Otelo e Desdêmona por Muñoz Degrain - 1881
AS CONTROVÉRSIAS
RACIAIS EM OTELO DE WILLIAM SHAKESPEARE
Célia Arns de Miranda[1]
If
[Othello] did not begin as a play about race,
then
its history has made it one.
Ben Okri
Tem-se a impressão
que a tragédia Otelo[2], escrita por William Shakespeare,
parece estar cada vez mais vinculada aos tempos atuais. Por se tratar de um
enredo que expõe temas como racismo, misoginia, miscigenação, identidade e
choque culturais, conflito sexual e violência doméstica, esta tragédia escrita
no início do século XVII torna-se uma misteriosa presciência do nosso mundo. As
questões raciais que são expostas abertamente dentro da peça ressoam com o
racismo que é vivenciado fora dela. Janet Suzman (1995, p. 279) menciona que é
como se Shakespeare estivesse reproduzindo a teoria do regime de segregação
racial da África do Sul quatro séculos antes que esta orientação política fosse
formulada.
Em 1987, Ben Okri[3] (1987, apud HANKEY, 2005, p. 2) relata que ele
estava sentado em um teatro londrino assistindo Ben Kingsley como Otelo e David
Suchet como Iago numa produção da Royal Shakespeare Company. Ao perceber que ele era a única pessoa
de pele negra na audiência, ele foi tomado por um sentimento de empatia por
Otelo, outro homem negro isolado num mundo de brancos. Ele percebeu que
incomoda ver Otelo como um homem negro no palco. O ressentimento de Okri está
relacionado com a sua convicção de que nenhuma pessoa branca no auditório
estava se sentindo da mesma forma que ele. De acordo com o seu ponto de vista,
vários séculos já se passaram com Otelo assassinando Desdêmona e se suicidando
no palco sem que alguma mudança significativa ocorresse em relação às pessoas
negras. Ele sabe que esse fato não poderia ser diferente, ou seja, como
poderiam pessoas brancas se imaginarem na ‘pele’ de Otelo? Logicamente, essa
questão está sendo levantada por uma perspectiva política pós-colonial. A
situação a que ele se refere não é pessoal ou moral, mas está ligada ao lugar que
o homem negro ocupa na história: a cor de Otelo, a diferença, o fato de ele ser
o outro.
Tem havido sempre
muita discussão em torno da cor da pele de Otelo. Samuel Taylor Coleridge[4] (1969, p. 187), por
exemplo, pressupunha, equivocadamente, que Shakespeare conhecia homens negros
apenas como escravos. Sabe-se que na década de 1560, Sir John Hawkins e outros
mais trouxeram um grande número de escravos da África Ocidental[5] para a Inglaterra – havia
tantos escravos que a rainha Elisabete I aprovou dois decretos de deportação a
partir do fundamento de que eles estavam consumindo os alimentos que eram
destinados ao povo inglês. Por outro lado, sabe-se, igualmente, que os contos
populares de viajantes daquela época descreviam as sociedades africanas e pessoas
de diferentes tipos e cores, incluindo reis, nobres, eruditos e mercadores. Por
esse motivo, um homem de ‘sangre azul’ que também fosse negro não significaria
nada de extraordinário para os ingleses, muito menos, se ele fizesse parte do
enredo de um espetáculo teatral (HANKEY, 2005, p. 9-10).
Dentro desta
polêmica, é relevante mencionar o fato de que para os ingleses, tanto na Idade
Média quanto no período elisabetano e jaimesco, um Mouro seria sempre de cor
negra. Entretanto, E. A. J. Honigmann (2001, p. 14) reitera que,
independentemente do que um Mouro possa ter representado para os ingleses antes
de 1600, é indispensável que se tenha em mente que Shakespeare, como todos os
londrinos, tiveram a oportunidade de conviver com os mulçumanos do séquito do embaixador
Mouro (representante da região costeira da Barbaria[6]) que permaneceu em Londres
por um período de seis meses, a partir de agosto de 1600. É de se esperar que
este séquito, constituído por pessoas oriundas de uma cultura completamente
diferente da inglesa, tanto no que se refere à aparência física quanto aos
costumes, hábitos e maneira de se vestir, tenha causado um verdadeiro frisson em Londres. Inclusive, a companhia
teatral, os Homens do Lorde Camerlengo, da qual Shakespeare participava,
representou uma peça na corte antes da partida do embaixador (HONIGMANN, 2001,
p. 2). Vale dizer que estes Mouros, oriundos região da Barbaria, eram fulvos,
ou seja, de cor amarelo-tostada, em vez de serem negros (2001, p. 14).
Percebe-se, portanto, que as primeiras audiências de Otelo tinham informações suficientes para
poderem comparar o Mouro de Shakespeare, seja com os tão comentados
estrangeiros (indivíduos amorenados), seja com o seu referencial
histórico-cultural (indivíduos negros).
Não restam dúvidas
de que Shakespeare tinha conhecimento de que nem todos os Mouros deveriam ser
negros. Em Titus
Andronicus, o Mouro Aaron é
descrito como um Mouro negro retinto (coal-black Moor) que tem um cabelo lanoso e encaracolado (fleece and wooly hair) e um filho recém-nascido que é visto,
carinhosamente, por ele como sendo um escravo beiçudo (thick lipp’d slave)[7]. Tendo-se essas
referências em mãos, é possível afirmar que Shakespeare tenha imaginado o Mouro
Aaron como uma pessoa negra. Entretanto, quando as indicações cênicas que
anunciam, em O mercador de
Veneza, a entrada do
príncipe de Marrocos, como “um Mouro fulvo, vestido todo de branco” (II, i),
tem-se a prova definitiva de que Shakespeare, realmente, sabia que existem
nuances na cor da pele entre os Mouros, ou seja, que aqueles oriundos do Norte
da África poderiam ser fulvos, em vez de negros. A partir dessas colocações, se
voltarmos a nos referir ao Otelo, não é possível
relevar o fato de que esta tragédia foi escrita, provavelmente, em 1603-1604,
ou seja, um curto período de tempo após o embaixador Mouro, representante da
Barbaria, partir de Londres (1601).
Percebe-se que
existem relações entre este fato e algumas das falas em Otelo. Iago, por exemplo, ao denunciar para
Brabantio a fuga de Otelo com Desdêmona, insulta o Mouro fazendo uso de uma
linguagem extremamente ofensiva: “[O senhor] terá sua filha coberta por um
garanhão da Barbaria;
terá netos que
relincham, terá corcéis por primos e ginetes por consangüíneos.” (I, i, 110)
(SHAKESPEARE, 1999, p. 18)[8]. Em outro trecho da peça,
fazendo uso de estratégias mesquinhas e egoístas, Iago, ao tentar convencer
Rodrigo de que suas chances para conquistar o amor de Desdêmona continuavam
boas, faz novamente uma referência indireta à procedência de Otelo e,
consequentemente, à cor de sua pele: “Se uma cerimônia e um juramento fraco
entre um bárbaro errante (an erring barbarian)
e uma veneziana superrequintada não forem demais para a minha esperteza unida a
todas as tribos do inferno, hás de gozá-la.” (I, iii, 356; p. 44). Pode-se
dizer que, a partir desses comentários, a questão acerca da cor da pele de
Otelo esteja resolvida? De acordo com Honigmann (2001, p. 15), não
inteiramente. Nesse caso, como poderia ser explicado o fato de que muitos personagens
descrevem Otelo como beiçudo, negro e que ele próprio, na sua angústia para
compreender a possível rejeição de Desdêmona, diz: “Quiçá por eu ser preto?”
(III, iii; p. 101). Novamente, essas referências não elucidam a questão porque
a palavra black (preto/negro) era frequentemente usada
de uma maneira mais vaga para as raças não europeias, um pouco mais escuras do
que muitos europeus[9]
(MURRAY, 1977).
Percebe-se,
entretanto, que essa distinção exata entre a pele escura e a tez amorenada não
é significativa, tanto que grande parte das montagens opta por representar
Otelo através de uma caracterização que pode pender tanto para um negro retinto
como para um norte-africano amorenado. Na realidade, o que importa é a
percepção de que Otelo, apesar de estar, aparentemente, integrado na cultura
veneziana e de ser admirado e requisitado por seus dotes na guerra, essa mesma
sociedade prima por considerá-lo como o outro, aquele que pertence a uma
cultura e raça diferentes, aquele que não tem o direito de conquistar uma
donzela branca e requintada porque ele é o bárbaro, o diferente, aquele que,
como indivíduo, é banido daquela sociedade. É, por esse motivo, que a questão
da identidade cultural[10] constitui-se numa
vertente prioritária nos estudos shakespearianos.
Apesar da cor da
pele de Otelo ser, hoje em dia, menos controversa, o seu significado no início
da cultura moderna ainda continua a sê-lo. Existe uma divergência quanto ao
fato da negritude ser considerada, naquele tempo, uma qualidade superficial ou
um indício de características internas, que não poderiam ser alteradas. Muitos
críticos sugerem que a tez escura era vista como um sinal de degradação,
entretanto, outros argumentam que ela começou a ser vista negativamente apenas
mais tarde, como um resultado da dominação colonial dos africanos. Uma outra
questão que também tem sido levantada é a de que o termo ‘raça’ está carregado
de um significado restritivo apenas nos dias de hoje, uma vez que no
Renascimento os conflitos mais pungentes entre os povos europeus cristãos e os
demais, estavam, em grande parte, vinculados com a religião. Inclusive, as
palavras como ‘xenofobia’, ‘etnicismo’, ‘nação’ foram criadas apenas mais
tarde, e outras,como ‘raça’ e ‘racismo’ tinham um significado diferente do de
hoje[11] (LOOMBA, 2002, p. 2).
Dentro desse contexto, Honigmann (2001, p. 27) menciona que a principal fonte
da tragédia Otelo, Hecatommithi (1565), escrita por Giraldi Cinthio[12], deve ter despertado a
atenção de Shakespeare porque este enredo que também retrata um Mouro que se
casou com uma esposa branca e que, consequentemente, despertou o rancor
implacável no seu alferes, permitiu Shakespeare focar um problema social que
estava sendo deflagrado naquele dado momento - o racismo - ou seja, a reação
dos europeus em face daquele que é considerado o outro. Sidney Kaplan é
bastante enfático quando ele reitera que Shakespeare teve claramente a intenção
de que Otelo chamasse a atenção para os problemas de
raça. Ele menciona que Shakespeare teve um discernimento raro em relação às
motivações humanas e criou estedrama magnífico como um manifesto contra o
racismo (BENJAMIN, 1997, p. 96).[13] Na realidade, Julie
Hankey (2005, p. 10) constata que o teatro já apresentou Mouros morenos ou
brancos, como o Príncipe de Marrocos em o Mercador de Veneza e o Mouro de tez clara Abdilmalec em The Battle of Alcazar. Entretanto, grande parte dos Mouros
que protagonizaram no palco eram diabólicos e a cor da pele denunciava a sua
índole. No seu ensaio,Othello and
colour prejudice (Otelo e o preconceito da cor), G. K. Hunter(1978, p.41) mostra que
na literatura religiosa, nos romances medievais, na tradição pictórica,
mascaradas da corte e procissões, todos os demônios, os pagãos, os maus
espíritos, os Mouros, os Turcos eram negros. A despeito de também haver vilões
brancos, esse fato não diminuía a força da cor escura ser vista como um
símbolo.
O seu significado
primeiro era moral e religioso em vez de racial ou geográfico. Percebe-se que
em Otelo Shakespeare subverte os estereótipos
raciais de seu tempo. Apesar do general Mouro ser descrito por adjetivos
bastante pejorativos como ‘beiçudo’, ‘demo’, ‘lascivo mouro’, ‘estranho
errante’, ‘bode velho e preto’, os leitores/espectadores constatam, no decorrer
da peça, que o personagem diabólico não é o Otelo negro, mas o branco Iago. É
interessante observar que praticamente toda a linguagem de cunho racista é
expressa pelos personagens que apresentam uma falha de caráter ou que são
fracos – Rodrigo é visto como um bobo útil; Iago, como um vilão; e
Brabantio,como um velho tolo. Este é mais um indício de que Shakespeare
escreveu Otelo como um manifesto intencional contra o
racismo. (BENJAMIN, 1997, p. 96).
Em nenhuma outra
tragédia Shakespeare foi tão cuidadoso, como em Otelo, ao caracterizar o protagonista como uma
pessoa nobre e respeitada. A desonestidade e a capacidade de intriga de Iago,
como também o propósito do alferes em retratar Otelo da forma mais desfavorável
possível, têm o poder de ressaltar, ainda mais, a alta categoria de Otelo
(SHAKESPEARE,1999, p. 7). Torna-se claro na peça que Otelo é considerado
indispensável pelo governo veneziano por sua destreza e habilidade na guerra.
E, também, torna-se claro, que é por esse motivo, que os venezianos o toleram,
que toleram o seu casamento com Desdêmona. Tal como já foi mencionado
anteriormente, há um descompasso entre o reconhecimento de Otelo como o grande
general e de seu reconhecimento como um cidadão, ou seja, existe um conflito
evidente na peça entre os interesses do estado e os interesses do indivíduo.
Esse conflito, por sua vez, está entrelaçado com o conflito interracial e
intercultural. Quando Brabantio, por exemplo, vai ao encontro de Otelo,
convicto de que sua filha Desdêmona tinha sido conquistada pelo Mouro através
de ‘sórdidas magias’, Otelo é acusado por ele de ser um estrangeiro e um negro:
“Se uma jovem feliz, suave e bela, // E tão infensa às bodas que fugiu // À
corte dos mais ricos dentre os nossos, // Haveria jamais (pra ser chacota) //
De fugir da tutela pro negrume // De um peito como o teu, que só traz susto.”
(I, ii, p. 26). Shakespeare transformou o código da cor em uma das questões
principais da tragédia: os múltiplos exemplos que podem ser facilmente
detectados na peça denunciam uma quase obsessão pela exploração desse tema.[14] Entretanto, vale lembrar
que Shakespeare explora em Otelo, como em todas as
suas peças, uma multiplicidade de temas, o que não deixa de ser um reflexo de
sua profunda compreensão da complexidade do comportamento humano.
Barbara Heliodora
em seu livro Falando de
Shakespeare (1997, p. 275)
referenda a asserção de H. B. Charlton de que a tragédia de Otelo: o Mouro de Veneza “nasce do casamento de duas pessoas de
origens e formações vastamente diversas.”, ou seja, do casamento “entre um
bárbaro errante e uma veneziana super-requintada.” (I, iii, p. 44), tal como as
palavras zombeteiras de Iago destacam na peça. Esta tragédia, ao colocar em
foco as controvérsias geradas pelo confronto entre culturas, raças, ideologias,
gêneros, entre o público e o privado, entre os colonizadores e os colonizados,
flagra de uma forma implícita, entretanto, contundente, o que têm caracterizado
a experiência diaspórica14 da humanidade que não está mais circunscrita ao
processo da aventura euroimperial desde 1492, mas que se tornou uma condição
arquetípica da modernidade tardia (HALL, 2008, p. 393). Percebe-se, portanto,
que a leitura de Otelo não pode se restringir a uma discussão
em torno das paixões que envolvem os eternos conflitos humanos como a traição,
a infidelidade, a deslealdade que acabam detonando o fim trágico do casal
protagonista. Este seria o “nível explícito” de significação. Pode-se dizer que
nessa peça existem dois níveis de significação: uma significação apresentada ou
evidente e a significação subjacente que .“deixa entrever toda uma perspectiva
inexpressa do discurso.” (PAVIS, 1999, p. 368) ou que se expressa por certos
acontecimentos ou discursos subordinados e subliminares – pelo “nível
implícito.” de significação (FRYE, 1992, p. 15).
Shakespeare
demonstra definitivamente um grande interesse pelo charme exótico do sexo
inter-racial. Torna-se curiosa a constatação de que a síndrome da
atração-repulsa não se resume às relações entre Otelo e Desdêmona (Otelo), Aaron e Tamora (Titus Andronicus) e Caliban e Miranda (A tempestade), mas ela caracteriza a experiência dos
negros na civilização Ocidental, inclusive quando nos reportamos às encenações
dessas peças por atores negros. Ou seja, referindo-nos, especificamente, à
representação do personagem Otelo por atores negros, qual tem sido a reação do
público e dos críticos? A afirmação de que o papel de Otelo só foi representado
por atores negros nas últimas décadas demonstra uma ignorância da brilhante
carreira de Ira Aldridge. Ele foi o primeiro grande ator negro a representar
Otelo e isso ocorreu na década de 1830. Entretanto, é curioso que esse ator,
apesar de ser um americano nativo, nascido e educado em Nova Iorque, e que
tenha sido aclamado na Grã-Bretanha e em toda a Europa, especialmente na
Rússia, ele nunca pode aparecer como Otelo ou em qualquer outro papel em seu
próprio país. Na Europa, por outro lado, além de representar Otelo, ele também
representou papéis de personagens de tez branca ( ‘white’ roles) como Ricardo III, Hamlet, Macbeth, Lear (KAUL, 1997, p. 12). Aldridge recebeu
treinamento no African Grove
Theater, uma companhia
formada apenas por atores negros em Greenwich Village. Shakespeare era, muitas
vezes, encenado pela companhia. Entretanto, depois de serem vaiados,
ridicularizados e ameaçados com violência física por objetos voadores que eram
atirados por desordeiros racistas brancos que se sentiam ultrajados por negros
se atreverem a representar o bardo, a companhia foi fechada e Aldridge partiu
para a Europa em busca de novas oportunidades no teatro. Após estudar, por uns
poucos anos, na Universidade de Edinburgh (Escócia), ele iniciou a sua carreira
nos palcos ingleses. Pouco tempo depois, ele já estava sendo aclamado como o
mais requintado Otelo do século XIX (BENJAMIN, 1997, p. 99). No período de
1831-32, Aldridge alcançou um grande sucesso em Dublin (Teatre Royal): um ator negro ‘naturalmente’
representando Otelo – e, na realidade, dando uma ênfase à sua negritude em
diversas cenas durante a representação - parece ter impressionado a audiência
de imediato como um evento teatral bastante significativo. Tal fato foi
exaltado como sendo a novidade mais singular no Teatro do Mundo, isto é, um
“ator de cor” (MARSHALL; STOCK[15] 1958, apud KAUL, 1997, p. 12). Por volta de 1850,
Aldridge tinha amadurecido de tal maneira no papel e alcançado uma perfeição
artística tão grande que um crítico em Viena declarou que o próprio Shakespeare
não teria sonhado para Otelo uma interpretação tão perfeita. É interessante observar
que no dia 03 de janeiro de 1853, enquanto Aldridge dava início a uma temporada
na Casa de Ópera Italiana (Italian Opera House)
em Berlin como Otelo, os Estados Unidos estavam debatendo acaloradamente a
escravidão que estava levando o país a uma sangrenta guerra civil (1861-1865).
O alto nível de
representação que havia sido estabelecido por Aldridge no século XIX teve
continuidade com a atuação de Paul Robeson no século XX. Robeson foi um
verdadeiro homem afro-americano da Renascença: além de ter sido um atleta de
projeção e um pesquisador, ele representou um Otelo cuja atuação foi marcante.
Com atributos físicos pelos quais foi celebrado (alto, estrutura bem
constituída), ele também era considerado muito inteligente, graduou-se em
Direito, cantava em vinte e quatro línguas, tinha uma voz de baixo, melodiosa e
educada, que lhe rendeu um tom profundo e grave no palco. Em 1930, quando ele
se apresentou pela primeira vez como Otelo nos palcos britânicos, quase um
século depois de Aldridge, a atriz que contracenou com ele como Desdêmona, foi
a britânica Peggy Ashcroft. Apesar de estar recentemente casada, ela se
apaixonou perdidamente por Robeson, que também era casado. Tem como afirmar que
“qualquer semelhança com o enredo é mera coincidência?”. Tendo esse
exemplo real em
mãos, não há como não nos referirmos à controvérsia levantada por Oscar Wilde
quando ele propôs a inversão do conceito aristotélico de realidade artística –
“a arte imita a vida” ou é “a vida que imita a arte?”[16] Cinquenta anos mais
tarde, Ashcroft confessou que o que aconteceu com ela e Paul foi inevitável. E,
ela ainda acrescentou, “Como poderia alguém não se apaixonar naquela situação e
por aquele homem?”.[17] (BENJAMIN, 1997, p. 101).
Depois do sucesso
de público e de crítica nos palcos ingleses, surgiu uma conversa sobre a
possibilidade da produção ser levada para os Estados Unidos em 1931. Robeson
falou para o New York
Times que ele não se
importaria de representar aquelas cenas em algumas partes dos Estados Unidos.
Entretanto, a audiência se tornaria ríspida; na realidade, ele considerava que
essa empreitada seria muito perigosa. No ambiente racista de seu tempo, Robeson
sempre teve muita prudência ao contracenar cenas românticas com uma atriz
branca no palco, mesmo na Inglaterra. Apesar das críticas continuarem muito
positivas na Inglaterra, Robeson mantinha o seu ceticismo quanto à reação das
audiências americanas de cor branca, particularmente, do sexo masculino, ao
testemunharem um herói Mouro cortejando uma bonita atriz branca. Provavelmente,
esse é o motivo que impediu muitos diretores de escalarem atrizes como Avery
Brooks e Meryl Streep, ou outras atrizes, comparavelmente talentosas, para
comporem pares românticos como Otelo e Desdêmona, ou Aaron e Tamora.
Finalmente, em 1943, doze anos depois de sua estreia em Londres, Robeson teve a
sua chance para representar Otelo na sua terra natal. A crítica foi
extremamente favorável: Burton Rascoe mencionou que ele nunca em sua vida tinha
visto uma audiência tão quieta, tão tensa, tão fascinada com o que estava
acontecendo. O impacto, como muitos críticos salientaram foi pelo fato de um
ator negro estar representando o papel principal. O crítico da Variety resumiu a reação geral quando declarou
que depois da atuação de Robeson, nenhum ator branco deveria ousar representar
Otelo (BENJAMIN, 1997, p. 102).
Os comentários,
tanto por críticos europeus quanto americanos, refletem uma questão central. A
tensão dramática em Otelo não se limita ao fato de um homem negro
poderoso e uma mulher branca bonita estarem juntos no palco como amantes, mas
está também vinculada ao fato de atores negros relacionarem-se emocionalmente
com o papel de tal forma que seria inatingível para os atores brancos[18]. Tal como o solitário personagem
negro na peça, a situação do ator negro no elenco aproxima-se com a situação de
Otelo na sociedade veneziana. E, devido à persistência, de maneira geral, do
racismo no mundo, o ator negro numa noite de estreia sente a mesma ambivalência
e hostilidade, real ou imaginada, que Otelo experimentou em Veneza. Além desses
fatores, atores negros mantêm uma relação muito próxima com os Mouros
shakespearianos que, como eles, estão tentando negociar o seu espaço dentro de
uma sociedade hostil branca. Robeson exemplifica dizendo que ao interpretar o
papel de Otelo, ele sempre ouvia, cuidadosamente, o que os diretores e as
autoridades shakespearianas tinham a lhe dizer, entretanto, em muitos casos, o
Otelo deles não pensava e nem agia e reagia como ele imaginava que um grande
soldado negro deveria fazer e, nesses casos, ele representava de acordo com o
seu modo de ver. (BENJAMIN, 1977, p. 103).
O teatro
shakespeariano, muito apropriadamente chamado ‘O Globo’ (The Globe), exerceu uma enorme influência na
formação da opinião pública dos ingleses sobre o mundo. Por volta de 1600, em
torno de 18.000 a 20.000 espectadores foram aos teatros londrinos a cada
semana, o que fundamenta o fato de que os ingleses formaram a imagem do que o
mundo estrangeiro representava a partir do que lhes era passado pelo palco e
não através dos livros ou por interações com a vida real (LOOMBA, 2002, p.
7-8). Pode-se afirmar que as peças de Shakespeare têm sido, desde então, um
instrumento poderoso entre gerações e culturas, ou seja, um meio para
transmitir e moldar ideias, inclusive, sobre as questões relacionadas ao
colonialismo e raça. Entretanto, acrescente-se o fato de que, apesar de
Shakespeare exercer uma ascendência sobre as concepções vindouras, as respostas
dos leitores/espectadores ao conteúdo de suas peças estão intimamente ligadas
às tensões raciais experimentadas por eles em seus próprios contextos. E é de
se esperar que essas visões e experiências sejam, não poucas vezes,
diametralmente divergentes. Para Octavio Mannoni (1990), por exemplo, a
inferioridade de Caliban em relação à Próspero, em A tempestade de William Shakespeare, confirma que há
uma desigualdade natural entre os seres humanos, fato que justifica o
colonialismo. Por outro lado, Aimé Césaire (2000) menciona que a peça denuncia
as misérias da opressão colonial. Peças teatrais como Otelo e A tempestade expõem problemas raciais para uma audiência cujas vidas têm sido e
continuam a ser enormemente afetadas pela questão racial. Ania Loomba (2002, p.
5) menciona que é tão necessário confrontar as mais diversas e longas histórias
sobre raça quanto é necessário mostrar que o pensamento racial tem uma história
que não é nem fixa e nem universal.
[1] Professora de Literaturas de Língua Inglesa na Universidade Federal do
Paraná em estágio Pós-doutoral na UFSC, sob patrocínio do CNPQ de setembro de
2008 a fevereiro de 2009.
[2] Aproximadamente, entre 1599 e 1608, Shakespeare escreveu uma série de
tragédias, na seguinte provável ordem: Júlio César, Hamlet, Otelo, Rei Lear, Macbeth, Antônio e Cleópatra. Por um consenso universal, essas tragédias
estabelecem o dramaturgo inglês numa posição privilegiada dentre os dramaturgos
do mundo, quando não poucos críticos o colocam em primeiro lugar. As quatro
tragédias, a partir de Hamlet são consideradas o auge de sua produção dramatúrgica
(HONIGMANN, 2001, p. 1).
[3] OKRI, Ben. Meditations on Othello, West Africa, 23 and 30
March 1987. p. 562-564; 618-619.
[4] S. T. Coleridge proferiu uma palestra sobre a tragédia Otelo de Shakespeare na qual ele reiterou que a convenção já
estabelecida de um Otelo negro é resultante do erro de confundir os epítetos
usados pelos personagens como se fossem verdadeiramente descritivos. Nesse
sentido, de acordo com o pensamento do poeta-crítico, o fato de Otelo ser
chamado de negro, ou mesmo de beiçudo (I, i, 66) por Rodrigo, ou de bode velho
e preto por Iago (I, i, 88) não quer dizer que Shakespeare tenha tido a
intenção que Otelo fosse um negro genuíno (apud NEILL, 2006, p. 113).
[5] As questões relacionadas com as diferenças raciais e coloniais são
centrais para a compreensão da cultura do Renascimento. A novelista Michelle
Cliff menciona que ela estudou o Renascimento sem se dar conta que o comércio
escravo começou naquele período e que havia escravos na Europa mesmo quando
Miguelângelo estava pintando o teto da Capela Sistina (apud LOOMBA, 2002, p. 1).
[6] O embaixador Mouro que permaneceu, por seis meses, em Londres no início
do século XVII era oriundo da região costeira da Barbaria (Barbary), situada no
norte da África, entre o Egito e o Atlântico; essa região é ocupada,
atualmente, por Marrocos, Argel, Tunis e Trípoli.
[7] As três referências que estão sendo, parcialmente,
citadas acima foram retiradas, respectivamente, III, ii, 78; II, iii, 34; IV,
ii, 175 (Titus
Andronicus).
[8] Todas as referências em português da tragédia Otelo, o Mouro de Veneza, escrita
por Shakespeare, foram retiradas da tradução realizada por Barbara Heliodora
(vide dados completos nas referências finais). Objetivando agilizar a
transcrição dos trechos citados tomaremos como norma fazer
referência ao ato,
cena e linha(s), seguidos apenas pelo número da página da referida tradução.
[9] De acordo com The Oxford English Dictionary,
a palavra black era
usada “loosely, to non-European races, little darker than many Europeans.”
[10] O racismo, a xenofobia, o preconceito, dentre outros aspectos, têm
gerado confrontos étnico-sócio-culturais com desdobramentos múltiplos em
diferentes contextos históricos: essa abordagem pode ser flagrada em A tempestade, O mercador de Veneza, Titus Andronicus e, logicamente, em Otelo.
[11] Loomba (2002, p. 3) reitera que ‘raça’ é uma categoria altamente
maleável que, historicamente, tem sedesdobrado para reforçar hierarquias
sociais já existentes e para criar novas.
[12] Hecatommithi, escrita por Giraldi de Cinthio, a partir da obra Decameron de Boccaccio, consiste numa coletânea de contos sobre
diferentes espécies de relacionamentos amorosos. Depois de uma introdução (dez
estórias), seguem-se dez séries, cada uma com dez estórias, nas quais o
contador de estórias explica como maridos e esposas deveriam ser escolhidos. A
terceira série escrita por Cinthio analisa, sob diversos aspectos, a
infidelidade de maridos e esposas. Na sexta estória desta série, um marido
descobre que suas esposa está cometendo adultério e vinga-se conspirando a sua
morte .‘acidental.’. A sétima estória também trata da vingança de um marido
(Capitão Mouro), casado com uma esposa veneziana, que é assassinada pelo
suposto adultério (HONIGMANN, 2001, p. 368-370).
[13] Destacamos a seguir apenas algumas das inúmeras passagens na peça que ratificam
o desenvolvimento da temática racial por Shakespeare. Percebe-se, por exemplo,
que enquanto Iago vai trabalhando na sua montagem perversa para enredar Otelo,
ele demonstra a sua aversão racista contra o general de todas as formas
possíveis. Ele chega, inclusive, a levantar um brinde com Cássio “à saúde do
negro Otelo.” (II, iii, p. 65). O próprio Otelo, ao ser persuadido por Iago de
que fora enganado por sua esposa, tenta desvendar os motivos que possam ter
levado Desdêmona à traição, fazendo também menção à cor de sua pele: “Quiçá por
ser preto, // E faltem-me as artes da conversa // Dos cortesãos, ou por estar
descendo // Para o vale dos anos.” (III, iii, p. 101). No decorrer da tragédia,
Otelo também parece estar obcecado pela temática da cor: ele contrasta a
negridão do suposto adultério de Desdêmona quando menciona que o nome de sua
amada era tão claro quanto a castidade da deusa Diana, mas agora é tão negro
quanto a tez de seu próprio rosto (III, iii, p. 107). Minutos antes do
assassinato de Desdêmona, Otelo readquire a estatura de um herói trágico:
apesar de estar à beira de um ato doloroso para ele, a sua linguagem recupera o
equilíbrio que ele havia demonstrado no início da peça. Otelo, nos momentos
derradeiros, não pode mais ser visto como uma pessoa que está simplesmente
executando uma vingança em nome de sua honra, uma vez que ele acredita que o
assassinato de Desdêmona seja um ato de justiça pública de acordo com o código
de ética pagão. Nesse sentido, torna-se significativo o uso e repetição dos
termos “É a causa, sim, a causa, minha ’alma, // Não a nomeio ante as castas
estrelas: // É a causa; mas sangue não derramo, // Nem mancho sua pele, alva de
neve // [...] // (Beija-a) // Hálito quente assim quase convence // A justiça a
trair-se uma vez mais.” (V, ii, p. 172). Vê-se que, mais uma vez, Otelo faz
menção à brancura da tez de Desdêmona cuja simples alusão de seu nome causaria
uma dissonância diante da pureza e inocência das estrelas.
[14] “A diáspora constitui um trauma coletivo de um povo que voluntária ou
involuntariamente foi banido de sua terra e, vivendo num lugar estranho,
sente-se desenraizado de sua cultura e de seu lar.” (BONNICCI,
2005, p. 21)
[15] MARSHALL, Herbert; STOCK, Mildred. Ira Aldridge: the negro tragedian. London: Oxford UP, 1958. p. 99
[16] As palavras faladas por Peggy Ashcroft em
relação à sua paixão por Robeson são: “How could one not fall in love in such a
situation with such a man?”.
[17] Oscar Wilde (1854-1900) em seu ensaio The decay of lying menciona como um de seus preceitos básicos que .“a Vida imita a Arte
muito mais do que a Arte imita a Vida.”. Essa teoria que não havia sido ainda
formulada tornou-se extremamente prolífera e lançou uma nova luz sobre a
história da arte. Wilde considerava o movimento realista um suicídio literário,
uma arte estéril, um fracasso total: as duas coisas que, no seu entender, um
artista deveria evitar eram a modernidade da forma e a modernidade do conteúdo.
Vale lembrar que quando Wilde se refere à modernidade ele, na realidade, está
fazendo uma alusão ao Realismo que era o movimento literário em ascensão
naquele dado momento. (WILDE, 1994. p. 51)
[18] Sidney Kaplan teve a oportunidade de assistir tanto Robeson quanto
Olivier representando o personagem Otelo. Ele observa que a representação de
Robeson provê o melhor argumento da razão pela qual mesmo o melhor dos atores
brancos não poder representar este papel. Esse fato torna-se especialmente
óbvio quando comparado à representação de Laurence Olivier que, de acordo com
Kaplan, foi horrível. A única maneira que Olivier poderia conceituar o
personagem seria como um louco (BENJAMIN, 1997, p. 104)