A Parábola dos Cegos - Pieter Bruegel, 1568
[Parábola de Cristo segundo São Mateus 15:14:
“Se um cego conduzir a outro cego, ambos cairão no fosso.”]
Les Aveugles - moralidade de
Michel Ghelderode, inspirada pelo quadro de Brueghel o Velho, que constitui uma
reflexão sobre a cegueira da alma humana: Três cegos vão em peregrinação a
Roma. Exaustos pela longa marcha,
imaginam-se já perto da cidade santa, onde esperam recuperar
milagrosamente a visão. Lamprido - um
indivíduo só com um olho - que vive no cimo de uma árvore, diz-lhes que eles
continuam em Brabant, onde há semanas os vê passar e repassar e que os sinos
tocando são os de Bruxelas. Oferece-se para guiá-los mas os cegos recusam
acreditar nele e retomam o caminho, acabando por morrer, vítimas da sua própria
cegueira.
Personagens:
Três cegos de nascença,
peregrinos a caminho de Roma:
♦ De
Witte
♦ De
Strop
♦ Den
Os
♦
Lamprido, o caolho, rei do país dos fossos
Local: Uma estrada em Brabante,
perto de uma grande cidade.
Acto Único
Soa um canto. Peregrinos vêm
pela estrada. É bastante lento o canto, se bem que entoado por homens de boa
saúde. Os peregrinos são cegos, que avançam tacteando com um bastão e segurando
um no outro pela ponta do casaco. Eis o canto de marcha:
Congaudeant catholici,
letentur cives celici, die ista.
DE WITTE - (CANTANDO AS
ÚLTIMAS PALAVRAS) Die ista.... (FALANDO) e agora? por mim, eu paro! Se a nossa
canção de peregrinos agrada a Deus, não comove as pedras do caminho. Meus pés
estão sangrando e tenho a garganta seca que nem uma cratera.
DE STROP: É preciso parar.
Quando um de nós pára, os três devemos parar; e quando um canta devemos cantar;
ou quando um anda andamos os três... que destino!...
DEN OS: Que destino!
Caminhar numa estrada de que não enxergamos o fim, cantar uma lamentação num
latim que não entendemos! Companheiros de miséria, proponho gemer os três com
todas as nossas forças. talvez nos ouça alguém, lá pelas nuvens ou na terra.
Vamos gemer! Miserere!
OS TRÊS - Miserere!
Miserere! (DESAFINADOS)
A VOZ – Miserere! (AO LONGE)
DE WITTE - Vocês ouviram?
(SILENCIA OUVINDO)....Mais nada.
DE STROP - Parecia que
estava ouvindo... É a fome e a sede, a sede principalmente que nos perturba os
sentidos.
DEN OS - Eu ouvi! Sabem o
que é? O eco! Vou experimentar: ou é o diabo que fez troça de nós e não
responderá, ou então é o eco, que não mente e responde, porque vou provocá-lo,
religiosamente.
DE WITTE - Sim, cante a
missa para ele.
DEN OS - (CANTA)
Kyyyyyyyyyyyyyyy....
OS TRÊS - Vamos escutar.
A VOZ - (AO LONGE CONCLUINDO
O CANTOCHÃO) Kyyyyyrie Eleison...
DE WITTE - Está se vendo que
não é coisa do diabo! É o eco, um eco de verdade, na certa o eco de um convento!
DEN OS - AH! Se esse eco nos
quisesse dar uma esmola, ou pelo menos nos arranjar um canecão de cerveja
escura!
DE STROP - Não percam a
esperança! Nosso sofrimento, nossa fome, nossa sede vão acabar, eu sei. Querem
ouvir a boa notícia? É que nisso eu enxergo melhor que vocês.
DE WITTE - Mentiroso duas
vezes! Você nasceu tão cego como nós.
DEN OS - Mentiroso três
vezes! Você é o mais cego de nós três.
DE STROP - Amigos da minha
dor, fiquem sabendo: já não estamos longe de Roma!
OS DOIS - OH! OH! OH! OH!
DE STROP - Não sentiram que
o sol ficou mais quente? Faz sete semanas que andamos. Vejam: ainda agora
ouvimos um eco, e um eco que canta missa... Na Flandres, pra falar a verdade,
não existe eco: tudo é chato, tudo é plano...Nas montanhas, sim, existem ecos.
Estamos nas montanhas! E esse pintor que nos pintou faz pouco, e que esteve na
Itália, não disse que devíamos atravessar as montanhas? Como se chamava o
pintor, aquele esquisitão que nos deu um florim?
DE WITTE - Acho que era um
tal de Brueghel.... Ele disse que passando as montanhas, já não estávamos longe
de Roma.
DEN OS - Disse também que
podíamos andar sem medo nem receio que de qualquer jeito acabávamos chegando,
porque todos os caminhos vão dar a Roma.
DE STROP - Aleluia! Vamos
ver a estátua de São Pedro!
DEN OS - Aleluia! Vamos ver
o Papa em pessoa, o Papa que vai nos fazer um milagre: Dar-nos de novo os
nossos olhos!
DE WITTE - Aleluia! Vamos
ver um montão de maravilhas... Ou então não veremos nada! O certo é que Roma é
a cidade mais mirífica da cristandade, é que lá beberemos até não poder mais,
comeremos à farta, e dormiremos e dançaremos... Sei, de boa fonte, que esses
Romanos são de natural alegres e amigos dos prazeres. E nunca mais voltaremos
para a Flandres. Eu me planto nos degraus da basílica, e acabo meus dias, ao
sol.
DE STROP - Eh! mau
paroquiano! Faremos o que o santo Papa nos mandar fazer!
DEN OS - Quem sabe se ele
não quer que a gente dê uma chegadinha até Jerusalém?
DE WITTE - Ou quem sabe,
depois de nos ter olhado bastante, nos aconselhe a voltar para o nosso país?
DE STROP - Silêncio! Abram
depressa os ouvidos! (OUVE-SE UM CARRILHÃO LONGÍNQUO)
DEN OS - Agora sim! Sinos
numa torre! Os sinos de Roma!
DE WITTE - Você está doido!
É um carrilhão! E toca uma música que eu conheço, uma canção que em nossa terra
se canta nos mercados.
DE STROP - Vou dizer a vocês
a verdade. É o célebre carrilhão de Roma! Como o Papa soube que três peregrinos
flamengos estavam chegando, mandou tocar uma ária de Flandres em nossa honra.
Vejam só!
OS TRÊS - (CANTANDO A ÁRIA
COM O CARRILHÃO) Lá...Lá...Lá... Bing... Bong... (GRITANDO) Tocai sinos
benditos! Tocai para os que vêm da Flandres! Aqui estamos! Viva Roma e suas mil
igrejas!
DE STROP - Como dói ouvir,
em terra estranha, os cantos de nossa velha pátria!
DE WITTE - Até parece o
carrilhão de Bruges, onde nasci.
DEN OS - Ou melhor, o do
altivo campanário de Gand, minha nobre cidade.
DE STROP - É tal e qual o de
Antuérpia, a riquíssima, onde vi a luz do dia... (CHORAM OS TRÊS SEM NENHUMA
HARMONIA)
A VOZ - (AO LONGE, RINDO ÀS
GARGALHADAS) Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!
DE WITTE - Escutem! Estão rindo no
horizonte! Que nação maravilhosa, esta Itália! Enquanto choramos, os ecos riem para
os anjos! Vamos rir desde já! (RIEM)
DE STROP - Este humor é que
é admirável. Contemplem estes altos cimos nevados, donde vamos descobrir as
cúpulas e os campanários da Cidade eterna.
DEN OS - Antes de mais nada,
sintam estes perfumes estranhos, as flores tem cheiro de incenso, garanto!
DE WITTE - E vejo num
relógio de sol que já é tempo da gente se pôr a caminho. Caminhemos e cantemos.
Quem vai à frente? Eu! Quero ser o primeiro a entrar na cidade mística.
DEN OS – Serei eu! Nisto
vejo melhor que vocês!
DE STROP - Por que não eu, o
menos cego dos três?
DEN OS - Vamos!
DE WITTE - Seguremo-nos pelo
casaco e batamos os cajados em cadência. (CAMINHAM E CANTAM: PLENUS PULCHRIS
CAMINIBUS / STUDEAT ATQUE CANTIBUS / DIE ISTA)
A VOZ - ...DIE ISTA...
DE WITTE – Ué! O eco já não
tem a mesma voz. Em que ponto cardial está agindo?
DE STROP - Será que estamos
voltando? Em vez de ir para Roma?
DEN OS - Seria terrível.
Acho bom interrogar o eco. Se é que ele sabe latim, deve saber geografia; eu me
encarrego disto. (SOLENEMENTE) Senhor Eco, digne-se responder a três cegos que
procuram seu caminho. Onde está, Eco?
A VOZ DE LAMPRIDO - Numa
árvore da qual descerei para ser-lhes agradável. Sou uma voz que tem patas e
chegarei até vocês.
DE WITTE - Bem que eu pressentia,
é um homem! Tanto melhor, ele nos dará esmola. Vejo-o que vem chegando: é um
grandalhão de chapéu redondo.
DEN OS - É um pequeno de
chapéu quadrado.
DE STROP - Calem-se! É um
grande que ficou pequeno, porque é corcunda, nem mais nem menos, e o chapéu
dele não passa de um boné cheio de medalhas!
LAMPRIDO - (ENTRANDO) Aqui
estou, minha gente.
OS TRÊS - (TOMANDO ARES DE
MENDIGOS PSALMODIANDO EM FALSETE) Aqui está o bondoso cristão! Tende piedade de
pobres ceguinhos, grandes pecadores; piedade de calamitosos peregrinos,
peregrinando neste vale de lágrimas; tende piedade de nós!...
LAMPRIDO - Piedade tenho de
cegos pecadores peregrinando. (RI)
DEN OS - Porque se ri?
(FURIOSO) Quem é você?
LAMPRIDO - Sou Dom Lamprido,
rei do país dos fossos, homem sábio que fica pendurado numa árvore em vez de
caminhar tolamente para uma Roma onde vocês jamais chegarão. Pedem esmola? Vou
dar-lhes maçãs, pêras, ameixas, pêssegos, mel, ovos de pato.
DE STROP - Nada disso!
Queremos dinheiro!
LAMPRIDO - Não o terão, mas
posso dar-lhes conselhos e a minha ajuda que é certamente do que vocês
precisam.
DE WITTE - Não precisamos
nem de ajuda nem de conselhos! Por mais cegos que sejamos, os três juntos
enxergamos bem claro.
LAMPRIDO - Orgulhosos! Sabem
vocês em que lugar estão?
DE WITTE - Sabemos! Estamos
nas altas montanhas, no limiar da campanha romana!
LAMPRIDO - Pois sim! Então
escutem!
DEN OS - Sim, sim... somos
cegos, não surdos. É o carrilhão de Roma!
LAMPRIDO - Inocentes! Estão
no país dos fossos. É preciso acreditarem em mim, porque sendo caolho, tenho a
vantagem de ver com um olho; mas um só olho basta. Há muitos cegos no país dos
fossos. Onde sou rei, eu, caolho clarividente.
OS TRÊS - (COM
ARREBATAMENTO) Ii! Ii! é um aleijado!.... Ah! Ah!.....E diz que é clarividente!
Ei! Ei! E acha que não estamos perto de Roma!
DEN OS – Vai-te embora, Rei
caolho! Não queremos saber nada de ti! És um farsante e o teu país dos fossos
não existe! Nossos longos cajados têm olhos e nos descrevem os aspectos das
campinas. Sai daqui ou nós te batemos!
OS OUTROS 2 - Vamos dar
nele, Sim!.... Arre!... (OS TRÊS DÃO CAJADADAS EM TODAS AS DIRECÇÕES)
DE STROP - Quem me bate?
DEN OS - Assassino! Você
está batendo em mim.
DE WITTE - Estão me dando
pancadas!...Acudam!
LAMPRIDO - Ó trágico engano!
Batem uns nos outros e se desancam! Batam com vontade, meus ceguinhos! Mas... o
quê? Pararam? Sim, sejam pacíficos. Agora escutem! Vou fazer-lhes uma caridade.
OS TRÊS - (EM CORO) Tende
piedade dos pobres ceguinhos condenados a peregrinar pelos seus pecados.
LAMPRIDO - Nem um vintém,
nem um tostão roído! O hálito de vocês bem me diz que adoram a pinga. Ouçam-me:
Vou, caridosamente, desviá-los da desgraça iminente (SILÊNCIO. OS TRÊS ESCUTAM,
BOQUIABERTOS) O sol vai se pôr, as brumas sobem, violáceas... Há semanas que
vos vejo passar e repassar por estes caminhos que de maneira alguma levam a
Roma.... Vocês não deixaram o Brabante e os sinos que ouvem são os da torre de
S. Nicolau, de Bruxelas. Pela minha única vista, descubro daqui os muros da
cidade, as torres de Santa Gúdula e o famoso São Miguel guerreiro, todo
dourado, em cima da flecha da sua torre de pedra...
DEN OS - É feio caçoar de
três miseráveis que não enxergam!
DE WITTE - Está mentindo
para nós. Não é meio-dia. E já faz semanas que deixámos os países baixos!
DE STROP - Tome cuidado
Lamprido! Você é um malvado! Denunciaremos você ao Papa! Compadres, não será
algum bandido de estrada que vai cortar os nossos tornozelos? Senhor!...
LAMPRIDO - Pela última vez
vos digo: estão no país dos fossos e a estrada é toda cheia de pântanos e
prados inundados. Um passo em falso e desaparecerão! Dentro em pouco descerão
as trevas. Vou tomá-los pela mão e conduzi-los ao refúgio da abadia, onde
passarão a noite. Eis uma oportuna caridade, e a única que eu quero fazer...
DE WITTE - Acabemos com
isto! A caminho! Deixemos esse velhaco com seus disparates!
DE STROP - Embora cegos,
temos dignidade! Acha que vamos aceitar auxílio de um caolho? Havemos de entrar
em Roma, esta noite ainda!
LAMPRIDO - Pois vão! Entrem
em Roma! Mas tenham o cuidado de antes, recomendar suas almas e seus corpos à
providência! Cem vezes cegos aqueles que não querem acreditar no caolho (FICA
ABORRECIDO) Todos os caminhos levam à morte. (ZOMBANDO) É ainda uma vaidade
entre todas, querer bem ao próximo! Prossigam!
OS TRÊS - Caminhemos.
DE STROP - Adeus, caolho! E
obrigado pela esmola!
DEN OS - Adeus, rei dos
fossos, rei das rãs e dos batráquios!
DE WITTE - Adeus, eco
asneirante! Trepa de novo à tua árvore e prega às corujas! Chegou a nossa vez,
amigos. Pra diante! E segurem o meu casaco.
DEN OS - Eu seguro o casaco,
segure o meu. Quem vai à frente?
DE STROP - Para o Oriente.
Directo!
LAMPRIDO - Vocês estão indo
para o Ocidente! Direitinho para a lama fétida, para o nada. Sigam!
OS TRÊS - Honra aos
gloriosos peregrinos da Flandres! (AVANÇAM, AFASTANDO-SE E O CANTO RESSOA) Haec
est dies laudabilis divina luce nobilis (O CANTO SE INTERROMPE) Socorro!... Não
me empurrem!... Não me puxem!... Lamprido! Socorro!... E a água!...
Misericórdia!... Estou afundando... Eu me afogo!... Jesus!... Salvai-nos!....
(GRITOS AINDA OFEGANTES, E AS VOZES SE EXTINGUEM).
LAMPRIDO - Nada posso fazer
por eles! Os fossos são tão profundos! Não cantarão mais os cegos! Acabou-se o
seu caminho!... Descansem em paz, meus irmãos, no velho barro de que todo
mortal é formado. A noite avança. Vou ganhar de novo a minha árvore, onde, por
entre os pássaros adormecidos, rezarei por vossas almas cegas, pobres
ceguinhos. Amém!... (SAI. O CARRILHÃO SOA ALEGREMENTE NOS CONFINS DO
CREPÚSCULO).
FIM
Fonte:
http://www.deficienciavisual.pt/r-Os_Cegos-Ghelderode.htm