segunda-feira, 21 de junho de 2021

BRUNA TESTI ESCREVEU: A CONSCIÊNCIA VIVA DO TEATRO DE BERTOLD BRECHT


A CONSCIÊNCIA VIVA DO TEATRO DE BERTOLT BRECHT




O Teatro Épico alcançou e despertou a massa, alterou fundamentalmente a função e o sentido social do teatro ao usá-lo como uma arma de conscientização e politização. Nas palavras de Brecht: é preciso estranhar tudo que tido como natural.

(Bertold Brecht collage by Papa Osmubal)


Você entra em um teatro, senta-se confortavelmente na poltrona mais bem posicionada diante do palco, tira o pacote de balas do bolso e se rende a uma despretensiosa imersão dramatúrgica. Ali, naquele ambiente, enquanto aprecia o cenário e os figurinos cuidadosamente valorizados sob a ribalta, você se pega dando risadas e até derramando uma ou outra lágrima, conforme a trama te convida, te seduz, te hipnotiza. Você olha para o palco como que fascinado pelo enredo, pela trilha sonora, pela meia luz que cria a atmosfera ideal. Uma obra de arte viva, capaz de te emocionar tanto mais do que a própria realidade, enquanto o mundo lá fora desmorona, enquanto o caos se alastra pelas ruas e a política torna-se desconcertante, você então busca a fuga, o refúgio, o escape, em uma entorpecente experiência artística.

Entorpecer, eis um dos mais relevantes objetivos do drama clássico. A função catártica do espetáculo já fora defendida por Aristóteles, em sua obra “Poética”, na delimitação da essência contida nas antigas tragédias gregas. Ao se deparar com o desfecho trágico do herói, o espectador é surpreendido com uma intensa descarga emocional, que lhe conduz à purificação de sua alma, seja por meio da compaixão ou pelo temor, ambos despertados por uma série de artifícios cenográficos, de ilusão e interpretação. Fundamento do drama clássico, o processo de envolvimento e identificação é ainda nos dias atuais o mais difundido por grande parte das dramaturgias, adotado pelo cinema e repercutido nas novelas e seriados contemporâneos.

Apesar de defendido pelos grandes blockbusters da indústria, em favor da manutenção de um aparelho teatral que trabalha em prol do entretenimento de uma massa privilegiada, a função entorpecente da dramaturgia pode ressonar problemática no que tange ao despertar da consciência e do olhar crítico do público. Não foram poucos os dramaturgos e teóricos que se dedicaram à elaboração de obras que buscavam solucionar os problemas ofertados pelo drama. Destaca-se aqui a Teoria do Drama Moderno, de Peter Szondi, livro escrito em 1954 no qual o estudioso desenvolveu de forma consistente as tentativas de superação do drama clássico, findando-se na emersão da forma épica do teatro. Deixando de lado o excesso de formalismo acadêmico, conceitos e o aspecto teleológico do processo histórico e social que resultou na reformulação da forma dramática, ergo neste artigo a bandeira em favor da nova proposta de experiências dramatúrgicas, que se consolidou por meio de um novo modelo de teatro épico, difundido pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht.

Com a intenção aberta de propor uma dramaturgia não aristotélica, Brecht empreendeu um teatro político, com técnicas de afastamento e distanciamento, que impediam a identificação cega do público e mantinham a consciência viva da peça teatral. A quebra da ilusão, mais do que uma tentativa de superar o drama burguês, almejava retirar o domínio do aparelho teatral de uma classe burguesa dominadora e difundir o acesso ao público proletário, além de transformar a experiência teatral em um processo de reflexão, retirar o espectador da passividade extrema e conduzi-lo a uma postura ativa, tirá-lo da zona de conforto, e confrontá-lo ao contexto social dentro do qual se insere. Um teatro que torne a produtividade e a atividade consciente fontes dignas de diversão.

Imagina-se agora novamente entrando naquele mesmo teatro descrito no início deste texto.

Você entra no teatro, escolhe a sua poltrona, pega seu pacote de drops e se depara com um palco sem grandes artifícios, claramente iluminado, percebe a presença de cartazes, projeções de textos, uso de máscaras, figuras gigantescas, membros artificiais, deformidades… Nota um ator que vez ou outra se converte em narrador e personagens que se alternam entre indivíduos e coros. Você não consegue se contentar com a passividade amena, enquanto o contexto social no qual você está inserido parece se materializar ali, naquele palco, na sua frente. Personagens, outrora envolventes, se convertem em meros locais de enunciação. A realidade revela seu caos alarmante em meio ao coro que te convida a refletir. Você não está imerso, hipnotizado, nem tampouco entorpecido. Você está atento, sua consciência tão ávida quanto aquele espetáculo, seu olhar tão crítico quanto a denúncia explícita na fala do protagonista, que já se alternou como coadjuvante, narrador e até mesmo fez-se parte integrante do coro. Você está ali, consciente de sua função social, o teatro não é mais uma rota de fuga do caos que ocorre lá fora, mas ele é quem te convida a encarar o cenário caótico e, simultaneamente, a refletir sobre o seu papel e o seu potencial de transformar a realidade. Não é mais uma mera expressão artística entorpecente, é uma arena, um fórum, um palco de debates, um centro de reflexões e o confronto com possíveis soluções. Você sai do teatro transformado, com a mente ativa e com sede de mudança. O teatro cumpriu o seu papel.

O espectador do teatro épico é mais do que um mero espectador, ele é tratado como o protagonista de sua própria história. Um leitor marxista declarado, Bertolt Brecht utiliza-se do materialismo dialético defendido por Karl Marx para pautar o desenvolvimento formal de suas obras. Em linhas genéricas, materialismo dialético consiste na visão de que o homem ao mesmo tempo que é resultado da sociedade e de um processo histórico, é igualmente ele quem tem a capacidade de transformar a sociedade. O homem, no teatro de Brecht, é revelado tal qual um processo capaz de transformar-se e transformar o mundo; em oposição ao ser humano regido pelo destino fatalista da tragédia, contrariamente depende das condições históricas, mas também detém o poder de transformá-las. E é por meio do distanciamento e das técnicas anti-ilusionistas que o teatro épico brechtiano revela suas intenções. Porém, isso não significa que estamos diante de um teatro desagradável, hostil ou isento de prazeres. Além da proposta de um teatro de arena, transformador, Brecht propõe igualmente um espetáculo divertido e prazeroso ao público. O palco épico de Brecht é narrativo, faz do espectador um observador, mas atiça simultaneamente sua atividade, força-o a tomar decisões em face de novas e despertas concepções do mundo.

Brecht escreveu suas peças entre 1918 e 1955, viveu o período pós-Revolução Industrial, assim como sofreu a perseguição nazista na Amanha de Hitler e os efeitos da Segunda Guerra Mundial. O dramaturgo alemão usou de sua arte para mobilizar a população de sua época, para criar um legado de resistência, utilizando do despertar de uma consciência coletiva que represente o triunfo da razão contra a barbárie. Não foi por menos que Bertolt Brecht escreveu mais de cinquenta peças, sendo sua dramaturgia a segunda mais encenada da história do teatro mundial - ficando atrás somente de Shakespeare. E, ainda hoje, sua obra repercute nos palcos e nas telas, influenciando grandes nomes da dramaturgia internacional e nacional, como Augusto Boal e o teatro do oprimido.

Mais do que uma fonte de prazer e entretenimento a arte é um ato político, que permanece se fazendo essencial e urgente. Entre tantas manifestações artísticas, o teatro épico foi capaz de contagiar e despertar uma massa, alterando fundamentalmente a função e o sentido social do teatro, ao usá-lo como uma arma de conscientização e politização. Nas palavras de Brecht, é preciso estranhar tudo que tido como natural.

“Nós pedimos com insistência:/ Não digam nunca: isso é natural!/ Diante dos acontecimentos de cada dia./ Numa época em que reina a confusão/ Em que corre sangue,/ Em que se ordena a desordem,/ Em que o arbitrário tem força de lei,/ Em que a humanidade se desumaniza,/ Não digam nunca: isso é natural!” [Prólogo de “A Exceção e a Regra” de Bertolt Brecht]




BRUNA TESTI

Mestranda em Filosofia, bacharel em comunicação, pesquisadora de teatro e cinéfila incorrigível. Aprecio desde Bergman até Spielberg, mas daria meu reino por um café com Woody Allen.


Fonte




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