A
MORTE DE HAMNET E A CRIAÇÃO DE HAMLET
William Shakespeare usou sua própria dor para escrever os destinos de um reino distante e um de seus personagens mais fortes
O ofício de Shakespeare, durante toda a sua vida, foi sondar as paixões de seus personagens e despertar as paixões de suas plateias. Sua habilidade nisso é quase universalmente considerada sem rival, mas as fontes íntimas dessa habilidade permanecem desconhecidas. Os estudiosos reconstruíram incansavelmente pelo menos parte das leituras ecléticas e abrangentes de Shakespeare, mas sua própria vida apaixonada - seu acesso por meio da experiência e da observação pessoais às intensas emoções que ele representa - é quase completamente misteriosa. Nenhum exemplar de suas cartas, notas de trabalho, diários ou manuscritos (com a possível exceção de "Hand D" em Sir Thomas More) sobreviveu. Seus sonetos foram vasculhados em busca de evidências autobiográficas, mas, embora escritos na primeira pessoa, são desconcertantes, evasivos e, provavelmente por deliberação, opacos.
Durante séculos de especulação febril, as reflexões mais veementes sobre a presença da vida emocional de Shakespeare em suas peças - notadamente nas páginas brilhantes de James Joyce em Ulysses, mas há muitas outras - se concentraram em Hamlet. Essa atenção biográfica para uma obra derivada de materiais reciclados e escrita para o palco público poderia parecer inerentemente implausível, não fosse pela impressão avassaladora, sobre leitores e espectadores igualmente, de que a peça deve ter surgido de maneira incomumente direta da vida íntima do dramaturgo e que, de fato, em certos momentos, o autor mal controlava seu material. Tentarei no que se segue atribuir Hamlet a uma experiência dolorosa pessoal, e esboçar uma hipótese de estratégia estética duradoura que parece ter surgido dessa experiência.
Em algum momento na primavera ou no verão de 1596, Shakespeare deve ter recebido a notícia de que seu único filho, Hamnet, de 11 anos, estava doente. Estivesse ele em Londres ou em turnê com sua companhia, teria no máximo recebido notícias esporádicas de sua família em Stratford, mas em algum momento no verão ele presumivelmente soube que o estado de Hamnet havia piorado e que era necessário abandonar tudo e correr para casa. Quando o pai chegou a Stratford, o menino - que, exceto por breves visitas, Shakespeare realmente o havia abandonado na infância - talvez já estivesse morto. Em 11 de agosto de 1596, Hamnet foi enterrado junto à Igreja da Santíssima Trindade, e o escrivão anotou devidamente no registro de enterros "Hamnet filius William Shakspere".
Diferentemente de Ben Jonson e outros que escreveram poemas cheios de dor sobre a perda de filhos amados, Shakespeare não publicou elegias nem deixou um registro direto de seus sentimentos paternos. Às vezes se diz que na época de Shakespeare os pais não podiam investir muito amor ou esperança em um filho. Uma em cada três crianças morria antes de completar 10 anos de idade, e os índices de mortalidade eram excessivamente altos pelos nossos padrões atuais. A morte era um espetáculo familiar e acontecia em casa. Quando Shakespeare tinha 14 anos, sua irmã Anne, de 7, morreu, e em muitas outras ocasiões ele deve ter testemunhado a morte de crianças.
Nos quatro anos seguintes à morte de Hamnet, o dramaturgo, como muitos já indicaram, escreveu algumas de suas comédias mais irreverentes - As Alegres Comadres de Windsor, Muito Barulho por Nada, Como Gostais. Esse fato, para alguns, é uma evidência decisiva de que a dor do pai deve ter sido breve. Mas as peças desses anos não foram uniformemente alegres, e em certos momentos parecem refletir uma experiência de profunda perda pessoal. Em King John, provavelmente escrita em 1596, logo após o enterro do menino, Shakespeare retrata uma mãe tão desesperada com a morte do filho que é levada a pensar em suicídio. Observando-a, um religioso comenta que ela está louca, mas ela insiste que está perfeitamente sã: "Não estou louca; Deus quisesse que sim!" A razão, ela diz, e não a loucura, pôs em sua cabeça as ideias de suicídio, pois é a razão que conserva tenazmente a imagem de seu filho. Quando ela é acusada de insistir perversamente em sua dor, responde com uma simplicidade eloquente que sobressai da trama complexa:
Grief fills the room up of my absent child,
Lies in his bed, walks up and down with me,
Puts on his pretty looks, repeats his words,
Remembers me of all his gracious parts,
Stuffs out his vacant garments with his form.
(III.4.93-97)
Se não há uma ligação segura entre esses versos e a morte de Hamnet, pelo menos não existe motivo para se pensar que Shakespeare simplesmente enterrou seu filho e seguiu sua vida de forma inabalável. Ele pode ter-se retraído obsessivamente, mesmo enquanto fazia as plateias rir com Falstaff apaixonado ou com as disputas bem-humoradas de Beatriz e Benedito. Tampouco é implausível que tenha levado anos para que o trauma da morte do filho surgisse plenamente na obra de Shakespeare, ou que tenha sido desencadeado por uma conjunção acidental de nomes. Pois Hamnet e Hamlet são na verdade o mesmo nome, totalmente intercambiáveis nos registros de Stratford no final do século 16 e início do século 17. Shakespeare batizou seu filho com o nome de seu vizinho e amigo não-conformista [católicos que se recusavam a aceitar a igreja da Inglaterra e eram perseguidos pela lei] Hamnet Sadler, que ainda vivia em março de 1616, quando o dramaturgo escreveu seu testamento e deixou 26 xelins e 8 pence para "Hamnet Sadler, para que compre um anel".
Escrever uma peça sobre Hamlet, por volta de 1600, talvez não tenha sido ideia do próprio Shakespeare. Pelo menos uma peça - o texto foi perdido - já tinha sido apresentada no palco inglês sobre um príncipe dinamarquês que vinga o assassinato de seu pai, e teve sucesso suficiente para ser casualmente mencionada por autores da época, como se todo mundo a tivesse visto ou pelo menos a conhecesse. Alguém do grupo teatral Lord Chamberlain's Men, de olho nas receitas, pode simplesmente ter sugerido a Shakespeare que estava na hora de uma versão melhorada da história de Hamlet. Devido a sua grande participação nos lucros da companhia, o dramaturgo estava sempre alerta para qualquer coisa que atraísse as multidões, e já tinha então uma longa experiência em desempoeirar antigas peças e torná-las surpreendentemente novas. O provável autor da primeira peça, Thomas Kyd, não era obstáculo: havia morrido em 1594, aos 36 anos, possivelmente destruído pela tortura que lhe infligiram quando foi interrogado sob as acusações de blasfêmia e ateísmo. Em todo caso, nem Shakespeare nem seus contemporâneos tinham pruridos em furtar obras uns dos outros.
Shakespeare certamente havia visto a primeira peça de Hamlet, talvez em diversas ocasiões. Quando começou a trabalhar em sua nova tragédia, provavelmente a sabia de cor ou tanto quanto quis lembrar-se. É impossível determinar, nesse caso, se ele se sentou com os livros abertos à sua frente como fez claramente, por exemplo, ao escrever Antônio e Cleópatra ou se confiou em sua memória, mas certamente havia lido uma e talvez mais de uma versão da antiga história dinamarquesa de assassinato e vingança. No mínimo, a julgar pela peça que escreveu, ele leu cuidadosamente a história como foi narrada em francês por François de Belleforest, cuja coletânea de contos trágicos foi um fenômeno editorial no final do século 16. Belleforest havia tirado a história de Hamlet de uma crônica da Dinamarca compilada em latim no final do século 12 por um dinamarquês conhecido como Saxo, o Gramático. E Saxo, por sua vez, estava reciclando lendas escritas e orais que remontavam a séculos antes de sua época. Aqui, como frequentemente aconteceu em toda a sua carreira, Shakespeare estava trabalhando com materiais conhecidos uma história, estabelecida, um elenco de personagens familiares, um conjunto de emoções previsíveis.
Se Shakespeare tivesse morrido em 1600, teria sido difícil pensar que faltava alguma coisa em sua realização, e ainda mais difícil pensar que alguma coisa ainda não realizada estivesse fermentando em seu trabalho. Mas Hamlet deixa claro que Shakespeare estivera silenciosa e constantemente desenvolvendo uma habilidade técnica especial. Esse desenvolvimento pode ter sido totalmente deliberado, consequência de um claro projeto profissional, ou pode ter sido mais casual e oportunista. A realização foi, de todo modo, gradual: não uma descoberta súbita e definitiva de uma invenção grandiosa, mas o sutil refinamento de um certo conjunto de técnicas de representação. Na virada do século 16 para o 17, Shakespeare estava pronto para fazer um avanço notável: ele havia dominado os meios de representar a interiorização.
A tarefa de transmitir uma vida interior é imensamente desafiadora no teatro, já que o que o público vê e ouve é sempre em certo sentido um discurso público, as palavras que os personagens dizem uns aos outros, ou, em comentários e monólogos ocasionais, diretamente para os espectadores. Os dramaturgos podem fingir, é claro, que a plateia está escutando uma espécie de monólogo interior, mas é difícil evitar que esses monólogos soem "encenados". Richard III, escrita em 1591 ou 1592, é uma peça imensamente enérgica e poderosa, com um personagem principal maravilhoso e inesquecível que acaba parecendo estranhamente falso e artificial quando, sozinho à noite, revela ao público o que se passa em seu interior:
It is now dead midnight.
Cold fearful drops stand on my trembling flesh.
What do I fear? Myself? There's none else by.
Richard loves Richard; that is, I am I.
Is there a murderer here? No. Yes. I am.
Then fly! What, from myself? Great reason. Why?
Lest I revenge? Myself upon myself?
Alack, I love myself. Wherefore? For any good
That I myself have done unto myself?
O no, alas, I rather hate myself
For hateful deeds committed by myself.
I am a villain. Yet I lie: I am not.
(V.5.134-145)
Shakespeare está dramatizando a crônica que foi sua fonte, segundo a qual Ricardo não conseguiu dormir na véspera de sua morte porque sentia uma estranha dor de consciência. Mas apesar de seu vigor em staccato o solilóquio, como representação do conflito interno, [o solilóquio] é esquemático e mecânico, como se dentro do personagem no palco simplesmente houvesse outro pequeno palco onde bonecos apresentassem um espetáculo de polichinelo.
Em Richard II, escrita cerca de três anos depois, há um momento comparável que marca a habilidade florescente de Shakespeare. Deposto e preso por seu primo Bolingbroke, o rei arruinado, pouco antes de ser assassinado, olha para dentro de si:
I have been studying how I may compare
This prison where I live unto the world;
And for because the world is populous,
And here is not a creature but myself,
I cannot do it. Yet I'll hammer it out.
My brain I'll prove the female to my soul,
My soul the father, and these two beget
A generation of still-breeding thoughts.
(V.5.1-7)
Grande parte da diferença entre os dois trechos tem a ver com os personagens muito díspares entre si: um deles é um tirano assassino cheio de energia maníaca; o outro, um poeta mimado, narcisista e autodestrutivo. Mas a passagem de um personagem para o outro é significativa em si e indica o crescente interesse de Shakespeare pelos processos ocultos da interiorização. Trancado em um quarto sem janelas, Richard II observa seu pensamento, luta para forjar uma ligação metafórica entre sua prisão e o mundo, chega a um impasse e então força sua imaginação a renovar o esforço: "Yet I'll hammer it out" # ["Vou conseguir à força"]. O mundo, cheio de gente, não é, como ele admite, remotamente comparável à solidão de sua cela de prisão, mas Richard decide gerar, a partir do que ele imagina como o intercurso entre seu cérebro e sua alma, uma multidão imaginária. O que ele produz à força é uma espécie de teatro interior, semelhante ao já encontrado no solilóquio de Richard III, mas com uma complexidade, uma sutileza e, sobretudo, com uma autoconsciência enormemente ampliadas. Agora o próprio personagem está consciente de que ele construiu esse teatro e extrai as sombrias implicações do mundo imaginário que se esforçou para criar:
Thus play I in one person many people,
And none contented. Sometimes am I king;
Then treason makes me wish myself a beggar,
And so I am. Then crushing penury
Persuades me I was better when a king,
Then am I kinged again, and by and by
Think that I am unkinged by Bolingbroke,
And straight am nothing. But whate'er I be,
Nor I, nor any man that but man is,
With nothing shall be pleased till he be eased
With being nothing.
(V.5.31-41)
Ricardo II caracteristicamente ensaia o drama de sua queda do reinado como uma queda no nada e então formula sua experiência da perda de identidade - "seja o que for" - em um complexo poema de desespero. Escrita em 1595, Richard II marcou um grande avanço na capacidade do autor de representar a interiorização, mas Júlio César, escrita quatro anos depois, mostra que, descontente com o que havia conseguido, Shakespeare sutilmente experimentou novas técnicas. Só, andando por seu pomar no meio da noite, Brutus começa a falar:
It must be by his death. And for my part
I know no personal cause to spurn at him,
But for the general. He would be crowned.
How that might change his nature, there's the question.
It is the bright day that brings forth the adder,
And that craves wary walking. Crown him: that!
(II.1.10-15)
Esse solilóquio é muito menos fluido, uma meditação poética menos elegante e contida que o solilóquio na prisão de Richard II. Mas tem algo surpreendentemente novo: as marcas inconfundíveis do verdadeiro pensamento. Richard fala em forçar as ideias, mas as palavras que pronuncia são altamente polidas. As palavras de Brutus, em contraste, parecem fluir imediatamente das idas e vindas de sua mente vacilante, enquanto ele aborda uma série de questões importantes: Como deve reagir ao desejo da multidão de coroar o ambicioso César? Como pode equilibrar sua amizade pessoal com César diante do que ele imagina ser o bem comum? Como poderia César, que até agora serviu a esse bem comum, mudar de natureza e tornar-se perigoso se for coroado? "Deve ser por sua morte": sem prelúdio, a plateia é lançada em meio aos pensamentos obsessivos de Brutus. É impossível saber se ele está avaliando uma proposta, testando uma decisão, reiterando palavras ditas por outra pessoa. Ele não precisa mencionar de quem é a morte que contempla, tampouco precisa esclarecer - pois já faz parte de seu pensamento - que será por assassinato.
Brutus fala para si mesmo, e suas palavras têm a taquigrafia peculiar do cérebro em funcionamento. "Coroe-o: é isso!" a exclamação é quase incompreensível, exceto como uma explosão de raiva apaixonada provocada por uma imagem fantasmagórica que passa naquele instante pela mente do orador. Os espectadores são atraídos a uma proximidade assustadora, assistindo em primeira mão à formação de uma decisão fatal a determinação de assassinar César que mudará o mundo. Alguns momentos depois, Brutus, intensamente consciente, descreve para si mesmo o estado de consciência confuso em que se encontra:
Between the acting of a dreadful thing
And the first motion, all the interim is
Like a phantasma or a hideous dream.
The genius and the mortal instruments
Are then in counsel, and the state of man,
Like to a little kingdom, suffers then
The nature of an insurrection.
(II.1.63-69)
Seria neste momento, em 1599, que Shakespeare concebeu pela primeira vez a possibilidade de escrever sobre um personagem suspenso, durante toda a peça, nessa estranha temporiedade? Brutus não é exatamente um personagem desse tipo: na metade de Júlio César, ele já fez a coisa terrível e matou seu mentor e amigo possivelmente seu próprio pai. No restante da peça, Brutus revela as consequências fatais de seu ato.
Se Shakespeare não o compreendeu de imediato, no ano seguinte entendeu perfeitamente que havia um personagem, já popular no palco elisabetano, cuja vida ele poderia retratar como uma longa fantasmagoria ou um sonho odioso. Esse personagem, o príncipe da rebelião interiorizada, era Hamlet.
Mesmo em sua mais antiga narrativa medieval, a saga de Hamlet era a história do longo intervalo entre o primeiro movimento ou impulso ou desígnio inicial e a realização da coisa terrível. No relato de Saxo, o Gramático, o assassinato do pai de Amleth, Horwendill (equivalente ao velho rei Hamlet), por seu invejoso irmão Feng (equivalente a Cláudio), não era segredo. Falando sobre "fratricídio com uma aparência de justiça", o assassino afirmava que Horwendill abusava cruelmente de sua delicada mulher, Gerutha. Na realidade, o impiedoso Feng simplesmente havia se apoderado do reino e da mulher de seu irmão. Ninguém estava disposto a contestar o usurpador. O único desafiante potencial era Amleth, o jovem filho de Horwendill, pois, pelo código consagrado dessa sociedade pré-cristã, um filho era estritamente obrigado a vingar o assassinato de seu pai.
Feng conhecia esse código tão bem quanto qualquer outro, portanto era de se esperar que ele agisse rapidamente para eliminar a futura ameaça. Se o menino não encontrasse imediatamente um estratagema inteligente, sua vida seria muito breve. Para chegar à idade adulta para sobreviver o suficiente para poder vingar-se, Amleth fingiu-se de louco, convencendo seu tio de que jamais representaria um perigo. Sujo e letárgico, ele se sentava junto ao fogo distraidamente, quebrando gravetos e transformando-os em ganchos farpados. Embora o cauteloso Feng usasse constantemente intermediários (os precursores de Ofélia, Rosencrantz e Guildenstern) para tentar descobrir alguma fagulha de inteligência por trás da aparente idiotice de seu sobrinho, Amleth habilmente evitava a detecção. Ele aguardava, escapava das armadilhas e fazia planos secretos. Tratado como louco, com zombaria e desprezo, ele afinal conseguiu queimar até a morte todo o séquito de Feng, trespassou seu tio com uma espada, convocou uma assembleia de nobres, explicou por que tinha feito aquilo e foi entusiasticamente aclamado o novo rei. "Muitos ficaram maravilhados pelo modo como ele ocultara um plano tão sutil durante um espaço de tempo tão longo."
Assim, Amleth passou anos no estado de suspensão que Brutus mal pôde suportar por alguns dias. Shakespeare havia desenvolvido os meios para representar a experiência psicológica dessa condição, algo que nem Saxo nem seus seguidores sonharam conseguir. Ele viu que a história de Hamlet, madura para uma revisão, lhe permitiria fazer uma peça sobre o que é viver voltado para dentro no intervalo nauseante entre um plano assassino e seu cumprimento. O problema, porém, é que o teatro não é especialmente tolerante a longos períodos de gestação: seria extremamente difícil representar de modo dramaticamente excitante a criança Hamlet fingindo idiotice durante anos até chegar à idade em que poderia agir. A solução óbvia, provavelmente já alcançada na peça perdida, é começar a ação no ponto em que Hamlet atinge a maioridade e está pronto para cometer seu ato de vingança.
No Hamlet de Saxo, o Gramático, assim como na história popular de Belleforest, nenhum fantasma aparecia. Não havia necessidade de fantasma, pois o assassinato era de conhecimento público, assim como a obrigação de o filho se vingar. Mas quando Shakespeare começou a escrever sua versão da história, fosse seguindo a direção de Kyd ou a sua própria, fez do assassinato um segredo. Todo mundo na Dinamarca acredita que o velho Hamlet foi picado fatalmente por uma serpente. O fantasma aparece para contar a terrível verdade: "A serpente que picou a vida de teu pai/ Hoje usa sua coroa" (I.5.39-40).
A peça de Shakespeare começa pouco antes de o fantasma revelar o assassinato para Hamlet e termina logo depois de Hamlet praticar sua vingança. Portanto, as mudanças decisivas na trama de um assassinato público, conhecido por todos, para um assassinato secreto, revelado somente a Hamlet pelo fantasma do homem assassinado permitiram que o dramaturgo concentrasse quase toda a tragédia na consciência do herói suspenso entre seu "primeiro movimento" e "a realização de uma coisa terrível". Mas alguma coisa na trama precisa representar essa suspensão. Afinal, nessa versão revisada, Hamlet não é mais uma criança que precisa de tempo, e o assassino não tem motivos para suspeitar de que Hamlet tenha ou possa ter um dia alguma pista de seu crime. Longe de se manter à distância do sobrinho (ou de armar testes sutis para ele), Cláudio se recusa a deixar Hamlet voltar à universidade, chama-o gentilmente de "nosso principal cortesão, primo e filho", e declara que ele é o próximo na sucessão ao trono. Depois que o fantasma de seu pai revela a verdadeira causa da morte, Hamlet, que tem franco acesso ao desprotegido Cláudio, está na posição perfeita para agir imediatamente. E essa reação instantânea é exatamente o que o próprio Hamlet antecipa:
Haste, haste me to know it, that with wings as swift
As meditation or the thought of love
May sweep to my revenge.
(I.5.29-31)
A peça deveria terminar no fim do primeiro ato. Mas Hamlet enfaticamente não corre para a vingança. Assim que o fantasma desaparece, ele diz às sentinelas e a seu amigo Horácio que pretende "to put an antic disposition on" (exibir uma disposição extravagante) isto é, fingir que está louco. O comportamento fazia muito sentido na antiga versão da história, em que era um dos estratagemas para evitar suspeitas e ganhar tempo. O emblema daquela época, e a prova do brilhante e prolongado plano do vingador, eram os ganchos de madeira que o menino Amleth, aparentemente perturbado, cortava interminavelmente com sua pequena faca. Esses foram os meios que, no clímax da história, Amleth usou para prender uma rede sobre os cortesãos adormecidos, antes de incendiar o salão. O que parecia uma distração sem sentido passou a ser uma estratégia brilhante. Mas em Shakespeare, a loucura fingida de Hamlet não é mais taticamente coerente. O dramaturgo na verdade destruiu a trama poderosa e coerente que suas fontes lhe forneceram, e dos destroços construiu o que a maioria das plateias modernas consideraria a melhor peça que escreveu.
Longe de oferecer proteção, a disposição extravagante leva o assassino a vigiar Hamlet estreitamente, a pedir opiniões a seu conselheiro Polônio, a discutir o problema com Gertrudes, a observar cuidadosamente Ofélia, a enviar Rosencrantz e Guildenstern para espionar seu amigo. Em vez de levar a corte a ignorá-lo, a loucura de Hamlet torna-se objeto de interminável especulação de todos. E, muito estranhamente, a especulação carrega Hamlet consigo: "I have of late-but wherefore I know not-lost all my mirth" (Ultimamente perdi toda a minha alegria). "Mas onde não sei", Hamlet, totalmente consciente de que está falando para espiões da corte, não murmura uma palavra sobre o fantasma de seu pai, mas não fica claro que o fantasma é responsável por sua depressão. Já na primeira cena em que aparece, antes de ter encontrado o fantasma, Hamlet diz para si mesmo, como o mais íntimo segredo de seu coração, a mesma desilusão que ele revela para Rosencrantz e Guildenstern:
O God, O God,
How weary, stale, flat, and unprofitable
Seem to me all the uses of this world!
Fie on't, ah fie, fie! 'Tis an unweeded garden
That grows to seed; things rank and gross in nature
Possess it merely.
(I.2.132-127)
A morte de seu pai e o casamento apressado da mãe, eventos públicos e não revelações secretas, o levaram a pensamentos de "autoimolação".
Ao ressaltar o raciocínio estratégico da loucura de Hamlet, Shakespeare o transformou no foco central de toda a tragédia. O momento chave de revelação psicológica na peça - que todos se lembram - não é o herói tramando a vingança, nem suas autocensuras apaixonadas pela inação, mas sim sua contemplação do suicídio: "Ser ou não ser; eis a questão". Esse ímpeto suicida nada tem a ver com o fantasma - Hamlet esqueceu a aparição, a ponto de falar da morte como # "The undiscovered country from whose bourn/No traveller returns" (O país não descoberto de cujas fronteiras/ Nenhum viajante retorna), mas tem a ver com uma doença da alma provocada por um dos "thousand natural shocks/That flesh is heir to" (mil choques naturais/ De que a carne é herdeira).
Hamlet marca uma ruptura na carreira de Shakespeare por sugerir um motivo mais pessoal para sua ousada transformação, tanto de suas fontes quanto de toda a sua maneira de escrever. Um simples indício dessa transformação é o surpreendente fluxo de novas palavras, palavras que ele não havia usado antes em cerca de 21 peças e dois poemas longos que havia escrito até então. Estudiosos calcularam que há mais de 600 dessas palavras, muitas delas novas não apenas para Shakespeare, mas também para o registro escrito da língua inglesa compulsive, fanged, besmirch, intruding, overgrowth, pander, outbreak, unfledged, unimproved, unnerved, unpolluted, unweeded, para citar somente algumas. Algo devia estar em gestação em Shakespeare, algo poderoso o suficiente para provocar essa explosão linguística. Como as plateias e os leitores há muito tempo compreenderam instintivamente, a dor apaixonada, provocada pela morte de um ser amado, está no cerne da tragédia de Shakespeare. Mesmo que a decisão de refazer a antiga tragédia de Hamlet tenha ocorrido a Shakespeare por considerações estritamente comerciais, a coincidência de nomes escrever repetidamente o nome de seu filho morto enquanto compunha a peça pode ter reaberto uma ferida profunda que ainda não havia cicatrizado.
Mas, é claro, em Hamlet não é a morte de um filho, mas de um pai, que provoca a crise espiritual do herói. Se a tragédia surgiu da vida do próprio Shakespeare se puder ser atribuída à morte de Hamnet e à escrita repetida do nome, alguma coisa deve ter feito o dramaturgo ligar a perda de seu filho à perda imaginária de seu pai. Digo "imaginária" porque o pai de Shakespeare foi enterrado no cemitério da Santíssima Trindade em 8 de setembro de 1601: pode ter sido uma premonição, mas ele estava vivo quando a tragédia foi escrita e talvez ainda estivesse vivo quando foi apresentada pela primeira vez. Na imaginação de Shakespeare, como a morte de seu pai poderia ter-se ligado tão intimamente à de seu filho?
Shakespeare voltou a Stratford para o enterro do filho. O ministro, como exigiam os regulamentos da época, teria recebido o cadáver na entrada do cemitério e o acompanhado até o túmulo. Shakespeare deve ter ficado ali e escutado as palavras do serviço protestante. Enquanto a terra era atirada sobre o corpo, o ministro entoou as palavras: "Já que agradou a Deus Todo-Poderoso levar consigo a alma de nosso querido irmão, entregamos seu corpo ao chão, terra à terra, cinzas às cinzas, pó ao pó, na esperança certeira da ressurreição para a vida eterna".
Shakespeare teria achado adequado esse serviço simples e eloquente, ou ficou atormentado pela sensação de que faltou alguma coisa? "Que outra cerimônia?", grita Laerte junto ao túmulo de sua irmã Ofélia. Os ritos fúnebres da personagem Ofélia foram abreviados porque ela era suspeita do pecado de suicídio, e Laerte é ao mesmo tempo raso e impertinente. Mas a pergunta que ele faz repetidamente ecoa por todo o Hamlet e articula uma preocupação que se estende além dos limites da peça. Na memória viva, toda a relação entre os vivos e os mortos havia mudado. Talvez no Lancashire conservador, onde Shakespeare pode ter vivido brevemente na juventude, senão mais perto de casa, ele tivesse visto vestígios da antiga prática católica: velas queimando noite e dia, cruzes em toda parte, sinos tocando constantemente, parentes chorando e fazendo o sinal da cruz, vizinhos visitando o cadáver e dizendo junto dele um Pater noster ou um De profundis, esmolas e alimentos distribuídos em memória do morto, padres pagos secretamente para rezar missas, para facilitar a perigosa passagem da alma pelo purgatório.
Tudo isso fora atacado durante décadas; tudo fora reduzido, empurrado para o subterrâneo ou totalmente eliminado. Naquela época era ilegal rezar pelos mortos.
A crença no purgatório talvez tenha sido exagerada, e muitos católicos fiéis achavam que foi, mas ela tentava abordar temores e sentimentos que não desapareciam quando oficiais da Igreja e do Estado afirmavam que os mortos estavam além de qualquer contato terreno. A cerimônia não era a única questão, ou a principal: o que importava era se os mortos podiam continuar falando com os vivos, pelo menos durante algum tempo, se os vivos podiam ajudar os mortos, se permanecia uma ligação. Quando Shakespeare estava no cemitério vendo a terra cair sobre o corpo de seu filho, teria pensado que sua relação com Hamnet tinha desaparecido sem deixar vestígios?
Talvez. Mas também é possível que ele tenha achado o serviço dolorosamente inadequado, com sua recusa deliberada em tratar a criança morta como um "tu", sua redução do ritual e da cerimônia, sua negação de qualquer possibilidade de comunicação. E se ele pôde aceitar a compreensão protestante dessas coisas, outros próximos a ele certamente não puderam. Sua mulher, Anne, deve ter ficado junto ao túmulo de Hamnet, e também os pais de Shakespeare, John e Mary. Na verdade, os avós tinham passado muito mais tempo com o menino do que o pai, pois enquanto Shakespeare estava em Londres, eles moravam na mesma casa em Stratford, com a nora e os três netos. Os avós ajudaram a criar Hamnet e devem ter cuidado do menino durante sua doença.
Quanto às crenças de seus pais em relação à vida após a morte, especificamente as crenças de seu pai, existem algumas evidências que apontam para conexões católicas e crenças católicas semiocultas, e que sugerem que John Shakespeare gostaria que se fizesse algo pela alma de Hamnet, algo que talvez ele pedisse com urgência para seu filho fazer, ou que ele mesmo teria feito. As discussões ou súplicas ou lágrimas que podem ter acompanhado esses apelos se perderam irrevogavelmente. Mas é possível inferir o que o pai de Shakespeare (e, presumivelmente, sua mãe, ligada por nascimento a uma família muito católica de Warwickshire) consideraria necessário, adequado, caritativo, amoroso e, em uma palavra, cristão um ato nesse sentido.
Os católicos não-conformistas, impedidos da confissão e da comunhão habituais, com frequência tinham intenso temor de uma morte que impedisse a oportunidade ritual de acertar as contas do pecador com Deus e de mostrar uma contrição apropriada, purificadora. (Essa é exatamente a morte que o pai de Hamlet, assassinado durante o sono, sofreu: "No reck'ning made, but sent to my account/With all my imperfections on my head./O, horrible! O, horrible! most horrible!" (Sem um reconhecimento, mas enviado a minha prestação de contas/ Com todas as imperfeições sobre minha cabeça/ Oh, terrível! Oh, demasiado terrível!). Quaisquer máculas que permanecessem após a morte teriam de ser queimadas na agonia do purgatório, a menos que os vivos tomassem medidas para aliviar o sofrimento e reduzir o tempo de prisão após a vida. Em 1596, no funeral de Hamnet, essa questão pode ter surgido. A alma do menino precisava da ajuda daqueles que o amavam. John Shakespeare bem poderia ter pedido a seu próprio filho William que pagasse missas para a criança morta, assim como sem dúvida queria que rezassem missas por sua própria alma. Pois seu pai estava ficando velho e em breve precisaria dos "trabalhos satisfatórios" capazes de abreviar a duração de sua agonia no além-vida.
Se esse assunto delicado foi tratado, o dramaturgo teria sacudido a cabeça com irritação, ou teria pago silenciosamente missas clandestinas pela alma de Hamnet? Ele contou a seu pai que não podia dar ao filho ou, olhando à frente, que não daria a seu pai o que ele necessitava? Teria dito que não acreditava mais em toda a história da terrível prisão situada entre céu e inferno, onde os pecados da vida eram queimados e purgados?
Seja o que for que decidiu na época, Shakespeare ainda devia meditar a respeito no final de 1600 e começo de 1601, quando se sentou para escrever uma tragédia cujo herói infeliz levava o nome de seu filho morto. Seus pensamentos devem ter sido intensificados pela notícia de que seu velho pai estava seriamente doente em Stratford, pois a ideia da morte do pai está profundamente entranhada na peça. E a morte do filho e a morte iminente do pai - uma crise de luto e memória - poderiam ter causado uma perturbação psíquica que ajudaria a explicar o poder explosivo e a interiorização de Hamlet.
Todos os funerais convidam os que estão junto ao túmulo a pensar em que acreditam. Mas o enterro do próprio filho faz mais que isso: obriga os pais a fazer perguntas sobre Deus e o Universo. Shakespeare deve ter frequentado serviços regulares em sua paróquia protestante ou seu nome teria surgido nas listas de não-conformistas. Mas ele acreditava no que ouvia e recitava? Suas obras sugerem que tinha fé de algum tipo, mas não uma fé seguramente orientada para a Igreja Católica ou a Igreja da Inglaterra. No final da década de 1590, na medida em que sua fé poderia ser situada em uma instituição, essa seria o teatro, e não somente no sentido de que suas mais profundas energias e expectativas se concentravam nele.
Shakespeare percebia que os rituais cruciais da morte em sua cultura tinham sido expurgados. Talvez ele tenha sentido isso com uma dor enorme junto ao túmulo de seu filho. Mas também acreditava que o teatro e sua arte em particular poderiam usar o grande reservatório desses sentimentos que, para ele e para milhares de seus contemporâneos, deixaram de ter um escoamento satisfatório. A reforma religiosa lhe oferecia, na verdade, um presente extraordinário e ele saberia como aceitar e usar esse presente. Shakespeare não era indiferente ao sucesso que poderia alcançar, mas não era somente uma questão de lucro. O dramaturgo usou a confusão, a dor e o temor da morte em um mundo de rituais danificados, o mundo em que a maioria de nós ainda vive porque ele mesmo experimentou essas emoções em 1596 no funeral de seu filho, e mais tarde, na morte de seu pai. Ele não reagiu com orações, mas com a mais profunda expressão de seu ser: Hamlet.
Com Hamlet, Shakespeare fez uma descoberta por meio da qual relançou toda a sua carreira. A novidade crucial não envolvia desenvolver novos temas ou aprender a construir uma trama mais acabada, tinha a ver com uma intensa representação da interiorização, produzida por uma nova técnica de excisão radical. Ele repensou o modo de montar uma tragédia especificamente, repensou a quantidade de explicação causal de que uma trama trágica precisava para funcionar com eficácia, e o volume de raciocínio psicológico explícito de que um personagem precisava para ser convincente. O dramaturgo descobriu que podia aprofundar incomensuravelmente o efeito de suas peças, que podia provocar na plateia e em si mesmo uma intensidade de reação peculiarmente apaixonada, se removesse um elemento explanatório chave, ocultando assim a razão, a motivação ou o princípio ético que explicava a ação que se desenrolaria. O objetivo não era criar um enigma a ser solucionado, mas criar uma opacidade estratégica. Essa opacidade, Shakespeare descobriu, liberava uma enorme energia que havia sido pelo menos em parte bloqueada ou contida por explicações familiares e reconfortantes.
A obra de Shakespeare fora, por muito tempo, cética de explicações e desculpas oficiais aos relatos, fossem psicológicos ou teológicos, de por que as pessoas se comportam de determinada maneira. Suas peças haviam sugerido que as opções que as pessoas fazem no amor são quase totalmente inexplicáveis e irracionais, essa é a convicção que gera a comédia em Sonho de uma Noite de Verão e a tragédia em Romeu e Julieta. Mas pelo menos o amor era o motivo claramente identificável. Em Hamlet, Shakespeare descobriu que se se recusasse a dar a si mesmo ou a seu público uma razão familiar e reconfortante que parecesse dar sentido a tudo, poderia conseguir algo incomensuravelmente mais profundo. A chave não é simplesmente a criação da opacidade, pois isso apenas criaria uma peça surpreendente ou incoerente. Shakespeare passou cada vez mais a confiar na lógica interior, a coerência poética que seu gênio e seu trabalho já lhe permitiam dar às suas peças. Destruindo a estrutura dos significados superficiais, ele criou uma estrutura interna por meio da repetição ressonante de termos chaves, o sutil desenvolvimento de imagens, a brilhante orquestração das cenas, o complexo desenrolar das ideias, o entrelaçamento de enredos paralelos e a revelação de obsessões psicológicas.
Esse avanço conceitual em Hamlet foi técnico, isto é, afetou as opções práticas que Shakespeare fez quando montou a peça, começando pelo enigma da melancolia suicida e a suposta loucura do príncipe. Mas não foi apenas uma nova estratégia estética. A excisão do motivo deve ter surgido de algo mais que a experimentação técnica. Ocorrendo após a morte de Hamnet, essa mudança expressou a mais profunda percepção da existência por Shakespeare, sua compreensão do que se podia dizer e o que devia ficar não dito, sua preferência por coisas desalinhadas, danificadas e não-solucionadas às coisas nitidamente arranjadas, bem-feitas e definidas. A opacidade foi moldada por sua experiência do mundo e por sua própria vida interior: seu ceticismo, sua dor, seu senso de rituais rompidos, sua recusa aos consolos fáceis.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves