sábado, 8 de maio de 2010

LAND LEAL ESCREVEU: A IMPORTÂNCIA DA PEÇA CURTA

(Cartazes do cabaré francês, do início do século XX)


A IMPORTÂNCIA DA PEÇA CURTA


Para o dramaturgo iniciante, a prática mais efetiva é o desenvolvimento de peças curtas porque a ação e o conflito são concentrados em um único cenário e única sequência de tempo.



Essas duas limitações é que darão o domínio da ação e do conflito, além das bases de controle para o futuro criador de longas histórias não se perder no emaranhado de tramas paralelas. Isso, mesmo quando aparentemente os momentos de “respiro lírico ou épico” pareçam se desviar da bola de neve, vôo dramático, verticalidade ou qualquer que seja o nome.


A peça curta ou peça de um ato é: a elaboração de um único incidente significativo. Pode ser um singelo incidente como reunir a família em torno de uma macarronada, humilhar a noiva ou até mesmo fundar uma cidade, mas é uma coisa só.


Uma peça longa (com vários incidentes significativos) também pode ter apenas um ato. Mas terá algum tipo de intervalo, “cortina”, ou efeito de luz para indicar a passagem de um incidente a outro.


Na peça curta, não há tempo para o autor desenvolver um crescimento mais aprofundado ou transformações das personagens, mesmo as principais, a não ser em direta conexão com o incidente. Normalmente, há poucos personagens, pois o tempo impede que o espectador se familiarize com mais que algumas “pessoas”.


Como a peça curta também contém ação e conflito, é necessário que além do incidente, haja complicação, crise, clímax e resolução. A diferença em relação à peça longa é que esses elementos estão em outros pontos no percurso e duração da trama.


Os inúmeros incidentes de uma peça (ou roteiro) longa permitem que as personagens se desenvolvam e se transformem na medida em que a história avança, passando por várias fases de comportamento, ação e conflito, como se o espectador pudesse ler a sua mente. Na peça curta isso só acontece em relação ao problema ou incidente específico.


Uma peça estruturalmente definida como curta, pode chegar ou mesmo ultrapassar uma hora de duração. Entre as mais célebres: Dois Perdidos numa Noite Suja (Plínio Marcos); Corpo a Corpo (Oduvaldo Vianna Filho); História do Zoológico (Edward Albee); Entre Quatro Paredes (Jean-Paul Sartre); Senhorita Júlia (August Strindberg) e Esperando Godot (Samuel Becket). Curiosamente, esta última tem dois atos, sobre estrutura de peça curta, cujo único incidente significativo é a necessidade da espera, que se repete no segundo ato, em movimento circular, mordendo o próprio rabo e, apesar do grande prestígio de Beckett, após meia hora, de uma monotonia torturante.


NB: Esses dois atos “iguais” sobre um único incidente é, para alguns (Adorno e Pinter, por exemplo) um dos grandes “feitos” de Beckett. As duas outras peças dele (Fim de Jogo e Dias Felizes) repetem aproximadamente o mesmo esquema. Depois ele passou a fazer esquetes, ao que parece, justamente por se esgotar no mesmo e repetido jogo, tão incensado como “profundo”. Esquete não é drama (dramaturgia), pois é apenas uma situação, um meio sem começo nem fim, embora os melhores apresentem um “arremate” como acontece com a anedota e a piada. Talvez por Beckett estar mais interessado na linguagem do que no drama? Mesmo assim a “dramaturgia” existencial de Beckett é altamente discutível, pois não explora as motivações humanas, o drama, enfim. Certamente, são “peças” e esquetes que repetem ao infinito que o ser humano é um solitário condenado ao beco sem saída da rotina de uma vida vazia. Eis a grande profundidade de Beckett. É certo que o próprio Beckett declarou não saber o que suas peças querem dizer. Contudo, em suas quase-cenas (sim, porque uma cena é uma micro-peça, mas isso não parece ser o elemento ou o interesse de Beckett) e entrelinhas, a mensagem é de solidão, incomunicabilidade e desesperança. Sem uma progressão dramática, ficamos com uma experimentação formal de textos que ficam melhor lidos que encenados.. Enfim, o antidrama.


Já o cinema social de Kyarostami, consegue alongar uma estrutura curta sem “matar” o espectador de tédio, mas nem sempre. Esse alongamento não deixa de ser uma fórmula forçada e alguns filmes do iraniano têm momentos de insuportável monotonia. Além deles há outros, artistas experimentais, os chamados pós-dramáticos ou antidramáticos, que vêm na esteira da linguagem de Beckett. A nosso ver, em que pese todo esforço e técnica de atores brilhantes e de uma visceral necessidade de arte, em geral apresentam apenas uma experimentação oca e redundante, com certo charme cenográfico e coreográfico, muitas vezes sobrepondo o épico (narração) ao dramático (ação), cujo resultado - intencional ou não – é apenas uma contrafação do drama.


Parece que o diretor no teatro de hoje assume igualmente o papel de dramaturgo, mas não está preparado para a empreitada. O que é natural, pois é uma arte que exige tempo e elaboração diferente do trabalho de encenar.


Para o dramaturgo iniciante, nenhum dos dois caminhos (forçar os limites do drama curto ou sobrepor o épico ao dramático) é aconselhável. Mesmo porque um dos princípios básicos do drama é fazer apenas e tão somente o estritamente necessário à ação e ao conflito.


Os palcos do mundo estão cheios de peças alongadas, forçadas, monótonas, para preencher o tempo de uma hora ou mais, quando deveriam ter apenas 15 ou 30 minutos. Por que os autores não preferem fazer duas ou três peças curtas em vez de espichar uma peça aos limites do suportável? Talvez queiram repetir os feitos de Kyarostami e Beckett, dando intensidade e qualidade à repetição ou ao “tempo-real”? Mas nem esses grandes nomes deixaram de pagar um preço por “forçar a gramática” e “atravessar o samba”.


As peças citadas acima deveriam estar entre as leituras obrigatórias para um dramaturgo iniciante, juntamente com filmes de curta metragem de ficção. Também os filmes que apresentam de três a cinco histórias independentes são muito úteis para se apreender a estruturação sintética do drama curto.


Peças ou roteiros de 10 a 15 páginas (uma página equivale a um minuto em tipo de corpo 12). Nada impede que um excepcional talento salte logo para uma longa peça. Mas não começar com o exercício de peças curtas é quase um tiro no pé ou uma traição a si mesmo, dizem alguns experientes dramaturgos.



Eis algumas indicações para se estruturar uma peça curta:

1 - Um ponto de ataque logo no início (de preferência já na primeira ou segunda página);


2 – Com apenas um evento significativo, não há tempo para mais de uma trama;


3 – Pouca ou mesmo nenhuma exposição. Significa que a exposição, às vezes, já está incluída no ponto de ataque ou durante o conflito, durante as complicações; ou mesmo explicitada ou revelada no final. A diferença com a peça longa é que não há tempo para uma exposição maior. Uma página/minuto já fica no limite para a exposição;


4 – Com 15 páginas, já dá para incluir uma subtrama. Não se trata de trama paralela. Por motivos didáticos, definamos aqui a subtrama como aquela diretamente ligada às questões de causa e efeito da trama principal, ao passo que a paralela pode ser apenas relacionada ou com alguma conexão indireta à principal.


5 – O final de uma peça ou roteiro curtos aparece imediato ao clímax, com espaço de tempo muito pequeno, normalmente representado apenas por uma fala ou imagem, funcionando como resolução e final;


6 – Intervalos (cortinas) ou mesmo “blackouts” não casam com peças curtas, embora o “blackout” possa ser usado no caso do roteiro curto. Mesmo assim, no cinema, os cortes ou mudanças não necessitam de “blackouts”. Nas peças longas, os intervalos, cortinas ou mesmo “blackouts” se justificam como passagens de um incidente a outro, o que não ocorre nas peças curtas, por terem apenas um incidente significativo;


7 - Mesmo com subtramas, o autor deve enfrentar a tarefa de não apelar para “intervalos”. Assim ele é obrigado a resolver problemas da técnica para o palco. Ele pode usar vários ambientes no palco, ou mesmo o sonho e o delírio, mas a peça ficará mais ágil sem “blackouts”, que é uma influência do cinema que nada acresce;


8 - Uma peça curta fica melhor num único cenário e período de tempo, com um mínimo de personagens, normalmente entre um e quatro com falas substanciais. No caso do roteiro é diferente, devido às quase infinitas possibilidades de espaço/tempo do cinema. Contudo, para que o filme fique mais factível em termos de realização material e financeira, é melhor não expandir o espaço/tempo além de três a cinco cenários, ou tipo de cenários. Se um personagem, por exemplo, um vendedor, visita várias casas, as cenas, internas ou externas, podem ser consideradas como um único tipo de cenário: visitas;


9 – Se tivermos um único incidente, mas esse não fizer parte de uma trama, isto é, não provocar, galvanizar ou detonar uma série de consequências, não teremos uma peça curta: teremos apenas um esquete. O esquete não é mais que uma situação interessante, um “meio” sem começo ou fim, sem uma cadeia de causa e efeito;


10 – Uma peça curta, portanto, não é uma peça longa abreviada. É um tipo específico de dramaturgia. Os princípios aqui descritos não são “receitas de bolo”. São medidas que facilitam o trabalho do dramaturgo iniciante. A “fórmula” aqui, como no caso da dramaturgia em geral, é apenas um esquema ou mapa do caminho. É como as margens de um rio para que as águas da criatividade sigam seu curso de forma mais concentrada e organizada.


11 – Como em qualquer dramaturgia, a ação MOSTRA, NÃO NARRA;


12 – Como em qualquer dramaturgia, o protagonista é o agente da ação. Mesmo uma peça longa se concentra em único protagonista, como Romeu em Romeu e Julieta. Se Julieta tivesse saltado o muro, matado Teobaldo e fugido, ela seria o primeiro personagem e não o segundo. Romeu, Teobaldo, Julieta: eis a triangulação.


Atenção: é IM-PO-SSÍ-VEL escrever uma peça e resolver questões dramáticas apenas através da conversa de duas pessoas. Sempre será necessário um terceiro elemento. Em História do Zoológico é o banco da praça e depois a faca; em Dois Perdidos Numa Noite Suja é o revólver; em Navalha na Carne é o dinheiro e o homossexual; em Corpo a Corpo é quem bate na porta e quem está na linha da ligação telefônica. Pode ser também a lembrança do passado ou algum conflito interno, mas se não há uma triangulação, se torna impraticável. O publicitário está sozinho no palco, mas fala do sucesso e do dinheiro que o fez se esquecer da família pobre no interior, do relacionamento com a noiva e colegas de trabalho, etc.


NB: A) Há peças e roteiros “ônibus” ou “panorâmicos” com múltiplos protagonistas. Mesmo nesses casos, em cada parte/seção/segmento da história, um personagem assume a condução da ação e se torna o protagonista naquele tema ou segmento; B) Quando se trata de um grupo agindo em conjunto e pelo mesmo objetivo, são protagonistas múltiplos, mas em função de uma mesma linha de ação.