A
Estética do Oprimido
Ensaio
1. Conjuntos Analógicos, e Conjuntos
Complementares
A Natureza
jamais produz dois seres idênticos: nem dois grãos de areia, nem os fios da
minha barba ou gêmeos univitelinos, nem impressões digitais ou duas gotas de
chuva, nem as árvores da floresta, nem seus galhos e folhas, nem as estrias de
cada folha... nada é absolutamente idêntico a nada. Todas as coisas
Inanimadas e
todos os seres vivos são sempre únicos, irrepetíveis, mesmo se
clonados.
Para seres
semoventes, humanos ou animais, com um mínimo de vida psíquica, seria
impossível viver dentro dessa infinita diversidade se não pudessem organizar a
sua percepção do mundo e simplificá-la. Ficaríamos paralisados se tivéssemos
que ver e ter consciência de tudo que olhamos; escutar e ter consciência de
tudo que ouvimos; tocar e ter consciência de tudo que sentimos, cheiramos e
gustamos - tal o acúmulo catastrófico e torrencial das informações recebidas. A
Natureza é vertiginosa, mas nós não podemos viver essa vertigem.
Felizmente, a
Natureza permite a criação de aparências simples das realidades complexas,
através da construção de Conjuntos Analógicos e Conjuntos Complementares.
Embora simplificações excluam complexidades, outro jeito não há, e somos
forçados a realizar o processo psíquico da formação de Conjuntos para nos
podermos guiar e viver neste mundo.
Quando, pela
primeira vez, o bebê abre os olhos, olha tudo que os seus olhos alcançam e,
olhando tudo, nada vê: apenas a cor cinza. Aos poucos, na medida em que o seu
nervo ótico começa a ser estimulado pela luz e pela sombra, organiza sua
percepção visual distinguindo linhas retas e curvas, profundidades e cores.
Quando deixa
de olhar tudo ao mesmo tempo, é quando realmente começa a ver – e vê Conjuntos.
Nenhum peixe
é absolutamente igual a outro peixe, mas os peixes se assemelham: eis o
cardume. Nenhuma rosa é igual à outra rosa, mas todas se parecem, vermelhas,
brancas ou amarelas: eis o roseiral. Nenhuma cor é homogênea em toda a extensão
do objeto colorido, mas pode-se abstrair as diferenças que, ao microscópio,
existem, claras e profundas. 1
Um astronauta
disse que a Terra é azul; nós dizemos que a noite é negra, vermelho o sangue em
nossas veias e plúmbeo o céu de chuva.... Sabemos que não é assim: nenhum
milímetro é igual a outro.
Por analogia,
podemos perceber e formar Conjuntos Analógicos, homogêneos, que englobam seres
semelhantes, mas não iguais – isto é, Unicidades - em um todo maior, como o
coro de um balé, o coral de uma ópera, um batalhão de soldados ou a farinha de
um mesmo saco.
Podemos
perceber, também, Conjuntos heterogêneos, feitos de elementos Complementares.
Não existem dois rios iguais em seu percurso, mas em todos corre água: no
caudaloso Amazonas ou no riacho do Ipiranga. Suas margens são diferentes, mas
todas oprimem a água que neles corre. As pedras, no leito do rio, são desiguais
no peso e na forma, mas parecidas, mesmo quando feitas de matérias diferentes,
orgânicas ou minerais.
Margens,
águas, pedras, plantas, flores e peixes formam um aglomerado de coisas
inanimadas e de seres vivos, heterogêneos, mas que podem ser percebidos como
Conjuntos: podemos ver este rio sem nos determos em cada um dos elementos
únicos que o compõem. Podemos nomear como rio todos os Conjuntos que podem ser
percebidos como semelhantes a este. Todos os rios têm a identidade dos rios e
sabemos de qual acidente geográfico estamos falando quando falamos do Nilo
egípcio ou do Arroyo de la Sierra2 de José Marti.
Podemos
perceber a floresta como um Conjunto de árvores semelhantes, mesmo sabendo que
não são iguais; o rebanho, como Conjunto de animais da mesma espécie, mesmo tendo
cada um o seu feitio, seu focinho e sua fome; podemos ver a multidão como um
Conjunto de seres humanos - embora nenhum deles seja igual a nenhum de nós.
Até mesmo
cada indivíduo, ou cada coisa, é um Conjunto heterogêneo feito de elementos
Complementares: temos cabeça, tronco e membros, artérias e veias, pelo e pele;
uma pedra tem muitas cores, mesmo quando é cinza, e ricas variações formais em
sua superfície, mesmo quando roliças.
Assim,
simplificando a nossa percepção da Natureza, podemos viver sem sobressaltos:
Unicidades podem ser sistematizadas em Conjuntos Analógicos de seres e coisas
semelhantes, ou em Conjuntos Complementares de coisas e seres dessemelhantes.
Nessa simplificação, perde-se a riqueza das diferenças e das identidades únicas
que, por infinita, é inacessível.
Essa
simplificação, obra do nosso imaginário e não da multifária Natureza, funciona
como couraça que nos permite o acesso apenas às aparências do real3
e, sobre elas, podermos predicar.
Para que nos
possamos comunicar entre humanos, esses Conjuntos devem ser nomeados: nomeamos
montanha todas as protuberâncias da terra que beijam o céu, mesmo sabendo que
nenhuma montanha é igual à outra montanha, nenhuma nuvem igual à outra nuvem,
nenhum sonho igual ao meu. Nomeamos mar - mar de gente bêbeda no Réveillon, mar
de flores ao vento, mar de ondas raivosas - todas aglomerações onduladas de
água, girassóis ou gente.
Nomear
significa tentativa de imobilizar. O Nome é a fixação, no tempo e no espaço, do
que é fluido, do que não pode parar nem ser parado, nem no espaço, nem no
tempo.
Tudo é
trânsito, mesmo eu, quando me nomeiam Augusto Boal. Qual? Sou quem era antes de
escrever esta última linha ou aquele que ainda não escreveu a próxima? Sou um
rio de Crátilo4: em mim, correm águas que não corriam, e outras correram
e jamais voltarão rio acima: escondem-se no mar.
NOTAS:
1 A floresta não está contida em nenhuma das
árvores que a compõem, mas não existiria sem elas. A cidade não é nenhuma de
suas ruas e praças, mas, sem elas, não haveria cidades.
2 “El arroyo de la sierra me complace
más que el mar” - (“O riacho da montanha me agrada mais que o mar”) - versos de
Guantanamera, poema de José Marti, poeta e revolucionário cubano, herói da
guerra de libertação nacional contra os espanhóis
3 Os Conjuntos se referem apenas à percepção
sensorial do mundo e se organizam em Estruturas ficcionais, imaginárias, que se
constituem através da intervenção da palavra e dos símbolos – da palavra
gramatical, como Léxico e, sobretudo, como Sintaxe. Estruturas são Conjuntos de
Conjuntos inter-relacionados por analogia ou complementaridade: Estrutura Moral,
Política, Social, Familiar, Ritual, Comportamental, etc. As Estruturas se sustentam pelas relações de
Poder, que representam, no campo humano e animal, o mesmo papel das forças do
Universo (gravitacional, eletromagnética, e as chamadas interações forte e
fraca, que ocorrem nos núcleos atômicos.) Todas as relações humanas são estruturadas
pelas relações de Poder em suas variadas formas - políticas, sociais,
psicológicas, culturais, carismáticas, sexuais, etc. - que determinam valores.
Estes valores, que são abstrações, determinam comportamentos concretos.
4 Ninguém pode me ver duas vezes como
sou, em cada instante fugaz da minha vida, como fugazes são todos os
instantes... e a vida. Jamais serei o mesmo a cada segundo que me foge. Aqueles
que me veem agora, jamais serão iguais a si mesmos em dois segundos sucessivos
da trajetória dos seus caminhos. Não sou: estou sendo. Caminhante, sou devir.
Não estou: vim e vou. Hesito: para onde? Escolho meus caminhos, se puder; sigo
em frente, se obrigado!
2. Palavras São Meios de Transporte
Palavras designam
Conjuntos, mas ignoram Unicidades. Negros e brancos, homens e mulheres,
proletariado e campesinato... são Conjuntos imaginados, mas que não existem
como concreção. São, mas não existem. O que existe, corporeamente, é este negro
e aquela branca, esta mulher e aquele homem, esta camponesa e aquele operário
e, mesmo assim, em trânsito, em devir, em tornar-se, em vir a ser e em deixar
de ser. A cada instante, nenhum destes é o mesmo no seu permanente devir.
Os Conjuntos,
dada a força que os unifica, podem reagir como se unicidades fossem: um comando
militar ou um time de futebol, uma família unida ou um sindicato em greve. Um
Conjunto é sempre mais do que a soma de suas unidades – é sinergia.
As palavras -
os Nomes, sobretudo - são indispensáveis para que seja possível a troca, o
diálogo, porém são significantes polissêmicos que, ao serem percebidos pelo
receptor, perdem grande parte dos significados que motivaram o emissor.
Quando
pronunciadas pelo emissor, as palavras são significantes com significados ricos
das experiências desse emissor, das suas memórias, desejos e imaginações; no
trânsito, esses significantes mudam seus significados, como Crátilo: discípulo de Heráclito, filósofo
grego pré-socrático, século V-VI AC, que dizia que ninguém pode entrar no mesmo
rio duas vezes porque, na segunda, já serão outras águas que por ele estarão
passando, já não será o mesmo rio. Crátilo extremava Heráclito, dizendo que ninguém
pode atravessar o mesmo rio sequer uma única vez, pois que as águas estarão
sempre em movimento: em que água estará entrando?
Eu extremo
Crátilo: quem sou eu, aquele que atravessa?
Um caminhão
que, de uma cidade a outra, trocasse sua carga: ao chegar ao receptor, as
palavras estarão carregadas das experiências deste e não daquele5.
Mesmo que chegue ao seu destino a carga intocada, o receptor tem os seus
próprios aparelhos de recepção-tradução, que traduzem e traem a mensagem
recebida. Traduttore, tradittore – dizem os italianos: tradutor, traidor.
As palavras
são um meio de transporte, como ônibus e caminhões. Da mesma maneira como os
ônibus transportam pessoas e os caminhões carga, as palavras transportam nossas
ideias, desejos e emoções. Com a mesma palavra pode-se dizer – na frase
escrita, com a sintaxe e, na falada, com a linguagem da voz: timbre, tom,
volume, pausas, etc. – exatamente o contrário daquilo que afirma e jura o dicionário.6
A primeira
coisa que um meio de transporte transporta é a si mesmo: podemos apreciar a
beleza de um avião a jato, de um trem maria-fumaça, ou de uma palavra
inusitada: mas, para melhor compreende-los, é preciso examinar o que levam
dentro.
A palavra é
um todo que não é nada. É um traço que riscamos na areia; um som que, como
delirantes escultores, esculpimos no ar. Um traço que as ondas levam; um som
que se dissolve na brisa.
Areia, nós a
sentimos na mão; o vento, no nosso rosto. E as palavras... onde estão? Em nenhum
lugar, pois não existem: apenas são.
As palavras
não estão em nenhum lugar e estão em toda parte. Palavras são o vazio que
preenche o vazio que existe entre um ser humano e outro. Nós, rasgando a areia
ou cortando o ar, nesse vazio depositamos nossas vidas, desejos, medos e
coragem, sensações e emoções: eis a palavra.
Preenchemos o
nada com o tudo que somos: somos as palavras que dizemos, e as palavras somos
nós, transformados em sons e traços.
Para que as
palavras adquiram um sentido mais preciso e menos permissivo, é necessário
vesti-las: na tragédia grega, com máscara, coturno e manto; nos templos, com
sua liturgia; no exército, com hierárquica disciplina; no cinema, com
iluminação, ângulos e figurinos. Na vida cotidiana, com nossas roupas, gestos
culturais, timbres, ritmos da fala, fisionomias...
Para que
sejamos capazes de apreender o Uno e não apenas os Conjuntos aos quais
pertence, alguma outra mediação se torna necessária para evitarmos as imprecisões
de darmos o mesmo nome, boi, a cada membro da boiada, pois esse gado é feito de
unicidades bovinas irrepetíveis, não de massa açougueira. Cada boi tem a sua
personalidade própria: é Uno – Mimosa, Estrela... A boiada é uma sinergia.
Palavras são
obra e instrumento da razão: temos que transcendê-las e buscar formas de
comunicação que não sejam apenas racionais, mas também sensoriais -
comunicações estéticas. Atenção: esta transcendência estética da Razão é a
razão do teatro e de todas as artes.
Não podemos
divorciar razão e sentimento, ideia e forma. São sólidos casais, mesmo quando
às turras, bicadas e cabeçadas.7
NOTAS:
5 Os significados dos significantes
(que são as palavras), são diferentes do significado da palavra e do ato de
significar. Quando significo algo a alguém, além dos significantes (palavras)
que pronuncio, uso meu rosto, minha voz, meu olhar, meu corpo: este conjunto de
significantes integra o meu significar que não está presente em nenhum dos
elementos que o compõem – apenas no Conjunto de todos eles. Os Conjuntos
possuem qualidades de que suas partes carecem.
6 “Nunca eu tivera querido/ dizer
palavra tão louca. / Bateu-me o vento na boca / e depois no teu ouvido./ Levou
somente a palavra / deixou ficar o sentido. /O sentido está guardado/ no rosto
com que te miro, / neste perdido suspiro / que te segue alucinado, / no meu
sorriso suspenso, / como um beijo malogrado.” – Canção, Cecília Meireles
7 A polissemia da palavra permite que,
nestes tempos modernos, a palavra liberdade, por exemplo, seja usada para
designar qualquer restrição que se faça à existência dos outros. Liberalismo
significa ausência de quaisquer limites que restrinjam o poder econômico e
protejam os destituídos. Democracia significa que todos os candidatos a uma
eleição têm o mesmo direito de comprar tempo na TV e espaço nos jornais... se
tiverem dinheiro para tanto.
3. Os Malefícios da Palavra
As palavras
são tão poderosas que, quando as ouvimos ou pronunciamos, obliteramos nossos
sentidos através dos quais, sem elas, perceberíamos mais claramente os sinais
do mundo. Sua compreensão é lenta porque necessitam ser decodificadas, ao
contrário das sensações, que são de percepção imediata – eis a principal
diferença entre as linguagens simbólicas e sinaléticas, símbolos e sinais.
Se eu escuto
uma palavra, seja qual for, necessito de um certo tempo para compreender o seu
sentido e as intenções do meu interlocutor. Mas, se ponho o dedo em um fio
desencapado, o choque elétrico que recebo não precisa de nenhuma tradução
especial. Grito!
Os animais,
que não falam nem trocam ideias entre si, mesmo quando necessário – como as
vacas a caminho do matadouro, como dizia Bertolt Brecht -, dependem
exclusivamente dos seus sentidos para sua percepção do mundo.
Quando os
seres humanos, em épocas pré-históricas, começaram a balbuciar as primeiras
palavras da Proto-Proto-Língua universal, começou a lenta degradação dos seus
sentidos.
A suposta
existência dessa língua universal primitiva, já mencionada na Bíblia, foi cientificamente
defendida pelos linguistas norte-americanos Joseph Greenberg e Merritt Ruhlen,
a partir de 1980.
Para eles,
todas as línguas faladas no mundo, ontem e hoje, podem ser sistematizadas e
reunidas em diferentes famílias (como, por exemplo, a família que reúne as
línguas românicas, eslavas, germânicas...) Estas famílias são, hipoteticamente,
originárias de uma única Proto-Língua, no caso, a assim chamada Indo-Européia
que, talvez, tenha sido falada por uma população nômade a três ou seis mil anos
antes de nós. Juntando-se esta e outras Proto-Línguas, forma-se uma imensa
árvore genealógica com um tronco comum: a Proto-Proto-Língua, primeira língua
universal. Tem sua lógica, mesmo para quem não acredita em Adão e Eva.
Um trágico
exemplo dos humanos sentidos esmaecidos pelo surgimento da fala aconteceu no
dia 26 de dezembro de 2004, quando poderosos tsunamis devastaram várias cidades
da Ásia e da África, matando mais de trezentas mil pessoas. No entanto, no
Parque Nacional de Sri Lanka, povoado por animais silvestres, nenhum deles
morreu apesar da tremenda inundação provocada pelas poderosas ondas de doze
metros de altura. Salvaram-se elefantes e chacais, pássaros e roedores, e até
os desajeitados crocodilos conseguiram escapar. Todos fugiram a tempo para
regiões mais elevadas quando perceberam as primeiras vibrações sísmicas e os
primeiros longínquos ruídos do fundo do oceano que se abria. Só morreram os
animais domésticos... já contaminados pelas palavras que ouviam, mesmo sem
entendê-las.
Essa tragédia
não tira o valor supremo da Palavra como refinado meio de comunicação, mas
revela um deslocamento da fina percepção - dos sinais para os símbolos - que
traz consigo algumas tristes desvantagens.
Asiáticos e
africanos, enquanto subia o mar, esperavam por avisos simbólicos - palavras! -,
através de telefones e megafones, TVs, rádios ou telegramas, sem atentarem para
os sinais sísmicos que os seus corpos registravam, mas que não chegavam às suas
consciências – sensações que não se transformavam em mensagens.
4. Processo Estético e Produto
Artístico
O Artista é
aquele que, como qualquer de nós, é capaz de ver Conjuntos onde analogias ou
complementaridades unificam desiguais; por isso, pode viver em sociedade.
Porém, ao não se deter diante da visão conjuntiva que usamos para perceber a
realidade, através dos Conjuntos Analógicos ou Complementares, ou diante das
palavras que usamos para nos comunicar – pois que as palavras são símbolos que
designam Conjuntos -, o Artista avança, penetra no real e revela, em seu fazer
estético (a busca, o trabalho, a tentativa, o erro e o acerto) e no seu produto artístico (a obra de arte acabada),
percepções e aspectos únicos dessa realidade encouraçada, blindada: percebe e
revela unicidades escondidas pela simplificação da linguagem que as nomeia, e
pelos sentidos que as agrupam, sem percebê-las.
O Artista
penetra na unicidade do ser8, como se buscasse o seu complemento, ou
como se buscasse a si mesmo: sua Identidade na Alteridade. O Uno busca o Uno,
busca a si mesmo no Outro9.
Essa dinâmica
percepção nunca se imobiliza, mas se intensifica ou diminui de intensidade,
sempre fluida: tanto a percepção do artista ao perceber ou a fabricar a Coisa,
como a do espectador ao fruí-la, ou a do amante ao amar.
Amores se
conquistam e se perdem, ao sabor da vida... e do domínio que, sobre ela,
possamos alcançar. Como a Arte, que não é nunca a mesma.
Embora apenas
algumas pessoas sejam nomeadas com o adjetivo de Artistas, todo ser humano é,
substantivamente, artista. Todos possuímos, em maior ou menor grau, a
capacidade de penetrar em unicidades, fazendo arte ou amor. Somos capazes de
encontrar o Uno.
É importante
notar a distinção que aqui faço entre o fazer, isto é, o Processo
Estético, e o
já feito, ou seja, o Produto Artístico. Para que este exista, aquele é necessário;
mas não é necessário que o Processo Estético dê origem ao Produto
Artístico,
que pode ficar inconcluso.
Para a
Estética do Oprimido, mais importante é o Processo Estético que desenvolve as
percepções de quem o pratica, embora seja bem desejável que se chegue ao
Produto Artístico – a obra de arte acabada – pelo seu poder social, amplificador.
O desejo de chegar à obra de Arte é estimulante – funciona como a busca do
sonho, da utopia. Quando se chega a essa etapa, o seu autor recebe os benefícios
do reconhecimento dos outros, o que o leva a tentar mais vezes.
Algumas
formas dessas estruturas psicológicas genericamente chamadas de Loucura fazem quase
o mesmo: desintegram os Conjuntos e se perdem, desesperados, na percepção de
cada um dos seres e coisas que o compõem, sem que sejam capazes de formar novos
Conjuntos.
Doentes há
que veem os poros assustadores que nos tornam penetráveis, e são incapazes de
ver a pele que nos protege o corpo. Ou formam Conjuntos de autonomia própria,
que não são referenciáveis nem ao real, nem à nossa percepção coletiva.
O Processo
Estético permite que o sujeito se exerça em atividades que lhe são
habitualmente negadas, expandindo suas possibilidades expressivas e perceptivas.
Cada estímulo
cerebral em uma área de atividade humana estimula áreas adjacentes: o cérebro é
um ecossistema e não um disco duro de computador. É elástico e plástico. O
Processo Estético, por essa razão, é útil em si mesmo, e mais útil se torna
quando chega à produção de um Produto Artístico que possa ser compartido com
outros sujeitos, igualmente empenhados em seus próprios
Processos
Estéticos.
O Produto
Artístico - a obra de arte - deve ser capaz de despertar, mesmo naqueles que
não participaram do Processo Estético que lhe deu origem, as mesmas ideias,
emoções e pensamentos que levaram o artista à sua criação.
É preciso
deixar claro que o Processo Estético não é a Obra de Arte. Sua importância e
valor consistem em estimular e desenvolver as capacidades perceptivas e
criativas que estão atrofiadas no sujeito. Consiste em desenvolver a capacidade,
por menor que seja, que tem todo sujeito de metaforizar a realidade.
Todos somos
artistas, mas poucos exercemos nossas capacidades estéticas.
NOTAS
8 Ao encontrar o Ser em sua unicidade - o
artista, o espectador, ou o amante - defrontam-se com o Infinito. O objeto do
amor é sempre Uno, porém toda Unicidade é um Conjunto, como veremos mais
adiante: aí reside o Infinito, que é o encontro impossível em que cada
Unicidade é um novo Universo (Nota 9). O amante busca o Uno, exceção feita ao
patológico Don Juan que não ama ninguém: ama o amor, ama amar. Narciso, outro
caso clínico, ama a si mesmo.
9 Nessa busca, encontra o Uno ou a maneira Una
de criar novos Conjuntos que só o artista pôde perceber – à moda do louco - mas
que podemos todos, através da sua arte, fruir. E, nela nos encontramos a nós
mesmos, como Fernando Pessoa: “Ninguém a outro ama, se não que ama o que de si
há nele, ou é suposto! ”
5. O Amor e a Arte
Arte é amor.
A pessoa amada é o Ser Único, descoberto pelo amante e só por ele. Amando, nós
o vemos e sentimos como insubstituível, irreproduzível. Amando, nós penetramos
na unicidade do ser amado que, por sua vez, é um unouniverso complexo e em
movimento constante. Justamente porque é constante esse movimento, o amor não o
é. Por isso, Swan, o personagem de Proust, pode dizer, ao reencontrar seu
antigo amor, já esquecido: - “Ela nem sequer é o meu tipo...” Não é, agora,
mas, no tempo em que se perseguiram, e no percurso que percorreram juntos, foi!
O amor, que é
uma experiência estética, embora fundado na realidade, é obra do imaginário: ao
amar, amamos não apenas a pessoa que concretamente existe, mas as projeções que
sobre ela fazemos – projeções que são produto e parte de nós mesmos. Nosso
imaginário projeta, sobre a pessoa amada, vícios e virtudes que não lhe
pertencem, mas que existem no nosso desejo ou no nosso medo.
Amar é Arte,
e Arte é Amor. Estes dois processos – amar, e perceber esteticamente a
unicidade de outro Ser, vivo ou Coisa - são absolutamente idênticos. Mais
ainda: são a mesma coisa10.
Sendo
idênticos, no Amor como na Arte, a nossa percepção do Outro, ou da Coisa, não
se congela nem se imobiliza: o Amor é fluxo de corrente alternada - como pode
ser a eletricidade e são as marés, porém sem a garantia dos ritmos constantes
ou previsíveis - nunca igual a si mesmo, sempre ao sabor de constante variação.
É verdade que
existem amores eternos – especialmente os que bem cedo terminam em espantosas
tragédias sangrentas... - e obras de arte perenes, mas nem a pessoa amada, nem
a obra admirada, são admiradas e amadas com a mesma intensidade constante, nem
pelas mesmas razões a cada momento.
No amor e na
arte, a única constante é a inconstância.
Ao contrário
do que se diz, o Amor não é um encontro: é uma perseguição! Aquele ou aquela
que está sempre mudando persegue aquela ou aquele que nunca é igual a si mesmo.
O amor não
oferece nenhuma garantia de estabilidade, como sabemos e temos provado. Da
mesma forma que devemos cultivar a Arte com amor, o cultivo do Amor é uma arte.
NOTA
10 Da mesma forma que o amor não é
“...imortal, posto que é chama...” (Vinicius de Moraes) também a fruição da
obra de arte não é a mesma a cada vez que com ela nos encontramos. Podemos
descobri-la a cada vez ou, para sempre, perdê-la.
6. Arte e Conhecimento
Para
encontrar o acesso a essas realidades últimas e únicas, existem os artistas,
cujas atividades estéticas – isto é, sensoriais – surpreendem as unicidades e
permitem conhecer a verdadeira realidade, sempre única. Na Arte, como Processo
Estético, e na Obra de Arte, como coisa acabada, como Produto Artístico, o ser
humano entra em contato com o real - como no orgasmo apaixonado ou no delírio.
Neste
sentido, a Arte é uma forma especial de conhecimento, subjetiva, sensorial, não
científica. Não é melhor que outras, mas é única. O artista, no exercício da
sua Arte, viaja além das aparências do real e penetra nas unicidades escondidas
pelos Conjuntos11; na Obra de Arte, sintetiza sua viagem ao âmago do
real e cria um novo Conjunto - a Obra - que revela o Uno descoberto nesse mergulho;
este, por analogia, nos remete a nós mesmos.
Quando escuto
os primeiros severos acordes da Quinta Sinfonia de Beethoven, a trêmula ária
Voi que sapete, do Querubim morzateano, ou a triste Donna traviata verdiana, em
cada caso são acordes únicos que escuto, na anárquica infinitude dos sons e
ruídos que explodem à minha volta. Alguma coisa única, escondida em algum único
lugar de mim, desperta e vibra, e me faz vibrar, como um todo, como ser humano
– isto é a Arte.
Vibramos como
artistas ouvindo acordes únicos, estruturados de maneira única. Através desta
unicidade chega-se, por analogia, a um novo Conjunto imaginário, ao qual
chamamos plateia, formado por aquelas pessoas que alguma identidade - não
racional, mas racionalizável - sentem com tais acordes, com Hamlet e Rei Lear,
com o sorriso da Gioconda, os Santos do Aleijadinho ou com a Vênus de Milo que,
necessariamente, não pode ter os braços que já teve. Se os ainda tivesse, seria
outra – a ausência de braços revela a presença do tempo, que também fruímos.
O eu se
transforma em nós – extraordinário salto. Em nós e em cada eu, descobrimos a
descoberta que fez o artista. Quando somos capazes de dizer Nós, descobrimos o
nosso mais abrangente Eu. Torno-me soma de todas as minhas relações e algo
mais, como em qualquer sinergia.
Metaforicamente,
sou sons e formas, sons e cores, sou Wagner e Velásquez.... Mesmo se jamais
cantei como Valquíria e jamais pintei bêbedos ou meninas. A Arte redescobre e
re-inventa a realidade a partir de uma perspectiva singular: a do artista, que
é único, como é única a sua relação com o real, e o seu caminho de ver e
sentir, do qual nasce a Obra de Arte, capaz de recriar, em cada um de nós, o mesmo
caminho do artista. A realidade, tal como é vista pelo artista, só pode ser
observada a partir da sua Obra, também única. 12
O cientista
faz o mesmo, porém de uma perspectiva anônima que pertence a todos, e não
depende da individualidade do solitário cientista. O Teorema de Pitágoras
revela que, em um triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa é sempre igual
à soma dos quadrados dos catetos, e isso acontece em qualquer país, a qualquer
hora do dia ou da noite, no verão como no inverno, seja lá quem for o
desenhista do triângulo ou a cor dos seus cabelos. Newton jurou que a matéria
atrai a matéria na razão direta das massas e inversa do quadrado das distâncias,
e isso é verdade, assim na terra como no céu, chova ou faça sol. Não importa
que, mais tarde, Einstein tenha introduzido a ideia de que o espaço se curva
quando próximo da massa de qualquer matéria – para nós, que vivemos com os pés
na Terra, o melhor é nos afastarmos das macieiras...
A Ciência é
uma Arte, mas Arte não é Ciência. A Arte não dá conta de toda a realidade
verdadeira, mas é uma verdadeira realidade.
NOTAS
11 A árvore não deve esconder a
floresta, como disse o poeta, mas a floresta também não tem o direito de
esconder cada árvore que nela se perde; nem cada arbusto, nem cada ramo de
flores, nem cada pétala de cada flor.
12 Quando, através do Amor ou da Arte,
penetramos na unicidade de um Ser, penetramos no Infinito. Seria tolo imaginar
que o Infinito seria apenas infinito para fora e para longe... Se é verdade que
o Infinito é, ou existe, não pode tampouco ter limites para dentro: o Infinito
não é apenas Infinito para além das estrelas e das Galáxias, mas também para
dentro de cada átomo do nosso corpo. O infinitamente grande é exatamente igual
ao infinitamente pequeno. O Infinito destrói os conceitos de grande e pequeno,
longe e perto. Tudo está muito perto porque tudo é muito longe, e é pequeno por
ser tão grande. Em cada fio dos meus cabelos existem trilhões de Vias Lácteas e
de Sistemas Planetários, objetos siderais atraídos por vorazes buracos negros.
Não podemos cair no mesmo erro que Parmênides (515 A.C. - ?), o filósofo grego
que afirmava que o Universo era infinito em todas as direções e, portanto,
teria um ponto de partida, e seria esférico... Ora, se começava
em um ponto determinado e tinha uma
forma precisa - a esfera - seria finito, pois a forma é o limite do Ser com o
Não-Ser e, como sabemos, o Não-Ser não é... Não é mesmo? Toda unidade é
múltipla, em todos os sentidos e em todas as direções – isso é o Infinito. Os
Conjuntos conjugam Unicidades mas cada Unicidade é um Conjunto: cada á-tomo (o
indivisível) divide-se em prótons, nêutrons, elétrons, etc. Cada próton... cada
quark... cada antiquark... cada penta-quark... O Infinito é a vertigem do
pensamento!
7. Estética e Neurônios
A Estética do
Oprimido se baseia no fato científico de que quando, em cada indivíduo, são
ativados os neurônios da percepção sensorial - células do sistema nervoso –,
esses neurônios não ficam lotados de barriga cheia, como bytes de um
computador, armazenando informações estáticas. Eles não se esgotam nem se
repletam - o saber não ocupa espaço, diz a sabedoria popular!
Ao contrário
dos bytes solitários, os neurônios estimulados formam circuitos que se tornam
cada vez mais capazes de receber e transmitir mais mensagens simultâneas -
sensoriais ou motoras, abstratas ou emocionais - enriquecendo suas funções e
ativando neurônios vizinhos para que entrem em ação, criando redes cada vez
maiores de circuitos conjugados que nos fazem lembrar outros circuitos,
estabelecendo relações entre circuitos que, entre si, mantenham alguma
semelhança ou afinidade, o que nos permite criar, inventar, imaginar.
A imaginação
é a memória transformada pelo desejo.
Os neurônios
começam a ser produzidos no feto, de forma acelerada, já na terceira semana de
sua vida uterina São todos iguais, sem nenhuma especialização. Dependendo do
lugar onde se vão instalar, eles se especializam na função que devem ter onde
se instalam: são plásticos. Se vão para o nervo auditivo, especializam-se em
transmitir sons para o córtex cerebral; se no ótico, imagens; e assim por
diante.
As mensagens
recebidas pelo Córtex – sons, imagens, cheiros, gostos, sensações cutâneas, ideias,
fisionomias... - transformadas em circuitos neurônicos, relacionam-se com
outros circuitos já existentes em camadas mais profundas e estáveis do cérebro,
e que são trazidos de volta ao Córtex, onde vão dialogar com as novas
mensagens, diálogo do qual nascerão as decisões do sujeito.
Todos esses
circuitos modificados retornarão às camadas sub-corticais onde irão influenciar
a recepção de novas mensagens com as quais guardem alguma relação. Os primeiros
sons influenciarão a recepção dos novos sons; as primeiras imagens, novas
imagens; as velhas palavras serão confrontadas com novas palavras; velhos
conceitos, com novos conceitos; primeiros valores, com valores novos.
Todos esses
primeiros, arcaicos, não são imutáveis, e podem ser modificados, substituídos
ou erradicados porque não são definitivos – nada no ser humano é definitivo!
Mas influenciam.
8. A Invasão dos Cérebros
Se o cérebro
de um telespectador se enche de filmes de inspiração holiudiana, vazios de ideias
e repletos de força bruta, sua única forma de diálogo, é claro que esses tiros,
bombas, explosões, socos e rajadas de metralhadora vão influenciar a posterior
percepção do mundo desse infeliz espectador. Vão influenciar suas decisões.
Não é a
violência em si mesma que causa danos aos espectadores, mas sim a carência de
razões, de motivações para essa atividade física. No caso de Rambos e outros infra
heróis dessa subespécie, a Empatia13 torna-se uma relação de pura animalidade
irracional. O convívio com a brutalidade tende a formar brutamontes.
Uma pessoa
que vivesse na selva em companhia de feras predadoras, sem a presença humana,
como se humanizaria?
A violência,
em si mesma, não é boa nem má. Será má quando desacompanhada de razões, quando
reduzida a socos e pontapés sem subjetividades. Mas poderá ser didática quando
racionalizada e reveladas suas causas e sua Ética.
A
mediocridade desse tipo de cinematografia não se deve à falta de criatividade
dos seus autores, mas sim à deliberada intenção de, pela mecânica repetição,
bloquear o desenvolvimento intelectual metafórico das passivas plateias.
O maravilhoso
filme de Stanley Kubrik, Full Metal Jacket, mostra com perfeição estética o
processo ultra militar de socavar, no cérebro dos recrutas, peremptórias ordens
de obedecer e matar. O que o genial diretor demonstra, em um exemplo militar, é
o mesmo processo que acontece na TV civil, que não é civilizada.
Tememos a
invasão da floresta amazônica por cobiçosas potências estrangeiras e por
latifundiários autóctones que promovem queimadas e destruição. É certo: devemos
temê-la! Muito mais perigosa, porém, é a invasão da comercial cinematografia
holiudense que já domina e dirige a maior parte dos nossos sonambúlicos
espectadores.
Não estamos
falando apenas da TV, histérica, mas também da música: mesmo os países como o
Brasil, em que cada região cria dezenas de fascinantes ritmos, são invadidos
pela música massificada inventada ou distribuída pelas companhias
transnacionais.
13 Lembro que a Empatia em Aristóteles
estava intimamente ligada à Anagnorisis, quando o Protagonista explicava as
razões dos seus atos e admitia seus erros – a emoção estava sempre vinculada à
razão.
Da mesma
forma que um sociólogo estadunidense quis decretar o fim da História, a indústria
fonográfica quer agora decretar o fim da Música – esse fim trágico já foi
inventado dez anos atrás, em Berlim: o techno, ritmo semelhante ao de uma
desajeitada versão dos bate-estacas ou britadeiras de pedra, sendo que estas
duas máquinas da construção civil são mais musicais, delicadas e sensíveis do
que o monótono techno que, entre outros malefícios sanitários, descompassa marca-passos
usados por doentes do coração, já tendo causado várias mortes em shows musicais
ambulantes pelas ruas berlinenses.
Além dos
filmes e da música, o restante da mídia escamoteia fatos políticos e econômicos
de importância, dedicando-se ao supérfluo e ao insignificante. Além do fim da
História, do fim da Música, do fim das Artes Plásticas, do teatro, do cinema e
o fim dos movimentos sociais, os meios de comunicação querem decretar o fim do
Pensamento.
Para que este
desígnio se cumpra é necessário esvaziar as palavras, torná-las inócuas e, para
isso, o primeiro passo consiste em surrupiar palavras como Liberdade e
Democracia, dando-lhes um sentido exatamente oposto ao que conhecemos.
Invocando a Liberdade e a Democracia, um país invade outros países, tortura e
mata seus cidadãos, chama os resistentes de insurgentes, afirmando que assim o
faz para restabelecer a ordem. Qual? Aquela pela força imposta.
Essa
apropriação indébita de significados e significantes, esse proposital esvaziamento
de todos os conteúdos da Palavra - que, podendo significar qualquer coisa acaba
não significando nada! – tem por objetivo destruir a capacidade metaforizante
dos cidadãos, sua capacidade de raciocínio imagético.
O
envenenamento das palavras busca desorganizar a linguagem e impedir a formulação
de pensamentos coerentes. Já não se sabe o que se diz quando se fala! Já não se
sabe o que se escuta quando se ouve. A Língua, falada e escrita, torna-se
misteriosa e inacessível – torna-se obstáculo à comunicação, exatamente o
oposto daquilo para o qual foi criada.
Sem exageros
catastrofistas, estamos mergulhados na Grande Guerra Mundial da
Des-comunicação, insidiosa e sub-reptícia, quinta-coluna onipotente e
onisciente. O objetivo claro dessa nova modalidade de guerra é o domínio, não de
territórios geográficos, mas de cérebros.
É neste campo
de batalha que se deve situar a Arte Popular. Todas as Artes. Temos que ser
Aliados nesta guerra contra o fascismo do discurso unívoco.
Os adeptos da
globalização econômica desejam o monopólio cinematográfico, fonográfico e de
todos os meios de comunicação para que nos possam impor suas ideias e desejos,
fazendo-nos crer que são nossos desejos e ideias. Temos que lhes impor uma
outra Globalização: somos Sujeitos!
O teatro é
também um meio de comunicação, embora mais complexo do que o simples noticiário
radiofônico. Cada forma de comunicar possui seus próprios meios – alguns
esclarecem os interlocutores e os ajudam a desenvolver suas percepções do
mundo; outros, criam o medo.
O medo é uma
potente arma que torna vulneráveis os espectadores: diante das telas, são
incapazes de penetrá-la, agir, contra-atacar, defender-se. São imobilizados
como cangurus olhando um foco de luz.
A violência
nas telas não tem nada a ver com arte, e tem tudo a ver com terrorismo, cujo
objetivo principal é criar a insegurança generalizada, criando imaginários ou
verdadeiros focos de perigo, e escondendo sua origem: de onde virá o golpe
mortal? De que trevas, de que esquina mal iluminada? Onde se esconde o algoz?
Quem será a próxima vítima? Por que?
No sistema
trágico, a Empatia se dava através do binômio Medo e Piedade. Medo, porque a
catástrofe poderia acontecer a qualquer um de nós – éramos semelhantes ao
herói, cujo infortúnio compreendíamos e sabíamos previsível e inelutável; Piedade, porque admirávamos suas virtudes. Na
filmografia holiudense, de natureza terrorista, a Empatia se dá pelo Medo e
pelo Espanto: o inesperado, a surpresa, quando tudo é possível mesmo o
impossível, mesmo sem causa. Através do Medo e do Espanto, as piores ideias
maléficas podem ser inoculadas na plateia inerte.
A Empatia
falsificada transforma-se em dócil Mimetismo.
Na Tragédia,
a violência física se realizava fora de cena: Édipo arrancava seus olhos, fora
de cena; Medeia jamais mataria seus filhos diante do aplauso frenético dos
espectadores boquiabertos, comendo pipocas. Suas razões, essas sim, bailavam
diante das plateias gregas que eram respeitadas como pessoas inteligentes e não
como fanáticos espectadores de uma sangrenta luta de boxe tailandês.
Mesmo sendo
um sistema coercitivo, a tragédia grega respeitava a inteligência, estimulava o
pensamento e podia, como em Eurípides, provocar o debate e o questionamento da
sociedade e seus valores. A tragédia grega era o balé das ideias, não o das
balas perdidas!
É verdade
que, em Shakespeare, a violência física chega, em cena, aos braços cortados e
aos olhos furados, mas nunca desacompanhada de razões.
Os filmes
holiudenses têm uma só temática: o direito pertence aos mais fortes que estão
sempre com a razão, que são o Bem em sua cruzada contra o Mal – que são aqueles
que pensam diferentemente.
Com este lixo
ético despejado nos seus inocentes neurônios, os vulneráveis espectadores vão,
mais tarde, receber as novas informações. Não nos podemos espantar diante de
crimes do tipo Columbine14, que foram prenunciados e promovidos por
esse tipo de cinema, nem podemos esquecer que as Torres Gêmeas de Nova York
foram destruídas em um filme de ficção, antes de serem filmadas em chamas, na
tragédia verdadeira15.
Mesmo que os
filmes não mostrem brutalidade explícita - no caso das comedias ligeiras com
final feliz - introduzem em nossas cabeças hábitos, costumes e até a maneira de
falar dos cidadãos dos seus países: o vestir, o trabalho e o lazer, as relações
amorosas e o uso do dinheiro, as opções morais e a razão de viver.
Na
Organização Mundial do Comércio, alguns países defendem a chamada exceção
cultural, não porque defendam a Cultura, mas porque, através dela – cinema,
música, vídeos, CDs, DVDs e outras indústrias - o comércio impõe seus produtos
através da imagem.
Não falo
contra aquele sadio comércio que satisfaz necessidades do comprador – como as
gostosas feiras livres, das quais sou adepto incondicional! – mas sim do
comércio malsão que cria necessidades desnecessárias, invadindo nossas casas na
tela, no rádio, nos jornais e na internet - criando adição.
Nunca o
comércio foi tão invasivo e tonitruante, deixando longe o tempo em que me
alegrava ouvindo a voz do peixeiro com cestas na cabeça, cantando as vantagens
do camarão fresco e louvações à pescadinha...
A necessidade
de uma Estética do Oprimido faz parte de nossa luta contra essa invasão
cotidiana.
NOTAS
14 Famoso massacre em uma escola dos
Estados Unidos onde um estudante, menor de idade, matou dezenas de colegas e professores.
15 Em novembro 2004, noticiou-se que
nos Estados Unidos havia sido lançado um novo videogame no qual o usuário se
coloca na posição onde estaria Lee Oswald e atira no carro em movimento de John
Kennedy: quando acerta o alvo, o sangue se esparrama pelo asfalto virtual...
Kennedy já foi assassinado, mas quem treina quer jogar... Outros políticos
andam por aí em carro aberto...
9. A Metáfora Como Translação
A Metáfora,
no seu sentido mais amplo de translação, inclui todas as linguagens simbólicas,
entre as quais a Palavra, a Parábola e a Alegoria. Inclui todas as Artes que
representam - não reproduzem – realidades. As Artes Plásticas usam o traço, o
volume e a cor; a música, os sons e os silêncios; a dança, o corpo musical em
movimento.
Ativando-se
com novos estímulos os neurônios estéticos – aqueles que processam,
conjuntamente, ideias e emoções, memórias e imaginações, sentidos e abstrações
- ativa-se a criação de Metáforas, todas as Metáforas. Translações: criações de
novas realidades.
O ser humano
é o único animal capaz de criar Metáforas. Quanto mais metaforiza, mais humano
se torna. Todas as artes são Metáforas e só os humanos são artistas.
Sem uma
atividade metafórica autônoma – que é o que busca desenvolver a Estética do
Oprimido – a inteligência se paralisa e o indivíduo se aproxima outra vez da
condição de hominídeo, aquela com a qual começou a sua evolução! Faz tempo...16
Quero
insistir em que os animais e os hominídeos não são capazes de atividades
metaforizantes; não são capazes de transcreverem a realidade que os cerca e na
qual se inserem, em outras formas. Os meios de comunicação, imperativos,
promovem esse retrocesso17.
NOTAS
16 A evolução dos hominídeos que se
transformaram no atual Ser Humano não foi retilínea e contínua. Na Ilha das
Flores, Indonésia, (Nature, Setembro, 2004) foi descoberto o esqueleto de um
hominídeo que data da mesma época em que os homens e as mulheres de Neandertal
desapareceram misteriosamente, vinte ou trinta mil anos atrás, quando
coincidiam na Terra com os Cro-Magnon e talvez com outras espécies ainda não
descobertas. O Ser Humano pode ser o resultado de cruzamentos entre
Neandertais, Cro-Magnons, Homo Floresiensis, e outros mais, ainda enterrados.
17 Metáforas existem, pelo menos,
segundo três formas gramaticais: a Metáfora Adjetiva: “O Capitalismo é um tigre
de papel”; a Metáfora Adverbial: “O carro voava na pista” (onde se usa
adverbialmente o verbo voar, como um modo de correr, e onde o verbo correr, que
é modificado, está eclipsado); e as Metáforas Substantivas que são todas as
obras de arte que transubstanciam a realidade.
10. Coroas de Circuitos Neurônicos, Refratárias
e Agressivas, mas não Indestrutíveis.
As Coroas que
aqui apresentamos são uma hipo-tese, isto é, menos que uma tese. Não posso apresentar
provas cabais da sua existência, mas nenhum neurocientista pode apresentar
provas da sua inexistência.
Si non é
vero, é bene trovato!
Nomeio Coroa
a este sistema, inspirado nas Coroas Reais que, na Idade Média, unificavam
feudos, estruturando Estados. O Rei submetia barões, príncipes, condes, e
outros nobres ao seu domino, dentro de uma estrutura maior que os condados,
principados e baronatos: o Reino.
A penetração
de novas informações sensoriais no Córtex, através do Tálamo, e a circulação
cerebral de mensagens abstratas e emoções concretas, pode-se dar de forma
fluida e harmoniosa, integrativa, permitindo-se que novos circuitos se formem,
que se entrelacem, criando redes, ricas e complexas, contendo mais circuitos
neurônicos.
Pode
acontecer que, dada à natureza das informações impositivas e dogmáticas, e dos
circuitos onde se movem, essas redes se cristalizem tornando-se opacas e
compactas, estruturas coerentes que se recusam ao diálogo com novos circuitos
exteriores a essas estruturas, impedindo a chegada de novas informações conflitantes
com as já existentes no seu próprio sistema.
Exemplos
dessas Coroas são encontrados em todas as formas de extremismo religioso,
fundadas da existência de um sistema coerente de Revelações e Dogmas que, mesmo
absurdos e inverossímeis, jamais são questionados. Elas se tornam agressivas e
destruidoras em relação a outras Coroas – outros extremismos e Fundamentalismos!
- ou a quaisquer novas informações que com elas discrepem. Elas impedem o livre
fluir da Razão. São imperativas e recusam subjuntividades.
O fanatismo
esportivo, a adoração idolátrica de uma pessoa ou instituição, o sectarismo
político, as gangs do narcotráfico e os clãs como Montequios e Capuletos, -
mesmo quando existam outras razões sociais e econômicas para isso - são
exemplos concretos dessas Coroas formadas pela repetição constante das mesmas
informações com o mesmo conteúdo, e pela aceitação dos mesmos valores jamais
questionados.
Se as orações
de uma religião extremista - ou dos extremistas de uma religião - fossem feitas
apenas uma vez cada três ou quatro meses, essas Coroas não se formariam. Sendo
realizadas várias vezes ao dia, sim. Se as partidas de uma equipe de futebol
fossem travadas uma vez a cada meio ano, não existiriam hooligans – como se
realizam duas vezes por semana, não deixam tempo ao sujeito de pensar outros
pensamentos. Se um enfrentamento entre gangues fosse acidental e esporádico,
fortuito encontro de rua, o diálogo seria possível.
As repetições
constantes produzem as refratárias e agressivas Coroas. Essa não é uma condição
bastante, mas é necessária!
As Coroas
integram várias regiões do cérebro. Na teoria de Hughlings-Jackson (1835-1911)
algumas atividades cerebrais são bastante simples, como as do nervo ótico,
enquanto que outras, como o pensamento, estruturam uma imensa quantidade de
elementos simples.
Não
esqueçamos que o cérebro é um sistema ecológico onde tudo está interligado, e
não um disco duro de computador.
11.Neurônios Estéticos
Quando, sobre
determinado assunto, a Ciência não tem uma resposta precisa ou um saber
inquestionável, abre-se o caminho para interpretações poéticas.
Além dos
neurônios especializados em apenas uma atividade, existem também os que, dentro
dos circuitos que integram, acumulam diversas funções e são capazes de receber
e transmitir sensações físicas e emoções profundas, ideias complexas, palavras
e símbolos. Estes neurônios e estes circuitos se encontram principalmente no
córtex e no tálamo, que são as partes mais humanas do cérebro humano.
Pedindo
antecipadas desculpas aos neurocientistas, quero batizá-los de Neurônios
Estéticos porque é essa a função da Estética: através de estímulos sensoriais, revelar
razões e produzir emoções. Estes circuitos neurais são capazes de perceber o
mundo na relação entre o Uno e o Conjunto, relativizá-lo e descobrir sua
lógica.
Dostoievski
escreveu que “Só a Beleza salvará o mundo”, frase que nós podemos traduzir por:
“Só a Estética permite a mais verdadeira e profunda compreensão do mundo e da
sociedade”.
As sinapses
são os pontos de encontro entre neurônios, através dos neuritos – Axônios, que
transmitem, e Dentritos, que recebem: braços suaves que se abraçam, superfícies
por onde circula a informação – a imagem, o som, a palavra, o prazer e a dor, a
lembrança, os diálogos... - através de processos químicos e estímulos
elétricos.
As sinapses
se multiplicam e se diversificam, na medida em que são estimuladas18.
Quanto mais conhecemos, mais cresce nossa capacidade de conhecer. Quanto mais
me ponho a pintar, mais invento como usar pincéis, como se fosse pintor. Quanto
mais me ponho a cantar, mais conheço a extensão da minha voz, como se fosse
cantor. Quanto mais fizer dançar minhas palavras, mais aprendo a amá-las, como
se fosse poeta. Fazendo, serei pintor, poeta e cantor. Sou.
O saber, o
conhecer e o experimentar, expandem a minha capacidade de conhecer, saber e
aprender. Expandem além da minha busca e me fazem encontrar o que nem sequer
procuro. – “Não busco: encontro!" – disse Picasso. Nós faremos o mesmo se,
para isso, nos dedicarmos a ver o que olhamos, ouvir o que escutamos, sentir o
que tocamos, escrever o que pensamos. Somos todos Picassos, cada um na sua
medida... e ao seu jeito.
NOTA
18 A extrema delicadeza e a
complexidade das células chamadas neurônios obrigou a Natureza a fazer uma
exceção curiosa: todos os demais ossos do nosso corpo estão dentro do próprio
corpo e lhe dão sustento; na cabeça, porém, a ossatura envolve o cérebro e lhe
dá proteção. Alguma coisa de muito importante deve haver lá dentro.
12.Volume, Território, e as Insígnias
do Poder
A pedra,
inanimada, ocupa no mundo um espaço idêntico ao seu volume compacto. As plantas
– seres vivos - crescem e necessitam de maior território do que apenas o seu
volume: mesmo imóveis, nutrindo-se de terra e chuva, as árvores espalham
sombras no chão onde não mais floresce a grama – chão que se torna parte do
território da árvore, maior que o volume do seu corpo. Em suas copas frondosas,
seus galhos e folhas aprisionam o espaço; as raízes invadem maiores superfícies
de terra do que seus volumes somados.
Os animais –
seres vivos que se movem - lutam por espaço ainda maior. Alguns marcam seus
territórios pelo cheiro, como cães e lobos que urinam para que se saiba a quem
pertence aquele espaço – poderiam urinar a bexiga inteira em um só poste, um só
tronco de árvores, mas preferem usar vários para demarcarem seu espaço. Outros,
pelo ouvido: leões urram, pois não ficaria bem um leão urinando em postes, com
a perna levantada; tigres bramam, gatos bufam, o galo clarina o seu galicanto,
o falcão crocita, a onça esturra, geme a juriti enquanto ri a hiena, silva a
serpente e suspira a ema.
Os animais
privatizam o espaço que pertence a todos, e o espaço privatizado é excludente:
esta é a minha casa, meu quintal, meu latifúndio; não é a tua casa, o teu
quintal, a nossa terra. Inicia-se a luta, feroz ou ardilosa, pelo espaço que se
tornou propriedade, extensões do corpo do dono, seja ele leão ou latifundiário.
O que acontece nas florestas e savanas com animais selvagens, acontece nos
campos com grileiros, e na Bolsa de Valores com a especulação financeira:
dinheiro é poder, e o poder tudo compra, a começar pelo espaço.
O ser humano
também usa seus sentidos para estender os limites do seu território. Dos três
de longo alcance, mais do que o ouvido e o nariz, o ser humano usa os olhos: a
Imagem. Todas as sociedades humanas são espetáculos visuais, secundados pelos
demais sentidos19. O que varia, com o avanço da História, não é o
seu caráter espetacular: são os meios de produzir o espetáculo.
Nossas
sociedades tecnológicas sofisticadas - que usam a luz elétrica, rádio, cinema,
TV e computação - dão a impressão de que só elas são espetáculo, ou que o
espetáculo com elas nasceu. Na verdade, para realizarem o seu espetáculo, cada sociedade
usa os meios de que dispõe, como o cão a sua urina.
As sociedades
são espetaculares no sentido estético da palavra, porque se baseiam em relações
de poder, e o poder exige insígnias e rituais. Como é abstrato antes de ser
exercido, pura potência antes do ato, exige concreções para ser reconhecido à
primeira vista e ao primeiro som, para ser temido e respeitado.
19 Uma quermesse na igreja, por
exemplo, estimula, além da visão, a audição (música ambiental), o paladar e o
nariz, com suas guloseimas, e o tato com suas danças.
Necessita
Insígnias evidentes - fabricadas com sinais, signos e símbolos20 –
rituais bem estruturados, conscientes ou não.
O Rei Louis
XIV acordava todas as manhãs diante de espectadores escolhidos entre os seus
favoritos da Corte, que esperavam ansiosos para aplaudirem o seu primeiro
bocejo matinal, ao som de suave alaúde e cravo, em belas composições de Lully. Esses
nobres disputavam a preferência do monarca, vestindo-se de forma adequada para
tal cerimônia, e aplaudindo com suaves palmas bem medidas. O espetáculo mostra
não apenas o seu titular principal, o protagonista, mas toda uma hierarquia do
poder, estruturada nos seus rituais específicos, desde o mais poderoso até o
coadjuvante menos importante. Todos devem desempenhar seus papéis. Mesmo nu, o
Rei está sempre pomposamente vestido de seda e ouropéis imaginários.
A carruagem
foi inventada como meio de transporte, mas a carruagem que transporta reis e
rainhas – se fosse só essa a sua utilidade - seria bem mais eficaz se fosse
substituída por um carrinho popular de dois ou três cavalos de potência motora,
ao invés dos quatro ou seis garbosos animais de carne e osso. A carruagem é
símbolo de poder, de vetusta hierarquia e tradição. Secundariamente, transporta
pessoas.
Hoje, já não
se usam espetáculos tão artesanais e ingênuos como usavam os Luízes; ainda
assim, os reis continuam exibindo suas coroas, o papa sua mitra, o general suas
estrelas, e as damas das burguesas cortes, joias e cirurgias plásticas.
Bocassa,
ditador da Centro-África, apesar de ter um poder unipessoal e discricionário,
exercido através de um exército sanguinário, gostava de se apresentar
paramentado de leopardo, ornado de pedras preciosas, fartas em seu país. Exigiu
ser coroado Imperador na presença de dignitários estrangeiros.
Cobiçosos de
tanta riqueza, muitos vieram à festança e partiram brilhantes.
Não só as
festas de 15° aniversário de uma jovem que dança com o pai sua primeira valsa,
ou da plebeia Angélica com o Príncipe no Leopardo de Visconti, que lhe abre as
portas da nobreza, ou uma cerimônia do seu casamento, a noiva toda de branco
vestida; não só o presidente da República quando deposita coroas de flores no
túmulo do Soldado Desconhecido, ou a inauguração de uma nova estrada - não só
essas pompas são espetáculo, mas também o almoço ajantarado dos domingos
familiares onde se come e fala segundo regras estabelecidas, como em qualquer
peça de teatro.
O espetáculo
tem a função de revelar quem é quem, como se pusesse uma legenda na testa de
cada protagonista ou figurante!21
A aparição de
qualquer cidadão em capa de revista, coluna social ou esportiva, ou em um
programa de TV – que são formas espetaculares, estáticas ou dinâmicas - pode
dar a qualquer pessoa, por mais insignificante que seja, o poder correspondente
a esse status que lhe confere a mídia, e que dura até a próxima edição do
jornal. Mídia que é, a um só tempo, fonte de informação e de valoração daqueles
que nela desfilam: fontes de poder, como a coroa e a mitra.
O extraordinário
poder hipnótico da TV é levado ao paroxismo pelo movimento da imagem. Qualquer
movimento é atraente por causa da sua imprevisibilidade – todo movimento cria
suspense. Já no berço, o olhar do bebê é atraído por qualquer coisa que se
mova: o movimento é uma das formas sadias de desenvolver sua atenção.
A TV utiliza
esse fato biológico: suas imagens não demoram na tela, via de regra, mais que
alguns segundos fugidios. Não permitir que os telespectadores vejam a imagem
que olham, esse é um princípio básico da hipnose televisiva.
Outra
imprevisibilidade é o som: surpreende e assusta.
É curioso que
o cinema, antigamente calmo e tranquilo, já não permite Antonionis: absorveu a
vertigem da velocidade da TV. A pequena tela é vista na sala de jantar iluminada,
onde espectadores realizam sonoras atividades paralelas (jantar, jogar cartas,
conversar em voz alta...). Na grande tela, a histeria da imagem não seria
necessária pois acontece na sala escura onde, quando muito, come-se pipoca e
bebem-se insalubres refrigerantes.
A TV é feita
para vender produtos e ideias, isso através do mecanismo insidioso da empatia,
que nos faz suspender o nosso senso crítico e a nossa necessidade de atuarmos
para, imobilizados no corpo e na alma, ficarmos à mercê dos ralos pensamentos,
reles linguagem, chã e vazia, costumes consumistas e violentas ações que nos
impõe a tela. Até nas comédias o nosso riso é programado e obrigatório:
risadas, gravadas em background, nos informam que tal cena ou frase é engraçada
e, mecanicamente, nos mostra quando devemos rir, mesmo sem acharmos graça.
Nem sempre a
estrutura desses programas já os condena. A ideia dos reality shows, em si
mesma, não é totalmente ruim: se, ao invés de pessoas vazias e medíocres, os
produtores convidassem Noah Chomsky, Arthur Miller, Susan
Sontag e
Michael Moore – para citarmos apenas intelectuais norte-americanos - para
ficarem vinte e quatro horas em uma sala trocando ideias, eu não dormiria nessas
vinte e quatro horas – olhos vidrados na tela. Os próprios participantes imporiam
seus limites comportamentais impedindo que tais shows se transformassem, como
tem sido o caso, em permissivas sessões de repugnante voyeurismo. Seria um
encontro de inteligências e não de aberrações.
Paradoxo: a
TV torna-se a verdade absoluta e a realidade ficção, até que seja referendada
pelo Jornal da Noite.
No fim da
década passada, no centro do Rio de Janeiro, houve um assalto a um ônibus, com
a tomada de reféns, que durou cinco horas e foi filmado integralmente pela
televisão. Uma jovem confessou que, ao passar pelas imediações e ao ver o que
estava acontecendo diante dos seus olhos, voltou correndo para casa e ligou a
televisão para ter certeza de que era verdade o que havia presenciado.
Os meios de
se realizar o espetáculo mudam com a cultura de cada povo, mas sua função é a
mesma. Menos tecnológicos, indígenas brasileiros usam plumagem colorida que
exibem em suas festas ou quando se preparam para a guerra. Alguns usam objetos
redondos – sua mitra e sua coroa! - com os quais furam seus lábios que lhes dão
feições assustadoras. À sua volta, todos dançam respeitosos, em busca de um
lugar na estrutura de poder que a proximidade do cacique oferece. Em um
contexto diferente, é igual aos nobres de Louis, velando ao seu despertar.
As insígnias,
ao mesmo tempo em que, com sua presença, individualizam o seu possuidor como
alguém superior e potente, são também Imagens da Ausência. A coroa real nos faz
perceber a nossa pequenez: somos cabeças não-coroadas! As insígnias mostram
onde reside o poder, e nos denunciam como não possuidores desse poder: somos
súditos, vassalos ou escravos.
Isto é
explicitado na estrutura de todos os espetáculos-rituais: ao vê-los, mesmo
inconscientemente, tudo compreendemos e nos comportamos segundo a posição que
neles ocupamos.
A maior
humilhação que pode sofrer um militar é que lhes retirem as medalhas em frente
à sua tropa de soldados sem medalha: retorno ao marco zero.
NOTAS
20 Sinal é um estímulo sensorial (som,
imagem, etc.) convencionado entre pessoas, ou de automática ilação, e que
carrega um significado preciso, limitado: isto quer dizer aquilo! É uma
advertência. Já o símbolo, também convencionado, não tem limites. O verde no
trânsito é sinal que permite a passagem, mas a cor verde é um símbolo de
esperança. Pode-se dizer que uma árvore caída da estrada é sinal de que ventou
forte, enquanto que a mesma árvore caída, pintada em uma tabuleta na beira da
estrada, é símbolo de perigo, embora seja sinal de trânsito. O sinal pode
também ter adquirido seu significado pela memória: uma nuvem negra é sinal de
chuva. Ao signo, atribuem-se poderes mágicos, como aos do Horóscopo, ou
mnemônicos, como aos heráldicos. Uma insígnia, reveladora de status, pode ser fabricada
com sinais, símbolos e signos.
21 Alguns espetáculos, dada a sua
natureza catártica, tornam-se rituais orgiásticos como, por exemplo, as grandes
concentrações musicais onde ninguém vai para apenas ouvir música, mas para
simbólicas – ou nem tanto – orgias. O aparente desdém e distância que os
Beattles mantinham de suas plateias, como frios amantes, exacerbavam ainda mais
a desesperada busca de paroxismos.
13.Os Três Níveis da Percepção
Para viver,
exercer nosso poder e ocupar nosso território, nós, animais de todas as
estirpes, necessitamos perceber o mundo onde vivemos. Essa percepção dá-se em
três níveis:
1 –
Informação - o nível receptivo: a luz se reflete sobre os objetos, atravessa o
cristalino dos meus olhos, estimula minha retina que informa ao nervo ótico,
que faz circular essa informação eletroquímica até aquela região do cérebro que
me fará ver o que está diante de mim. Recebo a mensagem. Essa informação não
fica arquivada, mas, pelo contrário, inter-relaciona-se com outros circuitos neurais.
Semelhantemente ocorre com os demais sentidos.
2. Conhecimento
e Tomada de Decisões - nível ativo: o indivíduo relaciona as novas informações
com as que já havia recebido anteriormente, e toma decisões reativas.
Nestes dois
níveis, humanos e animais se igualam: ambos decidem, reagem. Em alguns, as
decisões são instintivas ou biológicas. Ratos criados em laboratório, que
jamais viram a cor de um gato nem conhecem o seu mau caráter, fogem espavoridos
quando sentem o cheiro do felino: mesmo sem conhecer o inimigo, o rato reage
biologicamente e repele o cheiro.
No ser
humano, o Conhecimento é acompanhado de uma avaliação subjetiva, que pode
induzir ao erro. Em nós, a Informação e o Conhecimento nos levam ao terceiro
nível, como neste exemplo:
Abro a porta
da minha casa e vejo um tigre, fugido do circo: meu nervo ótico registra sua
presença – recebo a informação! Excelente! Meus sentidos funcionam. Fico feliz.
O tigre se
aproxima e as informações continuam a chegar com eletroquímica precisão
neurônica: vinte metros, dez, cinco. O tigre brama, e escuto o seu bramar:
ativa-se o meu nervo auditivo, bravo! Continuo alegre com o funcionamento
perfeito dos meus sentidos.
O tigre abre
sua enorme boca - ativa-se o meu olfato e sinto o bafo quente!
Fico
contente; as informações são corretas, estou bem informado. O tigre abre a goela
e arreganha os dentes! Maravilha: percebo tudo, tão perto estou dos seus dentes
afiados.
Se parasse aí
o meu processo psíquico, eu seria engolido com apetite e sem delongas. Mas
como, no nível do Conhecimento, eu já sabia que o tigre era perigoso, sabia que
posso trancar a porta e usar a chave, sabia que tenho pernas - posso correr e
me refugiar no andar de cima. Sei que posso me salvar, como rato fugindo do
gato.
Como humano,
porém, não me reduzo a fugir: posso tomar decisões criativas, buscar outras
soluções. Posso inventar, escolher o que fazer. Na gaveta, tenho um revólver e
posso matar o tigre. Subo ao segundo andar, abro a gaveta, ponho a mão lá
dentro e...
3.
Consciência Ética, o nível humano - este nível é exclusivo do ser humano: consiste
em dar sentido e valor às decisões que tomamos. Eu me interrogo - este é o
nível da dúvida e da escolha eticamente justificada.
Devo matar o
tigre? Afinal, ele está desnutrido, faminto – a crise econômica diminuiu sua
ração! O tigre quer apenas me comer, saciando sua fome, sem aleivosia: comer
gente ou bicho lhe é tão natural como à piranha devorar um boi. Eu posso me salvar,
mas, se o deixar livre, o tigre pode comer o filho do vizinho que está
brincando com o triciclo que ganhou de Natal - o menino tem a carne mais tenra
do que a minha...
Chamo os
bombeiros? Jogo minha escrivaninha na cabeça do tigre para que fique
desacordado? Grito?
Este terceiro
nível é Ético: dá valores a cada ato, e projeta o ser humano em suas ações no
futuro, não apenas em suas reações no presente.
É criativo:
exige a invenção de alternativas. É neste nível ético que se deve mover uma
sessão de Teatro-Fórum: não bastam boas ideias, é necessário que sejam
eticamente justificadas. Não basta trabalhar com as ideias que já existem: é necessário
inventar.
No nosso
trabalho teatral, é importante ampliar e amplificar todos os níveis da
percepção, especialmente o Ético, para que as nossas escolhas sejam conscientes
– com ciência - das possibilidades que existem ou podem ser criadas, em cada
situação: sempre existe escolha!
14. A Necessidade da Estética do
Oprimido
A Estética do
Oprimido - que desejo que se torne parte indissociável do Teatro do Oprimido -
é necessária e essencial, na medida em que produz uma nova forma de
compreender, ajudando a que o sujeito sinta e, através de suas sensações e não
apenas de sua inteligência, compreenda a realidade social.
A Estética do
Oprimido é mais ampla que a simples percepção, produzindo estímulos emocionais
e intelectuais, somando, à linguagem simbólica da palavra, a linguagem
sinalética dos sentidos.
O teatro é a
forma mais natural de aprendizado, a mais arcaica, pois que a criança aprende a
viver através do teatro, brincando, interpretando personagens – e, através das
outras artes, pintando-se e pintando, cantando e dançando.
É verdade que
esse aprendizado utiliza estruturas sociais e valores éticos vigentes em cada
sociedade; para evitar a aceitação passiva dessa sociedade tal qual é, existe o
Teatro do Oprimido - subjuntivo e não imperativo – questionando valores e
estruturas.
A criança
deve aprender a viver em sociedade e também a questioná-la.
Os Jogos
Teatrais sintetizam a Disciplina e a Liberdade. Todo jogo tem regras claras que
devem ser obedecidas; mas, obedecendo-se às regras, a invenção é livre e
necessária.
Todo jogo é
um aprendizado de Vida; jogo teatral, um aprendizado de Vida Social. Os Jogos
do Teatro do Oprimido são um aprendizado de Cidadania. Sem Disciplina, não
existe Vida Social. Sem liberdade, não existe Vida.
Como disse um
camponês do MST: - “O Teatro do Oprimido é maravilhoso porque permite que a
gente aprenda tudo aquilo que já sabia! ”. Aprende, esteticamente – amplia o
conhecer, e lança o conhecedor em busca de novos conheceres.
Aprendemos a
aprender!
Temos que
ativar nossos Neurônios Estéticos através do ensino subjuntivo das Imagens –
olhar e ver -, do som e da música – ouvir e escutar -, da Palavra – poesia e
narrativa – e, em toda essa atividade estética e social, buscar o seu sentido
ético, do qual o seu primeiro elemento é o de Multiplicar o aprendido.
O estímulo
que se faz em uma área cerebral propaga-se às áreas circunvizinhas: acordes de
violão desenvolvem potencialidades visuais e não apenas auditivas. Campeões de
xadrez estudam música clássica para melhor imaginarem criativas estratégias.
Einstein tocava violino quando não conseguia prosseguir no seu trabalho
matemático, e voltava à matemática quando, nos acordes do seu violino,
encontrava o estímulo necessário: a música é o som da matemática, é a
matemática sublimada em sons.
Os Neurônios
Estéticos são os mais importantes do sistema nervoso, segundo a hipótese de
que, neles, coexistem os sentidos com a razão, o concreto com o abstrato: a
percepção estética incorpora a razão e a emoção, juízos e valores, e não apenas
sensações!22
Da mesma
forma que o esporte expande as potencialidades do corpo, a Arte expande as do
espírito.
As sementes
deste Projeto Estético já estão no próprio Arsenal do Teatro do Oprimido – as
Técnicas e os Jogos de Imagem já são Artes Plásticas – falta extrapolá-las para
a obra de arte concreta; as Técnicas e os Jogos de Ritmos já são música – falta
transformá-los em canções e sinfonias; as improvisações já produzem literatura:
falta concretizá-la em poemas e narrativas.
Atenção: não
se trata de ensinar Solfejo e Canto Orfeônico,
nem obrigar ninguém a cantar a segunda parte do Hino Nacional, como fui
martirizado na minha infância, mas sim de desenvolver a musicalidade que já
possuímos todos.
Não se trata
de organizar um Curso Supletivo de Arte que venha remediar carências da
infância. Não se trata de ensinar desenho, cor e traço, para que desenhem
estátuas gregas ou modelos nus, como na Faculdade, mas sim ajudá-los a ampliar
suas sensibilidades, suas tendências artísticas e seus embrionários conhecimentos23.
Buscamos o
Belo, como qualquer artista. O Belo que, como escreveu Hegel, é o luzir da
verdade através dos meios sensoriais. A verdade que se esconde atrás das
aparências. Mas não a verdade hegeliana que revela Deus, e sim aquela que pode
ser inventada pelos humanos: uma Ética Humanística.
Buscamos o
Belo que se esconde no coração de cada cidadão, pois cada cidadão é um artista
- cada qual ao seu modo: mesmo que alguns não sejam capazes de criar um Produto
Artístico que nos ilumine, todos são capazes de desenvolver um Processo
Estético.
Buscamos a
Cultura, não só para compreender e fruir a Cultura alheia – a Erudição, que é o
conhecimento de outras Culturas! - mas sim para desenvolver a nossa própria
identidade: somos o que fazemos! – e se fizermos apenas aquilo que foi
inventado pelos outros, seremos uma cópia dos outros e não nós mesmos. É
importante para todos nós o conhecimento da cultura de outros povos e de outras
épocas, ou de estruturas artísticas completas e bem acabadas, mesmo quando
afastadas de nós. Moças e moços de uma comunidade pobre que aprendam a dançar
Valsa com rigor austríaco, ou um bom Minueto com elegância francesa, algo aprendem
e são esteticamente estimulados, mesmo que a “nobreza e o equilíbrio dos
movimentos”24 desta dança nada tenham a ver com as suas vidas cotidianas.
Se, fielmente, encenam uma peça de Molière ou, com igual fidelidade, aprendem a
tocar um Noturno de Chopin, claro que isso só poderá ampliar os horizontes da
sua percepção e esse aprendizado é maravilhoso.
Nenhuma
estrutura de dança, música ou teatro é inocente ou vazia: todas contêm a visão
do mundo de quem a produz – contém a sua ideologia - que, através da forma
artística, é assimilada e incorporada por quem as pratica.
Camponeses
europeus não dançavam Valsas nem Minuetos, que só eram compatíveis com o lazer
dos ricos. É ótimo que saibamos dançar Minuetos e Valsas, e melhor ainda que
descubramos a dança que o nosso corpo é capaz de criar25.
Se não
criarmos a nossa própria cultura, seremos obedientes e servis a outras
culturas. Criando a nossa própria, as outras culturas só poderão nos ser benéficas,
expandindo a nossa sensibilidade. O fato de ser quem sou – quando sei quem sou!
- não me impede de admirar o que fazem os outros. Se não sei quem sou... serei
cópia.
A Estética do
Oprimido é uma proposta que trata de ajudar os oprimidos a descobrir a Arte
descobrindo a sua arte e, nela, descobrindo-se a si mesmos; a descobrir o
mundo, descobrindo o seu mundo e, nele, se descobrindo.
NOTAS
22 Os neurônios motores que nos
permitem mover o dedão do pé, são bem mais simples. Lula perdeu o dedo mindinho
da mão esquerda, foi eleito Presidente da República, e passa bem; Roosevelt
perdeu a capacidade motora de suas pernas, mas continuou dirigindo o seu país;
o cientista Stephen Hawking, imobilizado em uma cadeira de rodas, continua
escrevendo livros. Mas, se algum deles tivesse perdido um pedaço de cérebro, o
mundo estaria à beira de uma catástrofe... como de fato está.
23 Quando o CTO começou suas
atividades no Rio em 1986, em comunidades pobres, eram poucas as ONGs que se
dedicavam a tarefas similares: hoje, muitas se dedicam a realizar programas
artísticos semelhantes aos que já existem para a classe média, preparando
atores e bailarinos para a TV, teatro e cinema. São comuns as reportagens sobre
jovens de excepcional talento, revelados nos morros, que vão fazer carreira em
telenovelas, bailarinos selecionados para continuar seus estudos em Nova York e
até no Bolshoi de Moscou. Isso tem acontecido, é ótimo que aconteça, porém não
é nossa função, nem faz parte dos nossos objetivos. Essa aplicação, em
comunidades pobres, dos mesmos programas e métodos que são utilizados pela
classe média e alta, traz no seu bojo a mesma ideologia competitiva e o mesmo elogio
ao mais capaz, ao excepcional: a ideologia do primeiro lugar, do campeão. Nossa
função, ao contrário, é preparar os participantes dos nossos grupos para serem Multiplicadores
de Arte, segundo a nossa máxima de que “Só aprende quem ensina! ”, levando em
conta que nosso objetivo é atingir todo o tecido social e não apenas revelar
talentos excepcionais.
24 Definição do Dicionário Aurélio.
25 Julián Boal, em seu ensaio A Dança
do Trabalho, cita pesquisadores que mostram que os movimentos realizados
durante o trabalho foram, em muitos casos, a origem de danças mundialmente
conhecidas, como a claquete, que vem do som dos passos dos escravos norte-americanos,
quando passeavam no chão de madeira das casas dos seus senhores, calçando sapatos
com ruidosas “ferradurinhas”, ou os graciosos movimentos helicoidais das mãos
das bailarinas andaluzas dançando flamenco, originados nos movimentos de colher
os frutos das árvores.
15. O Método Subjuntivo
O teatro,
usualmente, conjuga a realidade no tempo Presente do Modo Indicativo – “Eu faço!
” A TV e a publicidade, no Modo Imperativo: - “Faça! ” No Teatro do Oprimido, a
realidade é conjugada no Modo Subjuntivo, em dois tempos: no Pretérito
Imperfeito – “... se eu fizesse? ” - ou Futuro – “... se eu fizer? ”
No trabalho
com camponeses que lutam pela terra para cultivá-la, ou com os jovens cumprindo
pena em estabelecimentos correcionais; com comunidades pobres, com portadores
de deficiências físicas ou mentais, com operários de uma fábrica ou com
empregadas domésticas, ou conosco mesmos! - temos que ser Subjuntivos.
Tudo será
“se”, porque quase tudo pode vir a ser.
Subjuntivo –
eis a palavra! O Teatro Subjuntivo deve ser acompanhado pelo Teatro Legislativo26
para que se extrapolem, em leis e ações jurídicas, os conhecimentos adquiridos
durante o trabalho teatral. Ou pelo Teatro Invisível, para que se intervenha
diretamente na realidade. Ou pelas Procissões Laicas, para que se chama a
atenção da população para o tema que se quer tratar. Ou por uma Ação Concreta,
que a modifique em curto prazo, mergulhando-se de vez na realidade.
O Método
Subjuntivo é a instauração da dúvida como semente das certezas, é a comparação,
a descoberta e a contraposição de possibilidades; não a de uma certeza
estabelecida face à outra, que temos guardada. É a construção de diversos modelos
de ação futura para uma mesma situação dada, o que permite sua avaliação e
estudo.
Não devemos
nunca dizer: - “Façam isto ou aquilo! ”, mas sim: - “Se fizéssemos aquilo ou
isto, como seria se fosse? ” Mesmo que os participantes dos nossos programas
façam qualquer coisa ótima e admirável, ainda assim devemos pedir alternativas:
se fosse diferente, como seria?
26 Teatro Legislativo – forma do
Teatro do Oprimido que busca inscrever na Lei os desejos da população
organizada. Livro de Augusto Boal editado pela Civilização Brasileira.
16. A Metáfora: Humanos e Hominídeos
Na Estética
do Oprimido concentramos nossos esforços e nossas preocupações em criar
condições para que os oprimidos possam desenvolver plenamente o seu mundo
metafórico – seu pensamento, sua imaginação e sua capacidade de simbolizar, sonhar,
criar parábolas e alegorias, que permitam ver, a certa distância, a realidade
que se quer modificar – sem diminuir sua participação no mundo social,
concreto. Não podemos ver o real se a ele temos o nosso nariz colado – é
necessária certa distância estética.
Ao lado do
mundo sensível, significante, queremos desenvolver o mundo dos significados. A
transformação do artesão – aquele que criava a peça inteira - em operário, - aquele
que realiza uma tarefa específica sem ter domínio sobre o produto final, como um
operário metalúrgico que enfia o parafuso na porca sem saber se o produto final
será um automóvel ou um trator - tirou do artesão, transformado em operário,
grande parte da sua capacidade de imaginar: tirou o artista que existe em todo
artesão.
Os hominídeos
se transformaram em seres humanos quando desenvolveram a imaginação, a
linguagem simbólica, a metáfora – quando inventaram a palavra, a pintura
rupestre, a dança, o teatro. O ser humano criou o que Platão chamava de Mundo das
Ideias Perfeitas, inexistente no mundo sensível e exclusivamente humano, em contraposição
ao existente mundo imperfeito das realidades sensíveis.
Sócrates já
havia estabelecido o conceito de Logos (não o fato isolado, mas o seu significado,
o conceito que abrange todos os fatos ou fenômenos da mesma natureza), no qual
Platão baseou a sua teoria.
Fazendo uso
da licença poética, tão útil nestas circunstâncias, podemos dizer que a dança é
o Logos do movimento, assim como a música é o Logos do som, e o teatro o Logos
da Vida.
Aristóteles
defendeu a ideia de que a perfeição estava contida em cada ser – não era um
mundo à parte, desconectado do real: era o real em movimento, era a busca de algo
perfeito, inexistente.
Os
hominídeos, ao se transformarem em seres humanos, fizeram a diferença entre o
cérebro e a mente, a matéria e o espírito. O cérebro, anatômico desenvolveu o Córtex,
pressionado pelas novas necessidades intelectuais desse mundo subjetivo, abstrato
e metafórico. É assim que as coisas acontecem: a necessidade cria uma nova
realidade.
Isso me faz
lembrar uma das frases mais ouvidas dos fisioterapeutas sobre o uso e o desuso:
todas as partes do corpo, quando usadas, se desenvolvem; quando em desuso, se
atrofiam. O cérebro é parte do corpo e também a ele se aplica a regra do uso e
desuso...
A Arte é a
característica mais humana do ser humano: é a sua capacidade de recriar o
mundo. Quando os primeiros habitantes das cavernas começaram a pintar figuras
de bisontes e outros animais nas paredes de suas cavernas estavam procedendo a
uma Metáfora pictórica. Nós não devemos vê-los com olhos modernos: não estavam decorando
seus apartamentos pendurando quadros nas paredes, mas, ao contrário, faziam a
Metáfora de recriar os animais, concretos e ameaçadores, em outro contexto: a pintura.
Poderiam, assim, estudá-los, pois necessitavam abate-los e comê-los.
Poderiam,
também, usar essas imagens para seus rituais encantatórios.
Arte é
Metáfora. Metáfora, no seu sentido mais amplo, é qualquer translação. É a transposição
de algo, que existe dentro de um contexto, para um outro contexto diferente
daquele em que se encontra na vida cotidiana. A pintura e a escultura são metafóricas
porque, pelos próprios elementos que utiliza – tintas, tela, ferro, barro, etc.
– já se distanciam da realidade original, criando outra, igual e diferente. Com
o cinema acontece o mesmo: já é metafórico o próprio ato de filmar.
O teatro
moderno, quase sempre realista, tende a colar-se à realidade original.
Alguns
estilos, porém, pela sua própria apresentação como Imagem, promovem esse vigoroso
distanciamento estético metafórico: o Nô e o Kabuki japoneses, o Katakali
indiano, a Commedia del’Arte italiana, a Tragédia Grega, os Contadores de
histórias do nosso Nordeste, etc.
Apenas nós,
humanos, somos capazes dessas translações – somos o único animal metafórico.
Este salto,
que vai do cérebro físico à consciência, é tão importante e tão misterioso como
aquele outro salto, que vai da matéria inanimada à vida. Tão misterioso e tão
importante é também o salto que vai da percepção sensorial à tristeza ou
alegria, das sensações à emoção. Tão misterioso como o processo de pensar, que surge
deste conjunto.
Estes saltos
misteriosos contrariam Leibnitz, filósofo alemão do século dezoito, para quem
“natura non facit saltus”. Faz sim.
Estes
mistérios, juntamente com a ideia dos dois Infinitos – o Infinito Maior e o
Infinito
Menor, o para fora e o para dentro -, são os mistérios supremos e últimos da existência
que jamais entenderemos. Por enquanto.
Em nossas
sociedades, a fim de melhor oprimirem os oprimidos, os opressores procuram
reduzir a vida simbólica dos oprimidos, sua imaginação, obrigando-os ao trabalho
mecanizado no qual são substituíveis por quaisquer outros - seus nomes tornam-se
números: a qualidade torna-se quantidade, e o ser humano se robotiza.
O lazer dos
oprimidos, quando existe, é povoado de imagens - mediáticas e outras - que
visam a re-transformar humanos em hominídeos, contrariando a evolução da
espécie.
Em cada ser
humano, um hominídeo espreita: não nos deixemos cair em tentações. Sejamos
metafóricos – sejamos gente!
A Estética do
Oprimido visa o fortalecimento, desenvolto e livre, da atividade metafórica,
das linguagens simbólicas, da inteligência e da sensibilidade. Visa à expansão
da percepção que temos do mundo.
Isso se faz
através da Palavra, da Imagem e do Som, guiados por uma Ética humanística.
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