem lentos seus movimentos, câmara bem lenta, ora bem rápidos; quando existir som, que seja o mais baixo possível, apenas audível, e o mais alto que se possa ,– sempre fazendo com que a passagem de um extremo ao outro seja lenta e não aos saltos.

Os participantes deverão criar ritmos e melodias a partir do que percebe no seu corpo em repouso e nas diferentes atividades diárias, nas relações entre o seu corpo e o mundo. É importante evitar ritmos conhecidos.

SINESTESIA – É a percepção simultânea de sensações diferentes, ou a sua tradução de uma em outra. Exemplo: sentimos o gosto do chocolate mesmo quando o vemos à distância. Devemos pedir aos participantes que, ao verem um quadro ou uma foto, inspirando-se nela, escrevam um poema ou um texto. Ao ler um poema, pensem em uma música. Ao ouvirem uma música, pintem os sons que ouviram.

CULTURA E ERUDIÇÃO - Todas estas propostas visam a desenvolver a criatividade individual de cada participante e a sua capacidade de trabalhar em grupos. No entanto, não é nossa proposta fazer tábula rasa da cultura acumulada pela Humanidade, como se de nada valesse do que até agora foi feito. Seria tolice.

Por isso, devemos oferecer aos nossos grupos a possibilidade de conhecer as nossas fontes culturais, nacionais e regionais, bem como a de outros países e de outras épocas.

Na Palavra, temos, os nossos escritores posteriores às invasões portuguesas do século XV, pois muito pouco sobrou da literatura oral indígena anterior. Temos também uma vasta produção literária de cordel. E temos excelentes escritores modernos.

No Som, a música brasileira continua vigorosa, apesar do predomínio, nos meios de comunicação, de ritmos importados de fácil assimilação e baixo custo.

Cada uma das nossas principais regiões criou dezenas de ritmos e danças, algumas sob a influência dos europeus, outras autóctones.

Na Imagem, além dos extraordinários pintores modernos mais conhecidos, temos a arte dos escultores de barro - indígenas e gente pobre do Nordeste. Temos até, para espanto da maioria, uma bela arte rupestre na região do Piauí: há vinte mil anos já se pintava em nossa terra nas paredes de nossas cavernas.

Além da nossa Cultura, devemos expor nossos grupos à arte Erudita: aquela criada por outros povos em outras épocas, desde Beethoven e Bach, até à flauta mágica e a flauta andina. Esse Diálogo também será fértil.

A ÉTICA

O Teatro do Oprimido é um teatro ético e, nele, nada pode ser feito sem que se saiba por que, e para quê. Os participantes do Projeto Prometeu devem saber porque fazem o que fazem. O significado ético de cada ação é tão importante como a ação em si.

A TEORIA – Não se trata de dar aulas sobre Ética, mas de estudar momentos essenciais da Humanidade quando decisões históricas ou interpretações do Mundo, éticas ou antiéticas, foram tomadas. Palestras, testemunhos, teses, diálogos, etc. Por exemplo, a época dos filósofos pré-Socráticos que revelavam a inquietude dos seres humanos em relação ao sentido da vida, às relações humanas e à substância do Universo; as Invasões Ibéricas no século XVI na América Central e do Sul, que resultaram no genocídio de civilizações indígenas; o acordo de Bretton Woods, que instituiu o dólar como moeda universal; a guerra do Golfo e a do Iraque, o Vietnã.

A PRÁTICA; A SOLIDARIEDADE – A superioridade moral dos Bombeiros em relação aos PMs, no Brasil, deve-se a vários fatores, sendo um dos mais importantes o conteúdo dos ensinamentos que recebem os soldados. PMs aprendem a atirar, prender, bater, destruir; bombeiros, além de apagar o fogo, aprendem os primeiros socorros, aprendem a salvar vidas, a prestar serviços à comunidade. É no fazer que o ser humano se faz.

Esta parte da Ética será constituída por ensinamentos práticos de solidariedade – e deverá ser posta em prática e não apenas aprendida!!! Cada participante deverá colaborar concretamente para alguma obra ou ação coletiva de sua comunidade que esteja sendo feita.

Hoje, muitos grupos que praticam TO na Índia, os Jana Sanskriti, logo depois de cada espetáculo em uma comunidade, perguntam em que podem ajudar essa comunidade e o fazem: faz parte do seu fazer teatral.

A MULTIPLICAÇÃO SOLIDÁRIA – Cada grupo deverá organizar outros pequenos grupos ao quais possam transmitir o aprendido, dentro da ideia de que só aprende quem ensina, buscando o Efeito Multiplicador.

Isto é uma verdade científica, neurológica: ao aprender, o indivíduo mobiliza os neurônios necessários à percepção e à retenção do que lhe é ensinado; ao ensinar, mobiliza circuitos neurônicos de muitas outras áreas, expande e fixa o seu conhecimento, re-avalia o aprendido ao tentar explicá-lo.


Esta é uma proposta inicial. Para que seus resultados sejam avaliados deveremos, durante anos, realizar trabalhos e experiências nos mais diversos campos, cidades e países onde é usado o Teatro do Oprimido.

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