segunda-feira, 30 de setembro de 2024

TEATRO INFANTIL: DAS MARIONETES AO TEATRO DE SOMBRAS

 Cada tipo de boneco tem suas características específicas e exige sua linguagem dramática especial

As marionetes são movimentadas por cordões ou fios que vão dos membros para uma cruzeta de controle na mão do manipulador. Na foto, Nado Rohrmann artista que trabalha com marionetes há 38 anos.


O teatro de bonecos é uma das expressões artísticas mais antigas de que se tem notícias. Conta-se sua origem desde a mais remota antiguidade. Estudos apontam que, na Pré-História, os homens se divertiam com suas sombras, movimentando-se nas paredes das cavernas. Inclusive o teatro de dedos, em que as mães entretinham seus filhos movendo as mãos e descobrindo diversas sombras com silhuetas interessantes.

Egípcios, gregos e romanos, todos encenavam espetáculos com bonecos articulados. Alguns com conotação puramente artística, outros com conotações religiosas, principalmente na Idade Média. Contudo, mais tarde, estes bonecos eram utilizados para fazerem críticas às autoridades religiosas. Por isso, os intérpretes foram duramente perseguidos.

“Mímica, teatro de sombras, fantoches, marionetes, teatro com os dedos e teatro de recortes são atividades artísticas que se aproximam do teatro e que as crianças apreciam muito”, afirma a professora Maria Cortes, do curso Teatro na Educação Infantil, elaborado pelo CPT – Centro de Produções Técnicas.

Os bonecos manipulados por fios – marionetes – surgiram logo após a Primeira Guerra e, em pouco tempo, esta novidade se espalhou pelo mundo, principalmente, nas escolas. Foi no século XVI que os bonecos começaram a ser utilizados no Brasil. No Nordeste, estes bonecos tiveram melhor aceitação, onde até hoje constituem tradição, principalmente, os mamulengos de Pernambuco.

Há uma grande variedade de bonecos. Cada tipo tem suas características específicas e exige sua linguagem dramática especial. Certos tipos só se desenvolvem sob determinadas condições culturais e geográficas. Os tipos mais importantes são assim classificados em:


Fantoches

Louro José e os cavalinhos do Fantastico (foto TV Globo)

São bonecos que possuem corpo de tecido, vazio, que o manipulador veste na mão. Este encaixa os dedos na cabeça e nos braços do boneco para movimentá-los. A figura é vista só da cintura para cima e, geralmente , não tem pernas. A cabeça pode ser feita de madeira, papier-maché, ou borracha, as mãos são de madeira ou de feltro. O modo de operação mais comum é usar o dedo indicador para a cabeça e o polegar e o dedo máximo para os braços. Para apresentá-los, é interessante que o manipulador esconda seu corpo, deixando à mostra apenas o boneco. Existem estruturas ideais para a encenação destes bonecos, que se assemelha a uma pequena casa com tamanho suficiente para comportar duas ou três pessoas no seu interior.

Marionetes
(Bernardo Rohrmann manipula o marionete - foto de Pedro Cunha - G1)

Ao contrário dos anteriores, estes bonecos são controlados por cima. Normalmente, são movimentados por cordões ou fios que vão dos membros para uma cruzeta de controle na mão do manipulador. O movimento é feito por meio da inclinação ou oscilação da cruzeta de controle, mas os fios são puxados um a um, quando se deseja um determinado movimento. Uma marionete simples pode chegar a ter nove fios: um em cada perna, um em cada mão, um em cada ombro, um em cada orelha (para mexer a cabeça) e um na base da coluna para fazer o boneco se inclinar. Existem bonecos, encontrados na Europa, capazes de imitar, praticamente, todos os movimentos humanos ou de animais.


Bonecos de vara

(Mamulengo de vara)

São bonecos manipulados por baixo, mas de tamanho grande, sustentadas por uma vara que atravessa todo o corpo, até a cabeça. Outras varas mais finas podem ser usadas para movimentar as mãos e, se necessário, as pernas. Em geral, o boneco de vara é adequado a peças de ritmo lento e solene, mas são muitas as suas potencialidades e grande a sua variedade. Porém é muito exigente quanto ao número de manipulares, exigindo sempre uma pessoa por boneco, e às vezes duas ou três para uma única figura.



Teatro de sombras

(Teatro de sombra. Foto Fabiana Lazzari)

É um estilo muito próximo às projeções dos homens das cavernas. É uma projeção de sombras em um telão semitransparente. São cortadas silhuetas de figuras de bichos, de plantas, de animais, entre outros, em materiais opacos, papéis de textura mais grossa, como papel cartão, papelão, ou outro material alternativo que exerça a mesma função de firmeza. Elas podem ser operadas por baixo, com varas, como no teatro javanês; com varas que ficam em ângulo reto com a tela, como no teatro chinês e grego; ou por meio de cordões escondidos atrás dos bonecos como nas sombras chinesas. O teatro de sombras não precisa se limitar a figuras planas. Ele pode lançar mão também de figuras tridimensionais, ou mesmo, fazendo figuras com as mãos.

Para causar o efeito de sombras, é necessário que o espaço escolhido como palco para a encenação seja feito com base em uma fonte de luz colocada atrás, que pode ser uma lâmpada, uma vela, ou até mesmo, a luz do sol. O teatro de sombras é uma arte de grande delicadeza e desenvolve, de maneira significativa, a imaginação da plateia, seja composta de adultos ou crianças. Para dar mais clima às cenas, é interessante colocar um fundo musical e dar movimento aos personagens.



Dedoches
(Dedoches)

O dedoche é um boneco muito semelhante ao fantoche, com a diferença que é no tamanho dos dedos. Pode ser feito com os mesmos materiais que utilizamos nos fantoches: feltro, tecido ou outro material alternativo. A criatividade é o mais importante em recursos como estes. Outra possibilidade é fazer dos dedos os próprios personagens, ou seja, desenhar nos dedos: olhos, boca, nariz e encenar as mais divertidas histórias.


Mamulengos
(Mamulengos)

Esses bonecos são encontrados em Pernambuco. As histórias feitas com mamulengos são quase sempre improvisadas, vão tomando forma na mão do mestre durante o espetáculo. As apresentações acontecem sempre com muita dança e muita música ao vivo. Um espetáculo pode contar com a ajuda de um contramestre nas cenas com muitos bonecos. Como as apresentações são encenadas na rua, os bonecos e cenários chamados de barraca, torda, empanada ou tenda são dobráveis e fáceis de transportar. A cabeça do Mamulengo é entalhada no mulungu, uma madeira leve e resistente, e o corpo é feito com tecidos estampados e de cores fortes. Na mala portátil do mestre: boi, cobra, um herói (Benedito), sua namorada, um capitão ou coronel, um padre e um diabo, personagens típicos desse tipo de encenação.


Todos estes bonecos, quando utilizados nas escolas, orientados pelo professor, tornam-se valiosos instrumentos, no que se refere à linguagem oral e escrita, pois, assim que um boneco está pronto, a criança sente o desejo de animá-lo e ao tentar manipulá-lo, estimulada pela novidade, junta a palavra ao movimento.



Fonte:

Autora: Andréa Oliveira


quarta-feira, 18 de setembro de 2024

A CATÁSTROFE DO SUCESSO: TENNESSE WILLIAMS


A CATÁSTROFE DO SUCESSO

Tennessee Williams


Tradução: Léo Gilson Ribeiro

Marlon Brando e Jessica Tandy - Um bonde chamado desejo


Crítico da sociedade americana com profundo conhecimento de causa, Tennessee Williams publicou este pequeno ensaio no New York Times logo depois de confirmada a sua condição de maior dramaturgo do país, quando da estréia de A Streetcar named Desire. Posteriormente, o ensaio se transformou em prefácio às edições de seu primeiro sucesso, The Glass Menagerie.

Este ensaio, que se encontra na edição brasileira de À Margem da Vida.

Este inverno assinalou o terceiro aniversário da estréia, em Chicago, de À Margem da Vida, um evento que pôs término a uma parte de minha vida e começou outro tão diferente do precedente em todas as circunstancias externas quanto será fácil imaginar. Fui arrancado de meu quase anonimato e atirado aos píncaros de uma fama repentina e, do precário aluguel de quartos mobiliados em várias regiões do país, fui trasladado para um apartamento de um hotel de primeira classe em Manhattan. Minha experiência não foi única, pois o sucesso muitas vezes já irrompeu, da mesma forma abrupta, na vida de muitos americanos. A história de Cinderela é nosso mito nacional favorito, a pedra fundamental da indústria cinematográfica, se não da própria Democracia. Eu já a vira representada na tela tantas vezes que estava agora inclinado a recebê-la com um bocejo de enfado, não com descrença mas com a atitude de quem desse de ombros, exclamando: "Que bem me importa!" Qualquer pessoa dotada de dentes e cabelos tão lindos como a protagonista cinematográfica de tal história tinha, por força, que se divertir a valer, fosse como fosse. Você podia apostar seu último dólar e todo o chá da China em que aquela estrela nunca seria vista, viva ou morta, em qualquer tipo de reunião que exigisse um mínimo de consciência social.

Não, minha experiência não era excepcional, mas por outro lado não era tampouco comum e caso você esteja disposto a aceitar a tese um tanto eclética de que eu não escrevera tendo em mente tal experiência - e há muita gente não disposta a crer que um dramaturgo possa estar interessado em outra coisa que não seja o sucesso popular - talvez haja certa razão para compararmos estas duas fases de minha vida.

A vida que levara antes de atingir esse sucesso de público era do tipo que exigia resistência e tenacidade, que me fazia agarrar-me à superfície cheia de arestas que me feriam e me obrigavam a prender-me firmemente, com unhas e dentes, a cada centímetro de pedra colocada mais alto que a precedente - mas era uma vida substancialmente boa porque era do tipo para o qual o organismo humano é criado.

Eu só me dei conta de quanta energia vital eu despendera naquela luta quando esta cessou. Encontrei-me então num planalto, com meus braços ainda se agitando no ar e meus pulmões sorvendo sofregamente um ar que já não oferecia resistência. Isto era a segurança, afinal.

Sentei-me e olhei a meu redor e de repente me senti muito deprimido. Pensei comigo mesmo: não é nada, é só o período de adaptação. Amanhã de manhã acordarei neste hotel de luxo, pairando sobre o ruído discreto que sobe de um bulevar dos quarteirões elegantes do East Side e então apreciarei seu requinte e mergulharei em seu conforto, consciente de que cheguei ao nosso conceito americano do Olimpo. Amanhã de manhã, quando eu olhar para este sofá de cetim verde, me apaixonarei por ele. É só agora, temporariamente, que aquele cetim verde me dá a impressão de limo em água estagnada.

Mas na manhã seguinte o sofazinho inofensivo parecia ainda mais repugnante do que na noite anterior e eu já começava a engordar demais para usar um terno de 125 dólares que um conhecido elegante escolhera para mim. Na suíte que eu ocupava, objetos começaram a quebrar-se acidentalmente. Um braço saiu do sofá. Queimaduras de cigarro apareciam na superfície brilhante dos móveis. Eu deixava as janelas abertas e uma vez uma chuvarada inundou a suíte. Mas a empregada sempre endireitava tudo e a paciência do gerente do hotel era inextinguível. Festas que duravam até a madrugada não o ofendiam seriamente. Só uma bomba de demolição, parecia-me, podia incomodar meus vizinhos.

Eu recebia minhas refeições no apartamento. Mas até isso também tinha seu quê de desencanto. No tempo que decorria entre o momento em que eu escolhia o jantar pelo telefone e o momento em que ele entrava em meu quarto num carrinho, como um cadáver transportado numa mesa de rodas de borracha, eu perdia todo interesse por ele. Uma vez pedi um bife de filé e um sundae de chocolate, mas tudo estava disfarçado tão habilmente na mesa que confundi a cobertura de chocolate com o molho de carne e a derramei sobre o bife.

É claro que tudo isto era só o aspecto mais trivial de um descolocamento espiritual que começou a manifestar de formas muito mais perturbadoras. Logo notei que comecei a ficar indiferente às pessoas. Senti-me presa de uma onda de cinismo. As conversas que eu ouvia me pareciam todas gravadas há muitos anos e tocadas de novo num toca-disco. Parecia que a sinceridade e a bondade tinham desaparecido da voz dos meus amigos. Suspeitei que fossem hipócritas. Parei de telefonar-lhes, parei de vê-los. Não tinha mais paciência com o que me parecia ser os sintomas de uma adulação idiota. Fiquei tão saturado de ouvir gente dizer "adorei sua peça” que já nem podia mais agradecer. Eu me engasgava com aquelas palavras e virava as costas grosseiramente à pessoa geralmente sincera que as dissera. Já não sentia orgulho pela peça em si, ao contrário, comecei a enjoar dela, talvez porque me sentia demasiado morto por dentro para poder escrever oura. Eu caminhava como um zumbi, um morto conduzido pelos meus próprios pés. Eu sabia disso, mas não contava então com amigos em quem confiasse o suficiente para levá-los para um canto e contar-lhes o que me estava acontecendo. Esta situação estranha persistiu durante três meses, até quase fins da primavera, quando decidi submeter-me a outra operação na vista, principalmente devido ao pretexto que ela me oferecia de retirar-me do mundo detrás de uma máscara de gaze. Era já minha quarta operação na vista e talvez eu deva explicar que eu sofria há uns cinco anos de uma catarata no olho esquerdo que exigia uma série de operações torturantes e finalmente uma operação no músculo do olho (ainda tenho esse olho, esclareço). Bem, a máscara de gaze teve sua serventia. Enquanto eu estava repousando no hospital, os amigos, que abandonara ou insultara de uma forma ou de outra, começaram a visitar-me e agora que eu jazia em meio a escuridão e as cores de suas vozes pareciam ter mudado. Ou melhor: aquela mutação desagradável que eu suspeitara antes desaparecera no presente e elas soavam agora como sempre nos dias saudosos de minha obscuridade perdida. Novamente eu as reconhecia como sendo vozes sinceras e bondosas, animadas por um tom inconfundível de verdade e pela virtude da compreensão que me fizera buscá-las desde o início. No tocante a minha visão física, essa ultima operação tinha tido resultados só relativamente bons (embora me tivesse deixado com uma pupila aparentemente preta na posição devida ou quase) mas em outro sentido figurado da palavra, ela servira a um propósito muito mais profundo. Quando foi retirada a máscara de gaze, encontrei-me readaptado ao mundo. Deixei o apartamento elegante do hotel de luxo, guardei na mala meus papéis e alguns pertences e parti para o México, um país telúrico em que se podem esquecer rapidamente as falsas dignidades e as vaidades impostas pelo sucesso, um país em que vagabundos inocentes como crianças enrolam-se para dormir nas calçadas e as vozes humanas, principalmente quando a linguagem em que falam não é familiar a nossos ouvidos, parecem-nos suaves como o gorjeio dos pássaros. Meu "eu" público, aquele artifício de espelhos sobrepostos não existia aqui, e, portanto eu voltava a meu "eu" natural. Depois, como um ato final de restauração espiritual, permaneci durante algum tempo em Chapala, para trabalhar numa peça chamada A Partida de Pôquer, que se tornaria mais tarde Um Bonde Chamado Desejo(*). É só no seu trabalho que um artista pode encontrar a realidade e a satisfação, pois o mundo ambiente, real, é menos intenso que o mundo de sua invenção e consequentemente sua vida, sem recorrer a desordens violentas, não lhe parece muito importante. A condição verdadeira de vida para um artista é aquela em que seu trabalho é não só conveniente, mas também inevitável.

Para mim um lugar conveniente para trabalhar é um lugar distante, em meio a estranhos, onde eu possa dar umas braçadas. Mas a vida deve exigir um mínimo de esforço de nossa parte. Você não deve ter gente demais a servi-lo, ao contrário: você devia fazer sozinho a maioria das coisas. O serviço oferecido pelos hotéis é embaraçoso. As empregadas, os garçons, os boys e os porteiros etc. são as pessoas mais embaraçosas do mundo porque continuamente estão a recordar-nos as iniquidades que nós aceitamos como coisas certas. O quadro de uma velhinha ofegante que carrega com enorme esforço um balde pesado d'água por um corredor de hotel para limpar a imundice de um hóspede bêbado e cheio de privilégios sociais é um quadro que me faz ficar doente e oprime meu coração, fazendo-o murchar de vergonha deste mundo, em que essa situação é não só tolerada mas considerada como a prova dos nove de que o mecanismo da Democracia está funcionando devidamente, sem interferência de cima ou de baixo. Ninguém deveria ter que limpar a imundice de outros neste mundo. É intoleravelmente horrível para ambas as pessoas, mas talvez pior ainda para quem recebe esse tipo de serviço. Eu fui tão corrompido quanto qualquer outra pessoa pelo número vastíssimo de serviços humilhantes que nossa sociedade se acostumou a esperar e do qual ela depende. Mas nós devíamos fazer tudo por nós mesmos ou deixar que as máquinas o fizessem por nós, a gloriosa tecnologia que garantem ser o facho de luz do mundo futuro. Somos como um homem que comprou uma quantidade enorme de equipamento para acampar, que tem a canoa e a barraca, as linhas de pescar e o machado, os fuzis e os lençóis e os cobertores, mas que agora, que todos os preparativos e providências estão empilhados, por mão de perito, uns sobre os outros, sente-se de repente demasiado tímido para iniciar a jornada e fica-se onde estava ontem e antes de ontem e antes e antes, olhando com desconfiança, através das cortinas de renda branca, para o céu claro de suspeita. Nossa grandiosa tecnologia é uma oportunidade, que Deus nos enviou, para gozarmos da aventura e do progresso que temos medo de arriscar. Nossas ideias e nossos ideais continuam sendo exatamente os mesmos, no mesmo ponto em que os deixamos, três séculos atrás. Não, desculpe! Já ninguém mais se sente seguro bastante para sequer afirmá-los. Esta foi uma digressão longa, partida de um tema pequeno para um imenso, que eu não tinha intenção, originalmente, de fazer, por isso voltemos ao que eu estava dizendo antes. O que venho afirmando é uma simplificação extrema. Ninguém escapa assim tão facilmente da sedução de uma maneira de viver sibariticamente. Você não pode arbitrariamente dizer a si mesmo, de um momento para o outro: agora vou continuar minha vida como ela era antes desta coisa, o Sucesso, me acontecer. Mas logo que você apreender a vacuidade de uma vida sem lutas você estará equipado com os meios básicos de salvação. Logo que você souber que isto é verdade, que o coração do ser humano, seu corpo e seu cérebro são forjados numa fornalha de brasas vivas especificamente para o propósito do conflito, do choque (a luta criadora), e que uma vez desaparecendo esse conflito o homem é uma mera espadinha de criança, boa para cortar margaridas, que não é a privação, mas sim o luxo, o lobo mau, e que os dentes agudos do lobo são formados pelas vaidadezinhas e indolências pequeninas que constituem o legado do Sucesso - então, de posse desta certeza, você está pelo menos apto a saber onde reside o verdadeiro perigo. Você sabe, então, que o "alguém" público que você é quando "tem um nome" é uma ficção criada por espelhos e que o único alguém digno de você ser é o seu "eu" solitário, não visto pelos demais, que existiu desde a sua primeira respiração e que é a soma de todas as suas ações e, portanto está sempre num estado de eterno devenir, moldado pela sua própria vontade - sabendo essas coisas, você poderá sobreviver até à catástrofe do Sucesso! Nunca é tarde demais, a menos que você abrace a deusa-cadela, a fama, como William James a alcunhou, com os braços abertos e ache em seus abraços sufocantes exatamente aquilo que o menininho inquieto dentro de você, com saudades de casa, queria: proteção absoluta e uma vida sem sacrifício e esforços de espécie alguma. A segurança é uma espécie de morte, creio, e pode atingi-lo numa enxurrada de cheques de direitos autorais, junto a uma piscina em forma de rim em Beverly Hills ou em qualquer outro lugar que esteja divorciado das condições que tornaram você um artista, se é isso que você é ou foi ou quis ser. Pergunte a qualquer pessoa que já passou pelo tipo de sucesso de que estou falando. Para que serve? Provavelmente para obter uma resposta honesta você terá que lhe dar uma injeção de soro da verdade, mas a palavra que ele emitirá finalmente, com um gemido, não pode ser publicada em publicações refinadas.

Então o que nos serve, afinal? O interesse obsessivo pelas vicissitudes humanas, além de uma certa dose de compaixão e de convicção moral, que pela primeira vez tornou a experiência de viver algo que deve ser traduzido em pigmento, música, movimentos corpóreos ou poesia ou prosa ou qualquer coisa dinâmica e expressiva... isso é que lhe será útil se é que você tem objetivos sérios. William Saroyan escreveu uma grande peça sobre esse tema, o de que a pureza de coração é o único sucesso que vale a pena termos. "Durante sua vida - viva!"

A vida é curta e não volta nunca mais.

Ela está fluindo furtivamente agora, enquanto eu escrevo isto e enquanto você me lê e o pêndulo do relógio, ao oscilar, repete somente:

"Nunca-mais, nunca-mais, nunca-mais", a menos que você se lance de coração, em oposição a ele.


Fonte:

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

SERGIO ZLOTNIC ESCREVEU: ANAMNESE

 ANAMNESE

(Daniela Duarte em As folhas de cedro)

1 – Na Psicanálise, uma dificuldade clínica é descobrir que caminhos traçar quando estamos diante daqueles pacientes muito trancados, muito engessados, muito defendidos, que nem sequer cometem atos falhos (que, lembremos, são involuntários e inevitáveis).

Pois a peculiaridade do sujeito, a sua marca, a sua cara, o seu rosto, só se dá a ver no erro, no descarrilamento, na perda de controle, na falha! Quando então ele mostra o que não pretendia ou o que não desejaria.

Noutros casos, igualmente difíceis, o paciente permanece sempre em guarda, apegado ao nível do puro relato, incapaz de transformar seus traços de caráter em sintoma. O sintoma é caleidoscópico, aponta saídas, desliza, se transforma, dialoga com o entorno e com seu tempo. Os traços de caráter são cristalizações surdas e mudas e impermeáveis.

O relato é avesso às livres associações: ele vai pelo asfalto, num caminho geométrico! O paciente do relato se segura com freio de mão puxado para impedir a eclosão de qualquer performatividade. A não ser que considerássemos o próprio relato – aprisionado no terno e na gravata dos “fatos efetivamente ocorridos” –, ele mesmo uma performance branca, cuja função estaria em esconder, e não revelar. Na sua pseudonarratividade, o paciente do relato narra apenas seu medo de narrar!

Por preguiça, temos sede de absoluto. Desejamos respostas! A história oficial da própria subjetividade é repetida à exaustão por aqueles que se apavoram com a verdade da história extraoficial dos afetos, esta que é sempre úmida, instável, inexata, cambiante, flexível, provisória, relativa, fugidia… A versão extraoficial dá trabalho!

Talvez este fato seja uma das razões pelas quais a palavra saúde é, muitas vezes, estranha às construções psicanalíticas. As noções de saúde se vinculam à palavra “conserto”. Já a ideia de doença se conecta com a palavra “concerto”. Conhecer os desvios particulares de cada pessoa é o que interessa no consultório: a loucura de cada um.

Pois esse viés (de cada um) revela um modo de interpretar a realidade. Revela os esforços gauches e comoventes que cada pessoa improvisou para se entender no mundo, na sua dolorosa liberdade e solidão. O modo com que cada um constrói e interpreta o universo de acordo com suas condições, inclinações, suas sinas, desejos, limitações…

E mais! O divórcio do sujeito consigo mesmo se dá a ver justamente nos tropeços: é dali que ganham visibilidade as vozes dissonantes e contraditórias que habitam um mesmo ser…

2 – Na linguagem médica, a anamnese é o procedimento para extrair informações relevantes do paciente. Esse é um processo de ego, em que não há lugar para divagações. São dados históricos objetivos que o especialista quer recolher do paciente para chegar a um diagnóstico. É um relato o que o médico espera e deseja. Nada de exegeses! Poder de síntese é o que impera.

Diferentemente da posição da medicina, utilizando um método antagônico, na psicanálise é a associação livre que vigora. A atenção do paciente e do psicanalista flutua livremente, visitando o que for que lhe apeteça, ao sabor do acaso. Vale tudo, de bananas a figos, de um abajur a uma toalha, carne moída a farofa, fiapo de lembrança, fragmento de sonho… Irrelevâncias desconectadas e espalhadas na dispersão.

Também no teatro, nos processos criativos, de pesquisa e investigação, o elenco e toda a equipe se abandonam a esta atenção relaxada – afastada da simples compilação de informações.

O artista, em geral, parece prezar as associações livres de preferência aos procedimentos ligados à anamnese. Distrair-se é charme no mundo das artes, enquanto valorizar excessivamente o foco fica relegado a outras profissões menos glamorosas (e mais obsessivas).

Isso é uma estereotipia, claro! Pois mesmo na fase de levantamento de dados e de informações de qualquer pesquisa no campo das artes, os aspectos apolíneos e cartesianos e cronológicos do processo têm que comparecer, para serem adiante devorados, deglutidos, transformados numa massa dionisíaca, cuja temporalidade passa a ser a de kairós.

Da mesma forma, inversamente, um médico competente (e toda a ciência) não estaciona simplesmente na objetividade: ele tem que se entregar também a uma espécie de devaneio nublado que precede o insight.

A série televisiva que melhor ilustra isso é “House”, em que o doutor que dá nome a ela (Dr House) entra num tipo de breve transe, logo antes de solucionar os casos enigmáticos. E é sempre um acaso, uma informação fortuita que, na distração, se liga a algum outro dado aparentemente irrelevante e que leva a uma eureka! Iluminação! Satori! Despertar! (a propósito, ao tratar do tema da “atenção”, num artigo de 2010, Contardo Calligaris recorre justamente a Dr House).

Talvez possamos sintetizar, grosso modo, essas duas atitudes distintas e complementares, da ciência e das artes (muito embora, como se disse, elas não sejam estanques), da seguinte maneira: enquanto a anamnese é solar e diurna, conectada à vigília, a associação livre é feita de um caldo onírico. Numa dança, é a luz fazendo oposição à penumbra.

3 – Pois juntando esses dois conceitos extraídos da psicanálise, André Ramalho Castelani escreveu um original estudo de dramaturgia (Anamnese e associação livre como estruturas dramatúrgicas na peça “As folhas do cedro”), fruto de longa pesquisa que culmina na sua defesa de mestrado na UNESP, sob orientação do Prof. Dr. José Manuel Lázaro de Ortecho Ramírez, em 2012.

Elevando as ideias de anamnese e associação livre ao patamar de categorias de dramaturgia, Castelani, nessa investigação, como que põe no divã a peça de Samir Yazbek (“As folhas de cedro”). O resultado é um trabalho notável de diálogo entre o teatro e a psicanálise, especialmente interessante porque concebido desde o lugar do dramaturgista.

O próprio trabalho de Castelani vai num crescendo, da coleção de dados até as complexas articulações que encontramos no último terço da tese. Nessa parte de suas considerações, o pensamento decola, inaugurando uma sintaxe própria, original, híbrida, bilíngue, filha de dois cenários, o teatral e o psicanalítico.

Antes disso, na dissertação, há um longo capítulo que apresenta a história do teatro, e que avança pelas diferentes escolas que fazem o desenho do homem através dos tempos. Um homem que vai adquirindo cada vez mais densidade e espessura, habitado por contradições, paulatinamente recheado de mais conflitos e desencontros. Culminando nos dias atuais, o estudo chega a um homem desbussolado (termo que Castelani toma de empréstimo de Jorge Forbes), habitado por vozes estrangeiras em seus porões: alteridades exigindo lugar nas novas linguagens que o teatro produz.

Esse estudo de Castelani tem a ver finalmente com a construção da memória – e o espetáculo de Yazbek cai aí como uma luva para as suas considerações. Pois ele (Yazbek), na confecção da peça, recorre a elementos documentais e a marcas mnêmicas menos exatas (porque mais ligadas ao desejo). E, no palco, através de uma espécie de “mapa de areia”, vemos a demarcação concreta de territórios, que Castelani, em sua análise, classifica, numa gradação que vai do fato ao sonho. Do acontecimento (traumático, muitas vezes) ao desejo…

Tomara essa dissertação se transforme em livro, e frutifique em diálogos com outros autores de campos diversos. Pois o resultado aponta para várias direções e permite múltiplos links com os temas, por exemplo, da narratividade e da performatividade no teatro.

4 – De minha parte, ficaria feliz em ser capaz de seguir as costuras que o estudo de Castelani oferece, particularmente fazendo cruzamentos entre o depoimento do puro relato e o outro, que ousa narrar. Mas isso ultrapassa os muros da clínica psicanalítica, evidentemente.

Essa tese se articula com o teatro narrativo, que se distingue do relato: o épico, com seus espasmos performativos, está presente na narratividade. Apesar de conter marcas históricas, que lhe dão peso e concretude, a narrativa não busca obsessivamente fidelidade aos fatos – porque sabe que eles são irrecuperáveis. Narratividade assim estabelecida mantém a sua potência e faz função de metáfora: transporta o homem para outro lugar. Somos arrancados do conforto.

A liberdade de contar estórias, desrespeitando os trilhos impostos pela anamnese (em que a verdade da metáfora não prospera), transforma a memória. À moda de Xerazade, nos labirintos da narratividade, por mil e uma noites, adiamos nossa morte!

“Bom teatro é teatro simples e necessita de concretude, metáfora e alteridade”, disse Mauricio Paroni de Castro.



FONTE:

Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro


Publicado em: 02/02/2015 |