quarta-feira, 30 de agosto de 2023

JOSÉ SOEIRO ESCREVEU: DO MEU COMPROMISSO COM O AUGUSTO BOAL

 






DO MEU COMPROMISSO COM O AUGUSTO BOAL

(ALGUMAS LINHAS AO SABER DA TUA MORTE)



José Soeiro, 3 de Maio de 2009



Morreu na madrugada de ontem o Augusto Boal. Tinha 78 anos de uma vida de luta, de solidariedade e de criatividade que influenciou o teatro em todo o mundo. Mas Boal era bem mais que um homem do teatro. Para mim e para tanta gente neste mundo.

Estive com ele uma única vez, em Paris, durante um workshop organizado pelo Julian. Mas quando recebi a notícia da sua morte, foi como se me falassem de alguém próximo, tão familiar. Porque ao longo dos últimos anos aquilo que pensou, as formas teatrais que inventou, o modo como concebeu a política e a educação, a imensa generosidade da sua prática e da sua metodologia, acompanharam-me muito para além das oficinas de Teatro do Oprimido que vou fazendo. Na verdade, muito pouca gente me marcou tanto como ele. Dele posso dizer, sem nenhuma reverência, que é um dos meus mestres.

Boal era um dramaturgo e encenador respeitado, que teve um papel muito importante, na década de 60 e 70, na “nacionalização” de alguns clássicos e na sua apresentação no Brasil e, também, na criação de um teatro que falasse dos problemas populares. Mas, mais do que tudo, o grande contributo que deixa é o Teatro do Oprimido – uma metodologia original que é hoje praticada por muitos milhares de pessoas em todo o planeta.

A ideia de Boal é simples: todos somos teatro. E, sendo o teatro a capacidade humana de nos observarmos em acção, precisamos de recuperar a nossa capacidade de actuar. Como dizia de forma provocatória, na medida em que for passivo, um espectador é sempre menos que um ser humano. Daí ter inventado o termo de espect-actor: uma combinação da capacidade de observar e de reflectir (própria do espectador) mas que nos restitui também a de agir nas situações que vemos (típica do actor), não reduzindo a realidade àquilo que existe, mas abrindo-a às possibilidades que sempre tem de ser diferente. Há cerca de um mês, na mensagem do Dia Mundial do Teatro que este ano escreveu, terminava dizendo que “actores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma!”.

A reviravolta que Boal propõe para o teatro não tem apenas que ver com a sua vontade de transformação. O mais interessante, para mim, é a superação que faz do teatro de intervenção e de propaganda: não mais um teatro que comenta a realidade e que leva uma mensagem a um público, mas sim uma prática que propõe que cada grupo se aproprie dos meios de produção teatral para encenar a sua própria realidade e para ensaiar formas concretas de a mudar. A história de Virgílio, o camponês que terá ensinado a Boal que não se pode propor aos outros aquilo que nós próprios não estamos dispostos a fazer, ou seja, que a “solidariedade é estar disposto a correr os mesmos riscos”, é a mais importante lição contra a arrogância da política ou do teatro enquanto propaganda. Não há uma única vez em que conte esta história – e já a contei muitas dezenas de vezes nas oficinas de TO – e não me arrepie profundamente quando tenho de dizer a frase com que o camponês Virgílio confrontou os actores do grupo de Boal, “Quando vocês actores dizem «nós vamos dar o nosso sangue pela Terra!», estão na verdade a falar do nosso sangue, e não do vosso”.

O trabalho de Boal e a forma como a sua metodologia se reproduziu e é hoje instrumento de libertação para tantas pessoas e grupos, dá a dimensão do enorme contributo que ele deu para a emancipação, muito mais valioso, creio eu, do que o de tantos líderes revolucionários. O seu Teatro do Oprimido terá também aberto mais caminho para a democratização do teatro, sobretudo entre os que menos têm, do que muitos programas culturais cheios de boas intenções. A mensagem que o Movimento dos Sem Terra ontem divulgou, de homenagem ao companheiro Boal, é uma boa prova disso.

Uma das coisas que vou aprendendo de cada vez que faço uma oficina de TO é que não há transformação sem uma profunda atenção a todas as formas de poder – e o poder opressivo está aí, em cada relação humana, às vezes nos mais improváveis lugares. Outra, é uma permanente surpresa com a capacidade extraordinária que a linguagem da imagem corporal tem para nos revelar aspectos da realidade que, mesmo olhando-os todos os dias, não vemos. Outra ainda é a diferença entre o que dizemos que é preciso fazer e a nossa capacidade de efectivamente o fazermos. Ao contrário das logoterapias, que prescrevem através do discurso as transformações necessárias, o Teatro do Oprimido, e em particular o teatro fórum, confronta-nos sempre com a complexidade do “aqui e agora” e com a dificuldade de mudarmos, pela acção, as realidades em que vivemos. Na verdade, a opressão não é apenas uma estrutura, porque acontece na interacção concreta entre as pessoas. E nessa interacção, há corpo, há voz, há gestos mecanizados que nos tolhem, há máscaras que nos escondem e nos limitam, há rituais que nos prendem e que confinam o modo como as coisas são feitas, há as mais insondáveis emoções e bloqueios. O Teatro do Oprimido tem-me tornado mais atento a tudo isso.

Por último, dá-me ideia que há uma parte importante do Boal que, em muitos casos, vai ficando pelo caminho em algumas das experiências que se reclamam do seu teatro. Para ele, como para tanta gente na qual gosto de me incluir, o teatro não chega. Com efeito, para usar uma expressão do próprio, o Teatro do Oprimido é um “ensaio da revolução”, mas esta acontece sempre fora do espaço estético, ou quando a efervescência é tão grande que não conseguimos mais separá-lo e distingui-lo do espaço social.

Não se trata do Teatro do Oprimido (TO) fornecer, em si mesmo, uma direcção ou determinadas soluções para os problemas. Pelo contrário, o TO é apenas o espaço onde todas as soluções podem ser testadas e onde podemos perceber as consequências concretas do que fazemos. E isso, em si mesmo, é já profundamente transformador. O TO é assim como uma chave: em si mesmo, não abre a porta, é sempre preciso que alguém o tome nas mãos e o use para esse efeito. Mas também não é uma técnica vazia, disponível para ser usada ao serviço de não importa o quê (como por vezes vai acontecendo nessa Europa). As raízes do TO estão na luta contra todas as formas de opressão e no respeito profundo por cada ser humano e pelo seu sofrimento. Essas raízes percorrem várias das correntes do teatro, da pedagogia, da política emancipatória (e onde Boal vê mais longe, isso acontece também por se sentar em ombros de gigantes, como Marx, Paulo Freire, Brecht, Stanislavski...). Por isso mesmo, só faz sentido o Teatro do Oprimido ser praticado se estiver mesmo ao serviço dos grupos e dos problemas que eles escolhem. Não deve nunca responder às agendas do poder, sejam elas quais forem. Não serve para apresentar problemas escolhidos por alguém que não os vive – mesmo que esse alguém seja educador, assistente social, artista, ou o Estado. Não pode ser transformado em mais uma mercadoria ou numa “técnica de ensinar” ou de domesticar, como vemos acontecer. Precisa de ter o mesmo compromisso radical com os oprimidos que Boal tinha.

Tenho a sensação que o Teatro do Oprimido não surge por acaso na vida de Boal: foi uma necessidade, uma resposta criativa aos problemas que foi encontrando, uma vontade de pôr o conhecimento e os instrumentos teatrais ao serviço do combate à injustiça e à exploração. E parece uma resposta que o próprio Boal integrava no conjunto das suas práticas, como activista político, como militante cultural, como interventor teatral, como cidadão do mundo. Creio que a melhor homenagem que lhe podemos fazer é continuar esse impulso.

Ontem, perdemos muito. Eu sinto, por estranho que possa soar, que perdi alguém muito próximo. Mas sinto também que ele vive ainda e sempre na exigência do compromisso que nos deixa. Saibamos estar à sua altura.

Publicada por TPC - Teatro Popular de Carapeços à(s) 18:15