Há conceitos que se cristalizam. Mesmo que errôneos. No teatro, por exemplo, a diferença entre “drama” e “melodrama” quase sempre aparece de forma equivocada. Vamos tentar esclarecer um pouco essa confusão.
DRAMA
A palavra “drama” vem do grego “drâma” e significa ação. É, modernamente, o próprio conceito da representação teatral, já que “teatro” é a ação levada a efeito por um ou mais atores.
Implica, portanto, que drama/teatro é ação!
Substitui, modernamente, a “tragédia” – que teve a sua criação, desenvolvimento, glória e decadência num momento específico da história: a Grécia dos séculos IV, III... antes de Cristo.
Mas o drama traz, ainda, outras conotações importantes: ao ser representada, a ação teatral estabelece com o espectador um vínculo, uma cumplicidade, uma emoção – a EMPATIA.
Quando o fluxo dessa emoção, dessa EMPATIA, vem do palco para o espectador, estamos diante do DRAMA em sua forma mais pura.
O espectador segue o PROTAGONISTA (e os demais atuantes/atores/personagens) na sua trajetória no ENREDO da peça, até a catarse ou desenlace final, sem sustos, ou seja, sabendo, até certo ponto, o que vai ou o que pode acontecer. O drama não o engana: o herói é herói, o mau é mau e assim por diante.
Exemplo de um (dentre milhares) de dramas modernos:
The Glass Menagerie, de Tennessee Williams (no Brasil, À margem da vida).
Seguimos a trajetória de Tom, que recorda o período que antecede sua decisão de deixar o emprego e se engajar na Marinha Mercante. O pai já havia abandonado a família, delegando ao jovem a responsabilidade de sustentar a mãe, que não se conforma com a vida mesquinha que levam e sonha ainda com os tempos em que fora cortejada por 17 pretendentes, e a irmã Laura, que tem um defeito na perna, é doentiamente tímida e se dedica integralmente à sua coleção de bichinhos de vidro, daí o título original, The Glass Menagerie. A mãe pressente que Tom vai deixá-las e pede que, ao menos ele arranje um marido para a irmã. O jantar oferecido pela família a um imaginado candidato a noivo redunda em fracasso: o rapaz já está de casamento marcado com outra. Restam, então as dívidas contraídas para compra do vestido de Laura, de um tapete e de um abajur novos. O pano de fundo do texto são as consequências de Depressão de 1929 sobre a classe média americana e o foco é a visão nostálgica de Tom, que abandonou a família para seguir sua vocação de poeta, mas lança retrospectivamente sobre ela um olhar compassivo e penetrante.
(Kristen Kohaut, no papel de Laura)
Todos os personagens estão delineados e vão mudando de qualidade à medida que se desenrola o enredo. Vamos conhecendo, a cada cena, os conflitos internos de Tom, suas dúvidas, seu amor pela irmã, seu sofrimento pelas decisões que precisam dar rumo à sua vida. E também os conflitos da mãe e da irmã deficiente.
Já o melodrama...
MELODRAMA
A estrutura teatral, a carpintaria é a mesma. Há apenas um porém: no melodrama, o fluxo da emoção se inverte, ou seja, não parte apenas do palco para a plateia, mas também da plateia para o palco.
Ou seja, o drama oferece ao espectador LACUNAS (vácuos sintagmáticos) que ele preenche com a sua imaginação, com a sua emoção, porque é levado a crer que algo vai acontecer ou é levado a pensar que tal personagem tem tais ou quais características, mas isso não é verdade ou nem sempre é verdade.
Podemos exemplificar com o cinema de Hitchcock: ele isola a personagem (provocando o medo ancestral da solidão); essa personagem entra num casarão antigo e aparentemente desabitado, para pedir ajuda mecânica a seu carro; um tipo especial de música acompanha seus passos no assoalho carcomido, que range; a câmera foca seus olhos um tanto assustados ou tentando acostumar-se com a escuridão... ele caminha... a música aumenta... os passos ressoam... então, de repente, uma mão – só a mão (focalizada pela câmera) – vem por trás e... segura seu ombro... e a música aumenta! Susto geral. Mas é só um velho e inofensivo habitante do velho casarão... Mas, às vezes, é mesmo o assassino com uma faca...
(Janet Leigh, em Psicose)
Na cena descrita acima (toscamente inventada, claro), nada ocorre de sobrenatural ou de assustador: apenas a situação criada é que leva o espectador a imaginar mil coisas. Ele, o espectador, preenche com sua imaginação as lacunas deixadas pelo autor (com maestria, se for um Hitchcock ou outro mestre), e cria o seu próprio enredo.
Portanto, o melodrama é enganador. É mistificador. No melodrama puro, nada é aquilo que parece.
Ao mesmo tempo, quando bem encenado/apresentado, constitui uma forma de teatro/dramaturgia tão eficaz quanto o drama.
Porque faz uso de recursos como a música (melós – canto, em grego), muitas pessoas associam-no a peça/filme etc. com aspectos “melosos” ou execessivamente “românticos”. Não é nada disso: um bom melodrama pode ter mil enredos diferentes de qualquer “historinha romântica”, como os filmes de Alfred Hitchcok.
E mais uma coisa: muitas vezes, em bons dramas, há momentos de puro melodrama, muito bem encaixados e de grande efeito teatral.
Nada contra a mistura de gêneros.
DRAMALHÃO
O dramalhão é um filhote desastrado de HAMLET, de Shakespeare.
Surgiu, provavelmente, no século XVIII, quando se popularizaram as peças do bardo. E HAMLET era muito complexa, para as platéias de então, com seus vários solilóquios que verticalizam o personagem. Então, optou-se por cortá-los e apresentar a peça em seus “melhores momentos”, ou seja, só a “história” de traição e vingança que subjaz no enredo hamletiano.
E virou um gênero. Ou seja, autores começaram a escrever peças que priveligiam a movimentação, o espetaculoso, ou só as grandes emoções (como as “grandes paixões”); as grandes ações, como o rapto, as lutas de capa-e-espada, as reviravoltas sensacionais, sem aprofundar ou verticalizar os personagens em sua psicologia ou em suas emoções mais profundas.
A “Paixão de Cristo”, apresentada sobretudo em circos ou em pequenos e grandes teatros por aí a fora, exemplifica bem o que é um dramalhão: tem por objetivo apenas comover, através de ações e reviravoltas espetaculares.
(Cena de efeito n'A Paixão de Cristo, de Nova Jerusalém)