O ININTELIGÍVEL
‘Traduzir’ a obra do bardo para o inglês moderno, sob
alegação de que no original é difícil de entender, soa como imensa bobagem
O Shakespeare
Festival de Oregon decidiu que a língua de Shakespeare é excessivamente difícil
para ser compreendida pelo público de hoje. E anunciou recentemente que, nos
próximos três anos, contratará 36 dramaturgos para traduzir todas as peças do
autor para o inglês moderno. Pessoas do mundo teatral sabiam que este momento
haveria de chegar, embora isso não contribua para atenuar o choque.
O festival era uma
das estrelas do firmamento shakespeariano desde a sua fundação, em 1935. Embora
os organizadores insistam que se comprometeram também a encenar as obras de
Shakespeare em sua linguagem original, criaram um preocupante precedente.
Outros eventos, como o Shakespeare Festival de Alabama, o Shakespeare Theater
da Universidade de Utah e o Orlando Shakespeare Theater, já assinaram contratos
para a produção de algumas dessas traduções.
Embora bem
intencionada, a experiência poderá acabar se tornando um desperdício de
dinheiro e de talento, pois diagnostica de maneira equivocada o motivo pelo
qual as peças de Shakespeare podem ser de difícil compreensão para os amantes
do teatro. O problema não está na linguagem frequentemente complexa. O que
ocorre é que, mesmo os melhores diretores e atores - tanto britânicos quanto
americanos - muitas vezes apresentam as peças de Shakespeare sem terem eles próprios
um domínio suficientemente sólido do significado de suas palavras.
As alegações de que
a linguagem de Shakespeare é ininteligível remontam à sua própria época. Seu
grande rival, Ben Jonson, teria se queixado de “alguns discursos bombásticos de
Macbeth, que não serão compreendidos”. Ben Johnson não percebeu que os densos
solilóquios de Macbeth eram intencionalmente difíceis. Shakespeare captava a
atividade de uma mente febril, traçando a trajetória turbulenta da crise moral
de um personagem. Mesmo que o público tenha dificuldade para captar exatamente
o que Macbeth diz, ele entende o que Macbeth sente - mas somente se o ator sabe
o significado das palavras do personagem.
Há dois anos,
testemunhei um tipo diferente de experiência teatral, na qual Muito Barulho por
Nada, de Shakespeare, na linguagem original, reduzida a 90 minutos, foi
encenada para um público em grande parte não familiarizado com Shakespeare: os
prisioneiros do presídio de Rikers Island. O espetáculo fazia parte da
iniciativa Mobile Shakespeare Unit do Public Theater.
Nenhum dos presos
deixou a sala, embora tivessem toda a liberdade de fazê-lo. Mantiveram-se
profundamente interessados, muitos sentados na beira de suas cadeiras, alguns
chorando em vários momentos (como o público elisabetano costumava fazer) e
visivelmente emocionados por aquilo que viam.
Será que entenderam
todas as palavras? Duvido. Não tenho certeza de que outras pessoas, que não o
próprio Shakespeare, que inventou algumas palavras, jamais tenham entendido.
Mas os presos, como qualquer outro público que assiste a uma boa produção, não
precisaram acompanhar a peça verso por verso, porque os atores, e seu diretor,
sabiam o que as palavras significavam. Eles descobriram na linguagem de
Shakespeare as sugestões para entender a personalidade dos personagens.
Tive a chance de
olhar uma cópia da tradução de Timon de Atenas, que o Festival de Oregon
utilizou em oficinas e leituras nos últimos cinco anos. Embora seja o trabalho
de um dramaturgo experiente, é uma miscelânea, nem elisabetana nem
contemporânea, e o resultado é uma leitura tristonha.
Para compreender os
personagens de Shakespeare, os atores mergulharam durante muito tempo na
análise das sugestões do significado e nas nuances da ênfase que ele infundiu
em seus versos. Eles os buscarão em vão na tradução: a música e o ritmo do
pentâmetro iâmbico (um tipo de métrica) desapareceram, assim como desapareceram
as mudanças - que permitem aos atores registrar variações sutis no que se
refere ao grau de intimidade - entre vós e tu. As próprias alusões clássicas
foram eliminadas.
O emprego que
Shakespeare faz da ressonância e da ambiguidade, que definem as peculiaridades
da linguagem, também desapareceu na tradução. Por exemplo, Timon se dirige a
duas prostitutas e lamenta o fato de que o dinheiro corrompa todos os aspectos
das relações sociais, instando-as a “plague all,/ That your activity may defeat
and quell / The source of all erection” (contagiai/atormentai a todos/ Que a
vossa atividade possa frustrar e reprimir / As fontes de toda ereção - numa tradução
extremamente literal). Uma acepção fundamental de erection para os elisabetanos
referia-se a ascender socialmente ou a promover. Timon odiava os alpinistas
sociais. O próprio sentido sexual de erection, também presente aqui, era
secundário. Mas a nova tradução ignora a ressonância social, transformando o
verso num gracejo sórdido: Timon agora fala da “fonte de todas as ereções”.
Shakespeare tomou
emprestado quase todos os seus enredos e escreveu para um teatro que exigia
apenas alguns adereços, nada de cenário e nenhuma iluminação artificial. A
única coisa shakespeariana em suas peças é a linguagem. Nunca vou entender por
que motivo, quando hoje em dia assistimos a uma produção de Shakespeare,
encontramos nos créditos do programa um diretor de combates, um dramaturgo, um
coreógrafo, iluminador e cenógrafos - mas raramente um especialista mergulha na
linguagem e na cultura de Shakespeare.
Uma fundação de
empreendedores da área de tecnologia financia a nova empreitada do Festival de
Oregon. Preferiria que ela gastasse o seu dinheiro contratando especialistas, e
que permitisse que os 36 promissores dramaturgos americanos se dedicassem a
escrever um novo sucesso da Broadway, como Hamilton, em lugar de desperdiçarem
seu tempo eliminando o que há de shakespeariano em Rei Lear ou Hamlet.
(The New York Times
- TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA; publicado
em O ESTADO DE SÃO PAULO, 11.10.2015)
JAMES SHAPIRO É
PROFESSOR DE INGLÊS NA UNIVERSIDADE COLUMBIA E AUTOR DE THE YEAR OF LEAR:
SHAKESPEARE IN 1606