O que se segue é um RESUMO da obra de Bergson. Como todo resumo, há imperfeições e lacunas, mas acredito que possa dar uma razoável ideia do pensamento do Autor.
CAPÍTULO 1
SOBRE O CÔMICO EM GERAL; COMICIDADE DAS FORMAS E DOS MOVIMENTOS; FORÇA DE EXPANSÃO DO CÔMICO
• não há comicidade fora do que é propriamente humano: já se definiu o homem como “um animal que ri”, mas poderia ser definido também como animal que faz rir;
• o cômico exige algo como certa anestesia momentânea do coração para produzir todo o seu efeito. Ele se destina à inteligência pura;
• o nosso riso é sempre o riso de um grupo: não desfrutaríamos o cômico se nos sentíssemos isolados - o riso parece precisar de eco, de cumplicidade com outros galhofeiros, reais ou imaginários;
• o riso deve ter uma significação social;
• quando certo efeito cômico derivar de certa causa, quanto mais natural a julgarmos tanto maior nos parecerá o efeito cômico: rimos já do desvio que se nos apresenta como simples fato. Mais risível será o desvio que virmos surgir e aumentar diante de nós, cuja origem conhecermos e cuja história pudermos reconstituir (ex.: D. Quixote - suas ações são desvios que se ligam a uma causa conhecida e positiva: sua fascinação pelos romances de amor e cavalaria);
• o cômico é inconsciente - ele se torna invisível a si mesmo ao tornar-se visível a todos;
• a vida e a sociedade exigem atenção constantemente desperta e certa elasticidade de corpo e de espírito (tensão e elasticidade) - contrapõe-se ao gesto cômico um certo efeito de automatismo e rigidez;
• automatismo, rigidez, hábito adquirido e conservado são os traços pelos quais uma fisionomia nos causa riso. Mas esse efeito ganha em intensidade quando podemos atribuir a esses caracteres uma causa profunda, e relacioná-los a certo desvio fundamental da pessoa, como se a alma se tivesse deixado fascinar, hipnotizar, pela materialidade de uma ação simples;
• atitudes, gestos e movimentos do corpo humano são risíveis na exata medida em que esse corpo nos leva a pensar num simples mecanismo: imitar alguém é destacar a parte do automatismo que ele deixou introduzir-se em sua pessoa; não surpreende, portanto, que a imitação cause riso;
• o mecânico calcado no vivo:
1º) mecanismo inserido na natureza (ex.: a senhora que chegou atrasada ao eclipse e pediu para começar de novo), regulamentação automática da sociedade (ex.: o burocrata agindo como simples máquina) e a combinação de ambos, o que resulta na idéia de uma regulamentação humana impondo-se em lugar das próprias leis da natureza (“a experiência está errada”, concluiu o filósofo diante do argumento de que seus raciocínios eram contrariados pela experiência);
2º) é cômico todo incidente que chame nossa atenção para o físico de uma pessoa estando em causa o moral (orador que espirra no momento mais dramático do discurso; a imagem de uma pessoa cujo corpo incomoda);
3º) rimo-nos sempre que uma pessoa nos dê a impressão de ser uma coisa (o gordo Sancho Pança derrubado numa cobertura e jogado no ar como simples balão).
CAPÍTULO 2
COMICIDADE DE SITUAÇÕES E COMICIDADE DE PALAVRAS
• a comédia é um brinquedo, brinquedo que imita a vida: acompanhemos o progresso imperceptível pelo qual a criança faz seus bonecos crescerem, lhes dá alma, e os leva a esse estado de indecisão final em que, sem deixarem de ser bonecos, apesar disso se tornaram homens;
• é cômico todo arranjo de atos e acontecimentos que nos dê inseridas uma na outra, a ilusão da vida e a sensação nítida de uma montagem mecânica:
• boneco de mola: comprime-se o boneco e ele salta de novo - conflito de duas obstinações - o gato a brincar com o rato, deixando-o ir-se como por uma mola para logo a seguir o deter com a pata - certa idéia que se exprima, se reprima, uma vez mais se exprima - a repetição: numa repetição cômica de expressões, há em geral dois termos em confronto: um sentimento comprimido que se distende como uma mola, e uma idéia que se diverte em comprimir de novo o sentimento (ex.: Valère mostra a Harpagon que ele estaria errado em casar sua filha com um homem a que ela não ama. “Sem dote!”, interrompe sempre a avareza de Harpagon. E entrevemos, por trás dessa expressão que se repete automaticamente, um mecanismo de repetição montado pela idéia fixa); numa mesma pessoa, dois sentimentos contrários (p.ex.: falsidade e sinceridade) só serão cômicos se, nessa pessoa bem viva, se tornarem irredutíveis e rígidos de modo a que essa pessoa oscile de um a outro de forma mecânica, ou seja, com o mecânico ao vivo;
• o fantoche a cordões: um arranjo ainda aqui mecânico em que percebemos que a personagem não tem liberdade, é um mero fantoche manipulado por outro (p.ex.: um personagem oscila entre casar ou não casar e propõe essa questão a dois outros - um contra o outro a favor do casamento);
• a bola de neve ( a bola de neve que rola e aumenta de volume, soldadinhos de chumbo enfileirados uns atrás dos outros, um castelo de cartas cuidadosamente armado): um efeito que se propaga e acrescenta-se a si mesmo, de modo que a causa, insignificante na origem, chega por um progresso inevitável a certo resultado tão importante quanto inesperado; se for reversível, isto é, se o mecanismo for circular e voltar ao ponto de partida, será ainda mais risível (p.ex.: numa comédia de Labiche, um casal de solteirões velhos conhecidos, dirigem-se, cada um por sua vez, a uma mesma agência de matrimônio e depois de mil e uma dificuldades e vicissitudes, acabam se colocando um diante do outro numa entrevista; ou, ainda: um marido atormentado acredita escapar de sua mulher e da sogra pelo divórcio; casa-se de novo; e as tramas combinadas do divórcio e do casamento acabam levando-o à antiga mulher, mas em situação mais grave, pois agora ela é sua sogra);
• por que rimos desse dispositivo mecânico: o mecanismo rígido que deparamos vez por outra, como um intruso, na continuidade viva das coisas humanas tem para nós um interesse particularíssimo, porque é como um desvio da vida, o movimento sem a vida, exprimindo um imperfeição individual ou coletiva que exige imediata correção e o riso é essa própria correção - o riso é certo gesto social, que ressalta e reprime certo desvio especial dos homens e dos acontecimentos;
• vida: evolui no tempo (envelhece sem cessar, não se repete) e no espaço (exibe elementos que não podem pertencer simultaneamente a dois organismos diferentes); os caracteres exteriores (reais ou aparentes) que distinguem o vivo do simples mecânico são a mudança contínua de aspecto, a irreversibilidade dos fenômenos e a individualidade perfeita de uma série encerrada em si mesma. Se tomarmos o avesso disso, teremos três processos que chamaremos de REPETIÇÃO, INVERSÃO e INTERFERÊNCIA DE SÉRIES:
• repetição: uma combinação de circunstâncias que se repete exatamente em várias ocasiões, contrastando vivamente com o curso cambiante da vida - será tanto mais cômica a repetição (ou coincidência) quanto mais complexa for a cena repetida e quanto mais natural for representada (duas condições - complexidade e naturalidade - que parece se excluírem, e que a habilidade do autor teatral deverá conciliar);
• inversão: um personagem que prepara a trama na qual ele mesmo acabará por enredar-se (velhaco trapaceado, o perseguidor vítima de sua perseguição, o ladrão roubado), ou seja, trata-se sempre de uma situação que se volta contra quem a criou;
• interferência das séries: uma situação será sempre cômica quando pertencer ao mesmo tempo a duas séries de fatos absolutamente independentes, e que possa ser interpretada simultaneamente em dois sentidos inteiramente diversos. Ex.: o qüiproquó, uma situação que apresenta ao mesmo tempo dois sentidos diferentes, um simplesmente possível: o que os atores lhe atribuem e o outro real: o que o público lhe dá. No qüiproquó, cada um dos personagens está inserido numa série de acontecimentos que lhe dizem respeito, de que ele tem a representação exata, e sobre as quais pauta as suas palavras e ações. Cada uma das séries referentes a cada personagem transcorre de maneira independente; mas defrontam-se em certo momento em condições tais que os atos e palavras constantes de uma delas possam também convir à outra. Daí o equívoco dos personagens, daí o erro; mas esse equívoco não é cômico por si mesmo; só o é porque manifesta a coincidência de duas séries independentes. A prova disso é que o autor deve constantemente aplicar-se a chamar nossa atenção para esse duplo fato: a independência e a coincidência. Ele consegue isso naturalmente ao renovar sem cessar a falsa ameaça de uma dissociação entre as duas séries que coincidem. A cada instante tudo entrará em confusão, e tudo se ajeita: isso é que faz rir, muito mais que o vaivém do nosso espírito entre duas afirmações contraditórias. E nos desperta o riso porque torna manifesto a nossos olhos a interferência de duas séries independentes, verdadeira fonte do efeito cômico;
• comicidade das palavras: a comicidade da linguagem deve corresponder, ponto por ponto, à comicidade das ações e das situações; a comicidade da linguagem não passa de projeção delas no plano das palavras:
• automatismo: obteremos uma expressão cômica ao inserir uma idéia absurda num modelo consagrado de frase (ex.: “este sabre é o dia mais belo de minha vida”; “não gosto de trabalhar entre minhas refeições”; “só Deus tem o direito de matar o seu semelhante”;
• rimo-nos sempre que nossa atenção é desviada ao aspecto físico de uma pessoa, quando esteja em causa o moral: obtém-se um efeito cômico quando se toma uma expressão no sentido próprio, enquanto era empregada no sentido figurado, ou ainda: desde que nossa atenção se concentre na materialização de uma metáfora, a idéia expressa torna-se cômica (ex.: “ele corre atrás do espírito”, dizia alguém perante Boufflers sobre uma pessoa pretensiosa. Sua resposta: “Aposto no espírito”);
• certas séries de acontecimentos podem tornar-se cômicas ou por repetição, ou por inversão, ou por interferência:
• inversão: numa comédia de Labiche, certo personagem grita ao locatário em cima, que lhe suja a varanda: “Por que você joga lixo na minha área?”, ao que o locatário responde: “Por que você põe sua área debaixo do meu lixo?”);
• interferência: trocadilho, jogos de palavras (como um desvio momentâneo da linguagem, que esqueceria por um momento a sua verdadeira missão, pretendendo por si ditar normas às coisas, em vez de sujeitar-se às normas delas);
• transposição: representa para a linguagem o que a repetição é para a comédia: obteremos um efeito cômico ao transpor a expressão natural de uma idéia para outra realidade (o solene para o familiar - paródia: “o céu começava a passar do negro ao vermelho, como uma lagosta ao cozer”; o exagero; exprimir decorosamente um idéia velhaca, referir-se a certa situação escabrosa, a certa profissão inferior ou a certa conduta vil e descrevê-las em termos de estrita respectability é, em geral, cômico, como no caso da observação de um alto funcionário a um de seus subordinados, numa peça de Gogol: “Roubas demais para um funcionário do teu nível”; a ironia; o humor; o uso de linguagens técnicas de profissões na vida cotidiana ou vice-versa);
• a linguagem só consegue efeitos risíveis porque é obra humana, modelada o mais exatamente possível nas formas do espírito humano; o rígido, o já feito, o mecânico, contrariamente ao maleável, ao continuadamente cambiante, ao vivo, o desvio contrariamente à atenção, enfim, o automatismo contrastando com a atividade livre, eis em suma o que o riso ressalta e pretende corrigir.
CAPÍTULO 3
COMICIDADE DE CARÁTER
• o cômico infiltra-se em certa forma, atitude, situação, ação palavra e gesto, mas por ter significação e alcance sociais, o cômico exprime antes de tudo certa inadaptação particular da pessoa à sociedade, ou seja, só o homem é cômico; logo, é o homem, é o caráter que primeiramente tivemos por alvo;
• só quando outra pessoa deixa de nos comover, só nesse caso pode começar a comédia: e ela começa com o que poderíamos chamar de enrijecimento contra a vida social, ou seja, é cômico quem siga automaticamente o seu caminho sem se preocupar em fazer contato com outros; o riso ocorre para corrigir o desvio e tirar a pessoa do seu sonho;
• o riso é verdadeiramente uma espécie de trote social, sempre um tanto humilhante para quem é objeto dele: ao riso mistura-se uma segunda intenção inconfessada de humilhar, e com ela, certamente, de corrigir, pelo menos exteriormente, o que leva a comédia a situar-se muito mais perto da vida real que o drama;
• rimos de defeitos, mas também podemos rir de qualidades, porque, na verdade, o que provoca o efeito cômico é a rigidez: quem se isola expõe-se ao ridículo, porque o cômico se constitui, em grande parte, desse próprio isolamento. Assim se explica que a comicidade seja muitas vezes relativa aos costumes, às idéias - sejamos francos, aos preconceitos de uma sociedade;
• o cômico dirige-se à inteligência pura; o riso é incompatível com a emoção;
• condição necessária, embora não suficiente, para que um vício se torne cômico: é preciso que ele não me comova;
• processos que o autor cômico utiliza para uma situação, mesmo séria, não seja tomada a sério:
• isolar, em meio à alma do personagem, o sentimento que se lhe atribui, e fazer dele por assim dizer um estado parasita dotado de existência independente: uma emoção é dramática, comunicativa, quando todos os harmônicos soam com a nota fundamental (por ex.: a avareza será dramática se ela compõe com o todo da personagem um quadro que me leve a compreendê-la em profundidade, ou seja, ela faria que os demais sentimentos humanos se modificassem, ao seu contato); ao contrário, na emoção que nos deixa indiferentes e que se tornará cômica, há certa rigidez que a impede de entrar em relação com o resto da alma onde ela se instala: como entrar em uníssono com uma alma que não está em uníssono consigo mesma? (p.ex.: a avareza de Harpagon, embora se torne senhora da casa, nem por isso deixa de ser uma estranha, não leva a que outras afeições, desejos e aversões se transformem ao seu contato, para comunicar novo gênero de vida);
• em vez de concentrar nossa atenção sobre os atos, a comédia a dirige sobretudo para os gestos: entende-se por gestos as atitudes, os movimentos e mesmo o discurso pelos quais um estado de alma se manifesta sem objetivo, sem proveito, pelo efeito apenas de espécie de arrumação interior; ação é intencional, ou pelo menos consciente; o gesto escapa, é automático; na ação a pessoa empenha-se toda; no gesto, uma parte isolada da pessoa se exprime, à revelia ou pelo menos destacada da personalidade total; em essência: a ação é exatamente proporcional ao sentimento que a inspira (há passagem gradual de uma ao outro, de modo que a nossa simpatia ou aversão podem deixar-se escorregar ao longo do fio que vai do sentimento ao ato e interessar-se paulatinamente); mas o gesto tem algo de explosivo, que desperta nossa sensibilidade disposta a ser acalentada, e que, lembrando-nos assim a nós mesmos, nos impede de levar as coisas a sério. Portanto, na medida em que a nossa atenção se aplique ao gesto e não ao ato, estaremos no reino da comédia. A ação é essencial no drama e acessória na comédia;
• insociabilidade do personagem, insensibilidade do espectador, eis, em suma, as duas condições essenciais da comédia, às quais acrescente-se uma terceira, implicada nas duas outras: o automatismo;
• automatismo: só é essencialmente risível o que se faz automaticamente: o personagem faz, à sua revelia, o gesto involuntário e diz a palavra inconsciente - todo desvio é cômico, e quanto mais acentuado, mais sutil será a comédia; um personagem é cômico quando existe um aspecto da sua pessoa que ele ignora, um aspecto que se furta a ele mesmo; deparamos sempre com a desatenção a si e por conseguinte a outrem, o que se confunde com o que chamamos de insociabilidade; a causa da rigidez por excelência é que nos esquecemos de olhar em torno de nós e sobretudo em nós mesmos;
• rigidez, automatismo, distração, insociabilidade, tudo isso se interpenetra, e em tudo isso consiste a comicidade de caráter;
• descrever caracteres, isto é, tipos gerais, capazes de se repetir, é a meta da alta comédia;
• como o autor cômico deve fazer para criar um aspecto de caráter idealmente cômico, cômico em si mesmo, cômico em suas origens, cômico em todas as suas manifestações: ele terá de ser:
• profundo, a fim de fornecer à comédia um alimento durável;
• superficial, para ficar no tom da comédia, invisível a quem o possua, dado que o cômico é inconsciente;
• visível a todos os demais para que produza o riso universal;
• pleno de indulgência para consigo mesmo, de modo a exibir-se sem escrúpulo;
• penoso para os demais a fim de que o reprimam sem piedade;
• corrigível imediatamente, para que não tenha sido inútil rir-se dele;
• certo de renascer sob aspectos novos, para que o riso tenha de atuar sempre, inseparável da vida social conquanto insuportável à sociedade;
• capaz, enfim, para assumir a maior variedade de formas imaginável, de se adicionar a todos os vícios e até mesmo a algumas virtudes;
• esquemas cômicos já feitos, constituídos pela própria sociedade, necessários à sociedade, dado que esta se baseia numa divisão do trabalho: ofícios, funções e profissões (comicidade profissional) cuja vaidade inclinará a converter-se em solenidade à media que a profissão exercida encerre uma dose mais elevada de charlatanismo;
• um gênero particularíssimo de absurdo que o cômico contém quando encerra um absurdo, não um absurdo qualquer, mas um absurdo determinado, que não cria a comicidade, antes, ele é que decorre dela, ou seja, o absurdo não é a causa, mas o efeito: consiste em pretender modelar as coisas por uma idéia que se tem, e não as suas idéias pelas coisas (ex.: Dom Quixote e os moinhos de vento - a idéia de gigantes inimigos, de imensos braços, já se instalara em seu espírito e se materializa nos moinhos): o absurdo cômico é da mesma natureza que o dos sonhos;
• quando o personagem cômico segue sua idéia automaticamente, acaba por pensar, falar, agir como se sonhasse.
Isaias Edson Sidney
7.4.97
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirGostei muito da postagem. Estou estudando Bergson, e a leitura me trouxe amplas reflexões, quero muito poder trocar discussões com os participantes desse grupo sobre Dramaturgia... Sou estudante de Teatro da UESB, abraços.
ResponderExcluirParabéns!
ResponderExcluirMUITO BOM!!!
ResponderExcluirMaravilhoso resumo!
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