Esse texto, de 1948, deve ser lido pensando-se na sua finalidade original: como suporte para uma transmissão radiofônica, uma leitura a quatro vozes entremeada de gritos, uivo, efeitos sonoros com tambores, gongos e xilofones. (N. do t.)
Para Acabar com o Julgamento
de Deus
kré tudo isso deverá puc te
kré ser arranjado puk te
pek muito precisamente li le
kre numa sucessão pec ti le
e fulminante kruk
pte
Fiquei sabendo ontem
(devo estar desatualizado ou então é apenas um boato, uma dessas intrigas divulgadas entre a pia e a privada, quando as refeições ingurgitadas são mais uma vez devidamente expulsas para a latrina)
fiquei sabendo ontem
de uma das mais sensacionais dentre essas práticas das escolas públicas americanas
sem dúvida daquelas responsáveis por esse país considerar-se na vanguarda do progresso.
Parece que, entre os exames e testes requeridos a uma criaança que ingressa na escola pública, há o assim o assim chamado teste do líquido seminal ou do esperma,
que consiste em recolher um pouco do esperma da criança recém-chegada para ser colocado numa proveta
e ficar à disposição para experimentos de inseminação artificial que posteriormente venha a ser feitos.
Pois cada vez mais os americanos sentem falta de braços e crianças ou seja, não de operários
mas de soldados
e eles querem a todo custo e por todos os meios possíveis fazer e produzir soldados
com vistas a todas as guerras planetárias que poderão travar-se a seguir e que pretendem demonstrar pela esmagadora virtude da força a superioridade dos produtos americanos
e dos frutos do suor americano em todos os campos de atividade e da superioridade do possível dinamismo da força.
Pois é necessário produzir,
é necessário, por todos os meios de atividade humana, substituir a natureza onde esta possa ser substituída,
é necessário abrir mais espaço para a inércia humana,
é necessário ocupar os operários
é necessário criar novos campos de atividade
onde finalmente será instaurado o reino de todos os falsos produtos manufaturados
todos os ignóbeis sucedâneos sintéticos
onde a maravilhosa natureza real não tem mais lugar
cedendo finalmente e vergonhosamente diante dos triunfantes produtos artificiais
onde o esperma de todas as usinas de fecundação artificial operará milagres na produção de exércitos e navios de guerra.
Não haverá mais frutos, não haverá mais árvores, não haverá mais plantas, farmacológicas ou não, e consequentemente não haverá mais alimentos,
só produtos sintéticos até dizer chega,
entre os vapores,
entre os humores especiais da atmosfera, em eixos especiais de atmosferas extraídas violentamente e sinteticamente da resistência de uma natureza que da guerra só conheceu o medo.
E viva a guerra, não é assim?
Pois é assim – não é? – que os americanos vão se preparando passo a passo para a guerra.
Para defender essa insensata manufatura da concorrência que não pode deixar de aparecer por todos os lados,
é preciso ter soldados, exércitos, aviões, incouraçados,
daí o esperma
no qual os governos americanos tiveram o descaramento de pensar.
Pois temos mais de um inimigo
que nos espreita, meu filho,
a nós, os capitalistas natos
e entre esses inimigos
a Rússia de Stalin
à qual também não faltam homens em armas.
Tudo isso está muito bem
mas eu não sabia que os americanos eram um povo tão belicoso.
Para guerrear é preciso levar tiros
e embora tenha visto muitos americanos na guerra
eles sempre tiveram enormes exércitos de tanques, aviões, encouraçados, que lhes serviam de escudo.
Vi as máquinas combatendo muito
mas só infinitamente longe
lá atrás
vi os homens que as conduziam.
Diante desse povo que dá de comer aos seus cavalos, gado e burros
as últimas toneladas de morfina autêntica que ainda restam, substituindo-a por produtos sintéticos feitos de fumaça,
prefiro o povo que come da própria terra o delírio dso qual nasceram, refiro-me aos Taraumaras
comendo o Peiote rente ao chão
à medida que nasce,
que matam o sol para instaurar o reino da noite negra
e que esmagam a cruz pra que os espaços do espaço nunca mais possam encontrar-se e cruzar-se.
E assim vocês irão ouvir a dança de TUTUGURI.
TUTUGURI
O Rito do Sol Negro
E lá embaixo, no pé da encosta amarga,
cruelmente desesperada do coração,
abre-se o círculo das seis cruzes
bem lá embaixo
como se incrustada na terra marga,
desincrustrada do imundo abraço da mãe
que baba.
A terra do carvão negro
é o único lugar úmido
nessa fenda de rocha.
O Rito é o novo sol passar através de sete pontos antes de explodir no orifício da terra.
Há seis homens,
um para cada sol
e um sétimo homem
que é o sol
cru
vestido de negro e carne viva.
mas este sétimo homem
é um cavalo,
um cavalo com um homem conduzindo-o.
Mas é o cavalo
que é o sol
e não o homem.
No dilaceramento de um tambor e de uma trombeta longa,
estranha,
os seis homens
que estavam deitados
tombados no rés-do-chão,
brotaram um a um como girasóis,
não sósi
porém solo que giram,
lótus d'água,
e a cada um que brota
corresponde, cada vez mais sombria
e refreada
a batida do tambor
até que de repente chega a galope, a toda velocidade
o último sol,
o primeiro homem,
o cavalo negro com um
homem nu,
absolutamente nu
e virgem
em cima.
Depois de saltar, eles avançam em círculos crescentes
e o cavalo em carne viva empina-se
e corcoveia sem parar
na crista da rocha
até os seis homens
terem cercado
completamente
as seis cruzes.
Ora, o tom maior do Rito é precisamente
A ABOLIÇÃO DA CRUZ
Quando terminam de girar
arrancam
as cruzes do chão
e o homem nu
a cavalo
ergue
uma enorme ferradura
banhada no sangue de uma punhalada.
A BUSCA DA FELICIDADE
Onde cheira a merda
cheira a ser.
O homem podia muito bem não cagar,
não abrir a bolsa anal
mas preferiu cagar
assim como preferiu viver
em vez de aceitar viver morto.
Pois para não fazer cocô
teria que consentir em
não ser,
mas ele não foi capaz de se decidir a perder o ser,
ou seja, a morrer vivo.
Existe no ser
algo particularmente tentador para o homem
algo quem vem a ser justamente
O COCÔ
(aqui rugido)
Para existir basta abandonar-se ao ser
mas para viver
é preciso ser alguém
e para ser alguém
é preciso ter um OSSO,
é preciso não ter medo de mostrar o osso
e arriscar-se a perder a carne.
O homem sempre preferir a carne
à terra dos ossos.
Como só havia terra e madeira de ossos
ele viu-se obrigado a ganhar sua carne,
só havia ferro e fogo
e nenhuma merda
e o homem teve medo de perder a merda
ou antes desejou a merda
e para ela sacrificou o sangue.
Para ter merda,
ou seja, carne
onde só havia sangue
e um terreno baldio de ossos
onde não havia mais nada para ganhar
mas apenas algo para perder, a vida.
o reche modo
to edire
de za
tau dari
do padera coco
Então o homem recuou e fugiu.
E então os animais o devoraram.
Não foi uma violação,
ele prestou-se ao obsceno repasto.
Ele gostou disso
e também aprendeu
a agir como animal
e a comer seu rato
delicadamente.
E de onde vem essa sórdida abjeção?
Do fato de o mundo ainda não estar formado
ou de o homem ter apenas uma vaga idéia do que seja o mundo
querendo conservá-la eternamente?
Deve-se ao fato de o homem
ter um belo dia
detido
a idéia do mundo.
Dois caminhos estavam diante dele:
o do infinito de fora,
o do ínfimo de dentro.
E ele escolheu o ínfimo de dentro
onde basta espremer
o pâncreas,
a língua,
o ânus
ou a glande.
E deus, o próprio deus espremeu o movimento.
É deus um ser?
Se o for, é merda.
Se não o for,
não é.
Ora, ele não existe
a não ser como vazio que avança com todas as suas formas
cuja mais perfeita imagem
é o avanço de um incalculável número de piolhos.
"O Sr. está louco, Sr. Artaud? E então a missa?"
Eu renego o batismo e a missa.
Não existe ato humano
no plano erótico interno
que seja mais pernicioso que a descida
do pretenso jesus-cristo
nos altares.
Ninguém me acredita
e posso ver o público dando de ombros
mas esse tal cristo é aquele que
diante do percevejo deus
aceitou viver sem corpo
quando uma multidão
descendo da cruz
à qual deus pensou tê-los pregado há muito tempo,
se rebelava
e armada com ferros,
sangue,
fogo e ossos
avançava desafiando o Invisível
para acabar com o JULGAMENTO DE DEUS.
A QUESTÃO QUE SE COLOCA...
O que é grave
é sabermos
que atrás da ordem deste mundo
existe uma outra.
Que outra?
Não o sabemos.
O número e a ordem de suposições possíveis
neste campo
é precisamente
o infinito!
E que é o infinito?
Não o sabemos com certeza.
É uma palavra que usamos
para designar
a abertura
da nossa consciência
diante da possibilidade
desmedida,
inesgotável e desmedida.
E o que é a ciência?
Não o sabemos com certeza.
É o nada.
Um nada
que usamos
para designar
quando não sabermos alguma coisa
e de que forma
não o sabemos
e então
dizemos
consciência,
do lado da consciência
quando há cem mil outros lados.
E então?
Parece que a consciência
está ligada
em nós
ao desejo sexual
e à fome.
mas poderia
igualmente
não estar ligada
a eles.
Dizem,
é possível dizer,
há quem diga
que a consciência
é um apetite,
o apetite de viver:
e imediatamente
junto com o apetite de viver
o apetite da comida
imediatamente nos vem à mente;
como se não houvesse gente que come
sem o mínimo apetite;
e que tem fome.
Pois isso também
existe:
os que tem fome
sem apetite;
e então?
Então
o espaço do possível
foi-me apresentado
um dia
como um grande peido
que eu tivesse soltado;
mas nem o espaço
nem a possibilidade
eu sabia exatamente o que fossem,
nem sentia necessidade de pensar nisso,
eram palavras
inventadas para definir coisas
que existiam
diante da premente urgência
de uma necessidade:
suprimir a idéia,
a idéia e seu mito
e no lugar instaurar
a manifestação tonante
dessa necessidade explosiva:
dilatar o corpo da minha noite interior,
do nada interior
do meu eu
que é noite,
nada,
irreflexão,
mas que é explosiva afirmação
de que há
alguma coisa
para dar lugar:
meu corpo.
Mas como,
reduzir meu corpo
a um gás fétido?
Dizer que tenho um corpo
porque tenho um gás fétido
que se forma em mim?
Não sei
mas
sei que
o espaço,
o tempo,
a dimensão
o devir,
o futuro
o destino,
o ser,
o não-ser,
o eu,
o não-eu
nada são para mim;
mas há uma coisa
que é algo,
uma coisa
que é algo
e que sinto
por ela querer
SAIR:
a presença
da minha dor
do corpo,
a presença
ameaçadora
infatigável
do meu corpo;
e ainda que me pressionem com perguntas
e por mais que eu me esquive a elas
há um ponto
em que me vejo forçado
a dizer não,
NÃO
à negação;
e chego a esse ponto
quando me pressionam,
e me apertam
e me manipulam
até sair de mim
o alimento
e seu leite,
e então o que fica?
Fico eu sufocado;
e não sei que ação é essa
mas ao me pressionarem com perguntas
até a ausência
e a anulação
da pergunta
eles me pressionam
até sufocarem em mim
a idéia de um corpo
e de ser um corpo,
e foi então que senti o obsceno
e que
soltei um peido
de saturação
e de excesso
e de revolta
pela minha sufocação.
É que me pressionavam
ao meu corpo
e contra meu corpo
e foi então
que eu fiz tudo explodir
porque no meu corpo
não se toca nunca
CONCLUSÃO
– E para que serviu essa emissão radiofônica, Sr. Artaud?
– Em primeiro lugar para denunciar um certo número de sujeiras
sociais oficialmente sacramentadas e aceitas:
1o essa emissão do esperma infantil doado por crianças par a fecundação artificial de fetos ainda por nascer e que virão ao mundo dentro de um ou mais séculos.
2o para denunciar este mesmo povo americano que ocupou completamente todo o continente dos Índios e que fez renascer o imperialismo guerreiro da antiga América, o qual fez com que o povo indígena anterior a Colombo fosse por toda a humanidade precedente.
3o Sr. Artaud, que coisas estranhas o Sr. está dizendo!
4o Sim, estou dizendo coisas estranhas,
pois contrariamente ao que todos foram levados a crer, os povos anteriores a Colombo eram estranhamente civilizados
e isso pelo fato de conhecerem uma forma de civilização baseada exclusivamente no princípio da crueldade.
5o E o que, exatamente,
vem a ser isso de crueldade?
6o Isso eu não sei responder.
7o Crueldade significa extirpar pelo sangue e através do sangue a deus,
o acidente bestial da animalidade humana inconsciente, onde quer que se encontre.
8o O homem, quando não é reprimido, é um animal erótico, há nele um frêmito inspirado,
uma espécie de pulsação
que produz numeráveis animais os quais são formas que os antigos povos terrestres universalmente atribuíam a deus.
Daí surgiu o que chamaram de espírito.
Ora, esse espírito originários dos Índios americanos reaparece hoje em dia sob aspectos científicos que meramente acentuam seu mórbido poder infeccioso, seu grave esta de vício, um vício no qual pululam doenças
pois, riam-se à vontade,
isso que chamam de micróbios
é deus.
e sabe o que os americanos e os russos usam para fazer seus átomos?
Usam os micróbios de deus.
– O Sr. está louco, Sr. Artaud.
Está delirando.
– Não estou delirando.
Não estou louco.
Afirmo que reinventaram os micróbio para impor uma nova idéia de deus.
Descobriram um novo meio de fazer deus aparecer em toda sua nocividade microbiana:
Inoculando-o no coração
onde é mais querido pelos homens
sob a forma de uma sexualidade doentia
nessa aparência sinistra de crueldade mórbida que ostenta sempre que se compraz em tetanizar e enlouquecer a humanidade como agora.
Ele usa o espírito de pureza de uma consciência que continuou cândida como a minha para asfixiá-la com todas as falsas aparências que espalha universalmente pelos espaços e é por isso que Artaud, o Momo, pode ser confundido com alguém que sofre de alucinações.
– O que o Sr. Artaud que dizer com isso?
– Quero dizer que descobri a maneira de acabar com esse macaco de uma vez por todas
e já que ninguém acredita mais em deus, todos acreditam cada vez mais no homem.
Assim, agora é preciso emascular o homem.
– Como?
Como assim? sob qualquer ângulo o Sr. não passa de um maluco, um doido varrido.
– Colocando-o de novo, pela última vez, na mesa de autópsia para refazer sua anatomia.
O homem é enfermo porque é mal construído.
Temos que nos decidir a desnudá-lo para raspar esse animalúculo que o corrói mortalmente,
deus
e juntamente com deus
os seus órgãos
Se quiserem, podem meter-me numa camisa de força
mas não existe coisa mais inútil que um órgão.
Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos,
então o terão libertado dos seus automatismos
e devolvido sua verdadeira liberdade.
Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas
como no delírio dos bailes populares
e esse avesso será
seu verdadeiro lugar.
(Escritos de Antonin Artaud, L&PM, 1983, trad. Cláudio
Willer).