sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O RISO - ENSAIO SOBRE A SIGNIFICAÇÃO DO CÔMICO, de HENRI BERGSON (Resumo)




O que se segue é um RESUMO da obra de Bergson. Como todo resumo, há imperfeições e lacunas, mas acredito que possa dar uma razoável ideia do pensamento do Autor.


CAPÍTULO 1




SOBRE O CÔMICO EM GERAL; COMICIDADE DAS FORMAS E DOS MOVIMENTOS; FORÇA DE EXPANSÃO DO CÔMICO


não há comicidade fora do que é propriamente humano: já se definiu o homem como “um animal que ri”, mas poderia ser definido também como animal que faz rir;

• o cômico exige algo como certa anestesia momentânea do coração para produzir todo o seu efeito. Ele se destina à inteligência pura;

• o nosso riso é sempre o riso de um grupo: não desfrutaríamos o cômico se nos sentíssemos isolados - o riso parece precisar de eco, de cumplicidade com outros galhofeiros, reais ou imaginários;

• o riso deve ter uma significação social;

• quando certo efeito cômico derivar de certa causa, quanto mais natural a julgarmos tanto maior nos parecerá o efeito cômico: rimos já do desvio que se nos apresenta como simples fato. Mais risível será o desvio que virmos surgir e aumentar diante de nós, cuja origem conhecermos e cuja história pudermos reconstituir (ex.: D. Quixote - suas ações são desvios que se ligam a uma causa conhecida e positiva: sua fascinação pelos romances de amor e cavalaria);
• o cômico é inconsciente - ele se torna invisível a si mesmo ao tornar-se visível a todos;

• a vida e a sociedade exigem atenção constantemente desperta e certa elasticidade de corpo e de espírito (tensão e elasticidade) - contrapõe-se ao gesto cômico um certo efeito de automatismo e rigidez;

automatismo, rigidez, hábito adquirido e conservado são os traços pelos quais uma fisionomia nos causa riso. Mas esse efeito ganha em intensidade quando podemos atribuir a esses caracteres uma causa profunda, e relacioná-los a certo desvio fundamental da pessoa, como se a alma se tivesse deixado fascinar, hipnotizar, pela materialidade de uma ação simples;

atitudes, gestos e movimentos do corpo humano são risíveis na exata medida em que esse corpo nos leva a pensar num simples mecanismo: imitar alguém é destacar a parte do automatismo que ele deixou introduzir-se em sua pessoa; não surpreende, portanto, que a imitação cause riso;

• o mecânico calcado no vivo:

1º) mecanismo inserido na natureza (ex.: a senhora que chegou atrasada ao eclipse e pediu para começar de novo), regulamentação automática da sociedade (ex.: o burocrata agindo como simples máquina) e a combinação de ambos, o que resulta na idéia de uma regulamentação humana impondo-se em lugar das próprias leis da natureza (“a experiência está errada”, concluiu o filósofo diante do argumento de que seus raciocínios eram contrariados pela experiência);

2º) é cômico todo incidente que chame nossa atenção para o físico de uma pessoa estando em causa o moral (orador que espirra no momento mais dramático do discurso; a imagem de uma pessoa cujo corpo incomoda);

3º) rimo-nos sempre que uma pessoa nos dê a impressão de ser uma coisa (o gordo Sancho Pança derrubado numa cobertura e jogado no ar como simples balão).

CAPÍTULO 2



COMICIDADE DE SITUAÇÕES E COMICIDADE DE PALAVRAS


a comédia é um brinquedo, brinquedo que imita a vida: acompanhemos o progresso imperceptível pelo qual a criança faz seus bonecos crescerem, lhes dá alma, e os leva a esse estado de indecisão final em que, sem deixarem de ser bonecos, apesar disso se tornaram homens;

• é cômico todo arranjo de atos e acontecimentos que nos dê inseridas uma na outra, a ilusão da vida e a sensação nítida de uma montagem mecânica:

boneco de mola: comprime-se o boneco e ele salta de novo - conflito de duas obstinações - o gato a brincar com o rato, deixando-o ir-se como por uma mola para logo a seguir o deter com a pata - certa idéia que se exprima, se reprima, uma vez mais se exprima - a repetição: numa repetição cômica de expressões, há em geral dois termos em confronto: um sentimento comprimido que se distende como uma mola, e uma idéia que se diverte em comprimir de novo o sentimento (ex.: Valère mostra a Harpagon que ele estaria errado em casar sua filha com um homem a que ela não ama. “Sem dote!”, interrompe sempre a avareza de Harpagon. E entrevemos, por trás dessa expressão que se repete automaticamente, um mecanismo de repetição montado pela idéia fixa); numa mesma pessoa, dois sentimentos contrários (p.ex.: falsidade e sinceridade) só serão cômicos se, nessa pessoa bem viva, se tornarem irredutíveis e rígidos de modo a que essa pessoa oscile de um a outro de forma mecânica, ou seja, com o mecânico ao vivo;

o fantoche a cordões: um arranjo ainda aqui mecânico em que percebemos que a personagem não tem liberdade, é um mero fantoche manipulado por outro (p.ex.: um personagem oscila entre casar ou não casar e propõe essa questão a dois outros - um contra o outro a favor do casamento);

a bola de neve ( a bola de neve que rola e aumenta de volume, soldadinhos de chumbo enfileirados uns atrás dos outros, um castelo de cartas cuidadosamente armado): um efeito que se propaga e acrescenta-se a si mesmo, de modo que a causa, insignificante na origem, chega por um progresso inevitável a certo resultado tão importante quanto inesperado; se for reversível, isto é, se o mecanismo for circular e voltar ao ponto de partida, será ainda mais risível (p.ex.: numa comédia de Labiche, um casal de solteirões velhos conhecidos, dirigem-se, cada um por sua vez, a uma mesma agência de matrimônio e depois de mil e uma dificuldades e vicissitudes, acabam se colocando um diante do outro numa entrevista; ou, ainda: um marido atormentado acredita escapar de sua mulher e da sogra pelo divórcio; casa-se de novo; e as tramas combinadas do divórcio e do casamento acabam levando-o à antiga mulher, mas em situação mais grave, pois agora ela é sua sogra);

• por que rimos desse dispositivo mecânico: o mecanismo rígido que deparamos vez por outra, como um intruso, na continuidade viva das coisas humanas tem para nós um interesse particularíssimo, porque é como um desvio da vida, o movimento sem a vida, exprimindo um imperfeição individual ou coletiva que exige imediata correção e o riso é essa própria correção - o riso é certo gesto social, que ressalta e reprime certo desvio especial dos homens e dos acontecimentos;

vida: evolui no tempo (envelhece sem cessar, não se repete) e no espaço (exibe elementos que não podem pertencer simultaneamente a dois organismos diferentes); os caracteres exteriores (reais ou aparentes) que distinguem o vivo do simples mecânico são a mudança contínua de aspecto, a irreversibilidade dos fenômenos e a individualidade perfeita de uma série encerrada em si mesma. Se tomarmos o avesso disso, teremos três processos que chamaremos de REPETIÇÃO, INVERSÃO e INTERFERÊNCIA DE SÉRIES:

repetição: uma combinação de circunstâncias que se repete exatamente em várias ocasiões, contrastando vivamente com o curso cambiante da vida - será tanto mais cômica a repetição (ou coincidência) quanto mais complexa for a cena repetida e quanto mais natural for representada (duas condições - complexidade e naturalidade - que parece se excluírem, e que a habilidade do autor teatral deverá conciliar);

inversão: um personagem que prepara a trama na qual ele mesmo acabará por enredar-se (velhaco trapaceado, o perseguidor vítima de sua perseguição, o ladrão roubado), ou seja, trata-se sempre de uma situação que se volta contra quem a criou;

interferência das séries: uma situação será sempre cômica quando pertencer ao mesmo tempo a duas séries de fatos absolutamente independentes, e que possa ser interpretada simultaneamente em dois sentidos inteiramente diversos. Ex.: o qüiproquó, uma situação que apresenta ao mesmo tempo dois sentidos diferentes, um simplesmente possível: o que os atores lhe atribuem e o outro real: o que o público lhe dá. No qüiproquó, cada um dos personagens está inserido numa série de acontecimentos que lhe dizem respeito, de que ele tem a representação exata, e sobre as quais pauta as suas palavras e ações. Cada uma das séries referentes a cada personagem transcorre de maneira independente; mas defrontam-se em certo momento em condições tais que os atos e palavras constantes de uma delas possam também convir à outra. Daí o equívoco dos personagens, daí o erro; mas esse equívoco não é cômico por si mesmo; só o é porque manifesta a coincidência de duas séries independentes. A prova disso é que o autor deve constantemente aplicar-se a chamar nossa atenção para esse duplo fato: a independência e a coincidência. Ele consegue isso naturalmente ao renovar sem cessar a falsa ameaça de uma dissociação entre as duas séries que coincidem. A cada instante tudo entrará em confusão, e tudo se ajeita: isso é que faz rir, muito mais que o vaivém do nosso espírito entre duas afirmações contraditórias. E nos desperta o riso porque torna manifesto a nossos olhos a interferência de duas séries independentes, verdadeira fonte do efeito cômico;

comicidade das palavras: a comicidade da linguagem deve corresponder, ponto por ponto, à comicidade das ações e das situações; a comicidade da linguagem não passa de projeção delas no plano das palavras:

automatismo: obteremos uma expressão cômica ao inserir uma idéia absurda num modelo consagrado de frase (ex.: “este sabre é o dia mais belo de minha vida”; “não gosto de trabalhar entre minhas refeições”; “só Deus tem o direito de matar o seu semelhante”;

• rimo-nos sempre que nossa atenção é desviada ao aspecto físico de uma pessoa, quando esteja em causa o moral: obtém-se um efeito cômico quando se toma uma expressão no sentido próprio, enquanto era empregada no sentido figurado, ou ainda: desde que nossa atenção se concentre na materialização de uma metáfora, a idéia expressa torna-se cômica (ex.: “ele corre atrás do espírito”, dizia alguém perante Boufflers sobre uma pessoa pretensiosa. Sua resposta: “Aposto no espírito”);

• certas séries de acontecimentos podem tornar-se cômicas ou por repetição, ou por inversão, ou por interferência:

inversão: numa comédia de Labiche, certo personagem grita ao locatário em cima, que lhe suja a varanda: “Por que você joga lixo na minha área?”, ao que o locatário responde: “Por que você põe sua área debaixo do meu lixo?”);

interferência: trocadilho, jogos de palavras (como um desvio momentâneo da linguagem, que esqueceria por um momento a sua verdadeira missão, pretendendo por si ditar normas às coisas, em vez de sujeitar-se às normas delas);

transposição: representa para a linguagem o que a repetição é para a comédia: obteremos um efeito cômico ao transpor a expressão natural de uma idéia para outra realidade (o solene para o familiar - paródia: “o céu começava a passar do negro ao vermelho, como uma lagosta ao cozer”; o exagero; exprimir decorosamente um idéia velhaca, referir-se a certa situação escabrosa, a certa profissão inferior ou a certa conduta vil e descrevê-las em termos de estrita respectability é, em geral, cômico, como no caso da observação de um alto funcionário a um de seus subordinados, numa peça de Gogol: “Roubas demais para um funcionário do teu nível”; a ironia; o humor; o uso de linguagens técnicas de profissões na vida cotidiana ou vice-versa);

• a linguagem só consegue efeitos risíveis porque é obra humana, modelada o mais exatamente possível nas formas do espírito humano; o rígido, o já feito, o mecânico, contrariamente ao maleável, ao continuadamente cambiante, ao vivo, o desvio contrariamente à atenção, enfim, o automatismo contrastando com a atividade livre, eis em suma o que o riso ressalta e pretende corrigir.

CAPÍTULO 3




COMICIDADE DE CARÁTER


• o cômico infiltra-se em certa forma, atitude, situação, ação palavra e gesto, mas por ter significação e alcance sociais, o cômico exprime antes de tudo certa inadaptação particular da pessoa à sociedade, ou seja, só o homem é cômico; logo, é o homem, é o caráter que primeiramente tivemos por alvo;

• só quando outra pessoa deixa de nos comover, só nesse caso pode começar a comédia: e ela começa com o que poderíamos chamar de enrijecimento contra a vida social, ou seja, é cômico quem siga automaticamente o seu caminho sem se preocupar em fazer contato com outros; o riso ocorre para corrigir o desvio e tirar a pessoa do seu sonho;

o riso é verdadeiramente uma espécie de trote social, sempre um tanto humilhante para quem é objeto dele: ao riso mistura-se uma segunda intenção inconfessada de humilhar, e com ela, certamente, de corrigir, pelo menos exteriormente, o que leva a comédia a situar-se muito mais perto da vida real que o drama;

• rimos de defeitos, mas também podemos rir de qualidades, porque, na verdade, o que provoca o efeito cômico é a rigidez: quem se isola expõe-se ao ridículo, porque o cômico se constitui, em grande parte, desse próprio isolamento. Assim se explica que a comicidade seja muitas vezes relativa aos costumes, às idéias - sejamos francos, aos preconceitos de uma sociedade;

o cômico dirige-se à inteligência pura; o riso é incompatível com a emoção;

• condição necessária, embora não suficiente, para que um vício se torne cômico: é preciso que ele não me comova;

• processos que o autor cômico utiliza para uma situação, mesmo séria, não seja tomada a sério:

isolar, em meio à alma do personagem, o sentimento que se lhe atribui, e fazer dele por assim dizer um estado parasita dotado de existência independente: uma emoção é dramática, comunicativa, quando todos os harmônicos soam com a nota fundamental (por ex.: a avareza será dramática se ela compõe com o todo da personagem um quadro que me leve a compreendê-la em profundidade, ou seja, ela faria que os demais sentimentos humanos se modificassem, ao seu contato); ao contrário, na emoção que nos deixa indiferentes e que se tornará cômica, há certa rigidez que a impede de entrar em relação com o resto da alma onde ela se instala: como entrar em uníssono com uma alma que não está em uníssono consigo mesma? (p.ex.: a avareza de Harpagon, embora se torne senhora da casa, nem por isso deixa de ser uma estranha, não leva a que outras afeições, desejos e aversões se transformem ao seu contato, para comunicar novo gênero de vida);

em vez de concentrar nossa atenção sobre os atos, a comédia a dirige sobretudo para os gestos: entende-se por gestos as atitudes, os movimentos e mesmo o discurso pelos quais um estado de alma se manifesta sem objetivo, sem proveito, pelo efeito apenas de espécie de arrumação interior; ação é intencional, ou pelo menos consciente; o gesto escapa, é automático; na ação a pessoa empenha-se toda; no gesto, uma parte isolada da pessoa se exprime, à revelia ou pelo menos destacada da personalidade total; em essência: a ação é exatamente proporcional ao sentimento que a inspira (há passagem gradual de uma ao outro, de modo que a nossa simpatia ou aversão podem deixar-se escorregar ao longo do fio que vai do sentimento ao ato e interessar-se paulatinamente); mas o gesto tem algo de explosivo, que desperta nossa sensibilidade disposta a ser acalentada, e que, lembrando-nos assim a nós mesmos, nos impede de levar as coisas a sério. Portanto, na medida em que a nossa atenção se aplique ao gesto e não ao ato, estaremos no reino da comédia. A ação é essencial no drama e acessória na comédia;

insociabilidade do personagem, insensibilidade do espectador, eis, em suma, as duas condições essenciais da comédia, às quais acrescente-se uma terceira, implicada nas duas outras: o automatismo;

automatismo: só é essencialmente risível o que se faz automaticamente: o personagem faz, à sua revelia, o gesto involuntário e diz a palavra inconsciente - todo desvio é cômico, e quanto mais acentuado, mais sutil será a comédia; um personagem é cômico quando existe um aspecto da sua pessoa que ele ignora, um aspecto que se furta a ele mesmo; deparamos sempre com a desatenção a si e por conseguinte a outrem, o que se confunde com o que chamamos de insociabilidade; a causa da rigidez por excelência é que nos esquecemos de olhar em torno de nós e sobretudo em nós mesmos;

• rigidez, automatismo, distração, insociabilidade, tudo isso se interpenetra, e em tudo isso consiste a comicidade de caráter;

• descrever caracteres, isto é, tipos gerais, capazes de se repetir, é a meta da alta comédia;

• como o autor cômico deve fazer para criar um aspecto de caráter idealmente cômico, cômico em si mesmo, cômico em suas origens, cômico em todas as suas manifestações: ele terá de ser:

profundo, a fim de fornecer à comédia um alimento durável;

superficial, para ficar no tom da comédia, invisível a quem o possua, dado que o cômico é inconsciente;

visível a todos os demais para que produza o riso universal;

pleno de indulgência para consigo mesmo, de modo a exibir-se sem escrúpulo;

penoso para os demais a fim de que o reprimam sem piedade;

corrigível imediatamente, para que não tenha sido inútil rir-se dele;

certo de renascer sob aspectos novos, para que o riso tenha de atuar sempre, inseparável da vida social conquanto insuportável à sociedade;

• capaz, enfim, para assumir a maior variedade de formas imaginável, de se adicionar a todos os vícios e até mesmo a algumas virtudes;

• esquemas cômicos já feitos, constituídos pela própria sociedade, necessários à sociedade, dado que esta se baseia numa divisão do trabalho: ofícios, funções e profissões (comicidade profissional) cuja vaidade inclinará a converter-se em solenidade à media que a profissão exercida encerre uma dose mais elevada de charlatanismo;

• um gênero particularíssimo de absurdo que o cômico contém quando encerra um absurdo, não um absurdo qualquer, mas um absurdo determinado, que não cria a comicidade, antes, ele é que decorre dela, ou seja, o absurdo não é a causa, mas o efeito: consiste em pretender modelar as coisas por uma idéia que se tem, e não as suas idéias pelas coisas (ex.: Dom Quixote e os moinhos de vento - a idéia de gigantes inimigos, de imensos braços, já se instalara em seu espírito e se materializa nos moinhos): o absurdo cômico é da mesma natureza que o dos sonhos;

• quando o personagem cômico segue sua idéia automaticamente, acaba por pensar, falar, agir como se sonhasse.

Isaias Edson Sidney
7.4.97

5 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Gostei muito da postagem. Estou estudando Bergson, e a leitura me trouxe amplas reflexões, quero muito poder trocar discussões com os participantes desse grupo sobre Dramaturgia... Sou estudante de Teatro da UESB, abraços.

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