sábado, 11 de maio de 2024

ENTRA EM CENA O TEATRO GREGO[1]

 


Na Grécia antiga, a procissão saía às ruas, cantando e se comovendo com a própria melodia em culto ao deus Dioniso (ou Baco), deus do vinho. Aquele que lhes ensinara o delírio da embriaguez e a exaltação dos sentidos: o prazer. Aos poucos elas vão abandonando suas vidas cotidianas: seus trabalhos, suas tristezas, as injustiças sofridas e se envolvendo nessa maravilhosa celebração divina.

No altar, de forma solene, o sacerdote prepara a cerimônia, na qual um bode será oferecido em sacrifício e sua carne distribuída entre os presentes. Todos esperam o grande momento de ingerir a carne sacrificada. A procissão se aquieta, por um instante, a fim de ouvir as orações do sacerdote.

Nas proximidades está o jovem Téspis que logo assumirá a grande missão de desdobrar-se em vários seres, transmitindo às pessoas outras imagens e outros rostos que não sejam o seu. Téspis chega apressado em Atenas, o coração em chamas e a boca prestes a proferir qualquer coisa impulsiva, apaixonada e violenta.

O povo não pode vê-lo ainda, tão disperso que está com a cerimônia. Até o momento em que Téspis abre a boca, veste-se com túnicas, máscaras cabeleiras e sandálias e faz de sua carroça um altar.

O sacerdote distribui pedaços do animal para o povo enquanto se embriagam de vinho e se enlouquecem de paixão. Os cantos são cada vez mais fortes até que Téspis os silencia com um grito: ele afirma ser o próprio Dioniso, encarnado, vivo. O silêncio assume a cena e a figura mascarada é quem a domina. O deus Dioniso sorri no céu.

Sólon o chefe do governo de Atenas irá acusar Téspis de ser o maior impostor surgido até então: o primeiro ator. Apesar das acusações, impôs-se como ator, tornou-se popular e querido em todas as cidades nas quais se apresentava. Toda a Ática acabou se entregando ao fascínio deste homem que, representando, levava os homens para mais perto dos deuses.

Foi neste momento místico, envolvidos por um estado de exaltação e graça que tiveram raízes a tragédia e a comédia grega.


A tragédia grega

No primitivo ritual dionisíaco vemos a força do ditirambo – o canto apaixonado constituído de elementos tanto alegres quanto tristes que narravam o nascimento e a vida de Dioniso. Deste coro originou-se a tragédia: a representação viva, feita por atores, das histórias míticas dos deuses.

Inicialmente o canto trágico foi marcado pela improvisação apaixonada do povo e ia crescendo juntamente com a adoração, o delírio e a embriaguez. Com o tempo foi que se introduziram no ditirambo os textos líricos, sempre em versos. Era formado por homens que se travestiam de sátiros[2] e entoavam cantos uníssonos. Posteriormente dividiu-se em dois, estabelecendo um diálogo alternado de perguntas e respostas. O corifeu era o responsável por organizar este diálogo e se destacava dos coreutas pelo fato de cantar e dançar. O exarconte era quem respondia as perguntas dos coreutas. Sua voz distinguia-se de todas as outras e por isso ganhou unidade autônoma, era tão indispensável ao ditirambo que acabou acrescendo-se de outros aspectos incluindo a representação. Passou a se chamar hypocrates, aquele que finge, ou seja, ator.

O povo deixa de ser procissão para se tornar plateia e as encenações carregadas de paixão levam-nos a catarse [2] – a purificação das almas através da descarga emocional provocada pelo drama.

Originalmente a tragédia não se dividia em atos ou cenas, mas em partes dialogadas e partes cantadas. A primeira era em número de três e constituíam a abertura – prólogo. Em seguida vinha um trecho entoado pela orquestra e pelo coro. Depois o primeiro episódio, feito pelo ator, uma parte lírica (stásimo), entoada pelo coro, o segundo episódio, o segundo stásimo, o terceiro episódio, e a parte final (êxodo), cantada pelo coro.

As primeiras manifestações teatrais em Atenas eram feitas na Praça do Velho Mercado. Depois de um acidente causado pelo desabamento das arquibancadas, foi transferido para um terreno consagrado a Dioniso e somente no século IV a.C. surgiram os primeiros teatros construídos de pedra. Quanto aos cenários podemos distingui-los em quatro grupos principais: o templo, o palácio e a tenda onde ocorriam as cenas principais, e a paisagem marinha ou campestre. As roupas variavam de acordo com a personagem.

O conteúdo da tragédia era o mito. Inicialmente apenas a lenda de Dioniso e de outras personagens que se relacionavam a ele. Porém o sucesso das tragédias era tão grande que passaram a buscar novos assuntos e lendas que pudessem servir de enredo. Recorreu-se às histórias sobre heróis e também sobre outros deuses.

Quando criaram os heróis, a imaginação do povo iniciou um grande protesto às injustiças e vê-los representados nos teatros, frente aos deuses e ao destino, excitava os ânimos e convidava os cidadãos a pensarem e a agirem de novas maneiras. Em paralelo as divindades continuam sempre presentes no palco grego. Pune, adverte, profetiza, orienta, julga e massacra.

O herói não é um homem comum. Ele é capaz de enfrentar e desobedecer aos deuses. E as tragédias irão narrar suas ações e reações diante do sofrimento imposto pelo destino. É aí que irá descobrir o bem e o mal, possibilitando a catarse no espectador. Neste ponto reside o valor educativo e religioso da tragédia.

Este sofrimento se dará quando o herói infringe uma ordem estabelecida pelos deuses antes mesmo dos homens. A culpa por quebrar qualquer ponto desta cadeia ordenada irá cair não somente naquele que o fez, mas também sobre todas as gerações vindouras. Assim criaturas inocentes pagavam com fatalidade as culpas que herdaram de seus ancestrais.

Há o destino condenando as ações dos homens. Os deuses que podem ser bons ou maus, dominadores, libertadores, justos ou injustos. Há uma ordem divina que será rompida a qualquer momento e por qualquer motivo. A partir do sofrimento imposto ao herói pelo destino, é que ele deverá assumir uma atitude e será sobre esta atitude que se organizara a ação dramática.



Principais tragediógrafos e seus textos:

Ésquilo: Os persas; Prometeu acorrentado; As suplicantes; Sete contra Tebas; Oréstia (trilogia): Agamenão, As Coéforas e As Eumênides.

Sófocles: Electra; As Traquínias; Ájax, Filoctetes; A trilogia: Édipo Rei, Édipo em Colona,Antígona.

Eurípides: As Bacantes; Medéia; Ifigênia em Áulis; Ifigênia em Táurida, As Troianas; As Suplicantes; As Fenícias; Andrômaca; Hipólito; Hércules; Orestes; Helena; Hécuba; Alceste e Ione.


A Comédia Grega

Assim como a tragédia, a comédia grega está relacionada às celebrações ritualísticas em celebração à vida, aos feitos e aos poderes misteriosos do deus Dioniso.

Cronologicamente a comédia encontra-se um século depois da tragédia. Teve suas raízes aprofundadas nas cerimônias “falofóricas”[4]; ao cortejo foram adicionadas elementos de outros cultos além das farsas dos fliacos, estes representavam, em simples palcos de madeira, cenas da vida cotidiana; utilizavam-se de máscaras, vestes grotescas e linguagem licenciosa. Foi a partir deste elemento cômico, no ritual dionisíaco, que surgiu a comédia, isolada da cerimônia religiosa assumindo-se unicamente como representação, alegre e zombeteira. À frente do cortejo cômico seguia as canéforas, mulheres jovens responsáveis por carregar os objetos necessários ao sacrifício do bode. Atrás seguiam os falófaros, escravos que empunhavam lanças como símbolos fálicos.

Para os gregos existem duas forças centrais que regem o universo: 1) Páthos: o sofrimento do homem diante dos desígnios do Destino. 2) Sarcasmo: o desmascaramento das motivações que guiam os homens em seus atos, muitas vezes grandiosos só em aparência. Ambos são capazes de causar emoção, educar e conscientizar.

No século IV a.C. Alexandre Magno invade e conquista a Grécia. Tudo o que havia sido então erigido, a cultura, os valores e os conceitos entram em decadência. E é neste contexto que a comédia encontra o seu ápice: chega o momento de fazer rir para fazer pensar.

Aristófanes aproveita deste momento desolador para criar, em suas comédias, um sistema de críticas e escárnio. Atacava tudo o que, para os gregos desta época, significava novas conquistas: filosofia, poesia, música, matemática. Atacava tanto o Estado quanto os governantes. Nada escapava à sua pena. Nem os sofistas, nem Sócrates, Nem Eurípedes. Quanto maior se tornava a necessidade de um conforto espiritual, mais Aristófanes utilizava-se de suas comédias para erguer a moral dos cidadãos.

A estrutura da comédia foi definida por Aristófanes: A primeira cena iniciava-se com um prólogo. Em seguida vem o párodo: a entrada do coro, composto por 24 pessoas (os coreutas) que personificavam os belicosos velhos. A terceira parte é um intervalo; A quarta parte é a parábase: o coro, que está agrupado entre o altar de Dioniso e a cena, coloca-se em linha de baralha frente ao público. Há uma longa pausa. Um entreato no qual é dado um resumo do que se passou na cena (quinta parte). A sexta parte segue-se com o corifeu destacando-se do coro e recitando, para os espectadores, alguns versos que denunciam o pensamento do comediógrafo. Os atores transformam-se em oradores. A sétima parte reúne várias cenas que não se ligam entre si e que apontam as consequências das ações dos personagens. O êxodo é a última parte: o coro sai ruidosamente, abandonando a cena, como se deixassem os cidadãos sozinhos, à própria sorte.

Os cenários eram feitos a fim de retratar realisticamente as casas da cidade, porém todas eram idênticas: andar térreo, teto plano, balcões e janelas. Os figurinos variavam segundo os papéis. As máscaras foram se desenvolvendo ao longo dos anos, chegando a existir cerca de 40 tipos diferentes delas. E embora a comédia tenha caráter grotesco, ela é inspirada nos mesmos mitos inspiradores da tragédia.

O público gargalhava e essa gargalhada penetrava nos atores como única forma de não sucumbir. Porém a cultura Grega era arrasada e o riso era incapaz de reerguê-la. E ao contrário dos Gregos os romanos nunca consideraram o teatro como uma manifestação nacional, necessário a educação moral e cívica. A arte dramática nunca conseguiu enraizar-se profundamente em Roma.


As obras de Aristófanes

Os Acarneus; Os Cavaleiros; As Nuvens; As Vespas; A Paz; Os Pássaros; Lisístrata; As Tesmoforias; As Rãs; Assembléia de Mulheres e Pluto.



Notas:

[1]Mitologia Vol. 3. AMARAL, Maria Adelaide de A. S. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 800, pp.769-800.



[2] São divindades menores da natureza, meio homem, meio bode. O troco é de homem, da cintura para baixo bode, cauda e orelhas de bode, pequenos chifres na testa, narizes achatados, lábios grossos, barbas longas e órgãos sexuais de dimensões bem acima da média - muito frequentemente mostrados em estado de ereção.



[3] Para Aristóteles, a catarse é muito importante porque “ao inspirar, por meio da ficção, certas emoções penosas ou malsãs, especialmente a piedade e o terror, ela nos liberta dessas mesmas emoções”.



[4] Nas cerimônias “falofóricas” o falo (símbolo da fecundidade) era levado em procissão e acrescentavam-se, aos hinos, zombarias e escárnios contra os espectadores.



Fonte:




sexta-feira, 3 de maio de 2024

UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE O TEATRO DO BRECHT, por Isaias Edson Sidney

 

 

"Mãe Coragem" / foto: Ariela Bueno


Costuma-se denominar o teatro de Brecht como teatro épico. Melhor seria chamá-lo de “teatro ético”. Porque é de ética que tratam suas peças. Ética social e, principalmente ética política. Porque é essencialmente político o teatro de Brecht. E mais: não é um teatro dramático.

Expliquemos. Brecht era comunista. Sua dramaturgia tem por objetivo trazer ideias que pudessem ser discutidas pelo público dialeticamente. Para isso, busca uma nova forma de teatro não aristotélico, não dramático. Os recursos que usa para isso são a fábula e o distanciamento. A fábula, ou seja, uma história já conhecida ou uma história que se passe num local distante, pela qual se possam discutir ideias, sem a emoção do teatro dramático, sem a catarse do teatro dramático. Ou seja, ele propõe um dilema – um dilema ético – sobre o qual o público decide. Como o teatro, mesmo o de Brecht, não lida com “historinhas”, mas com enredos, ou seja, os fatos são apresentados em forma de conflitos e/ou contradições entre personagens ou dentro das próprias personagens, o dramaturgo lança mão do que se costumou chamar de distanciamento.

Há o distanciamento do ator, ou seja, o ator brechtiano não tem a intenção de “viver”, de “internalizar” as emoções e contradições da personagem, mas apresentá-la ao público. Esse é um tema complexo e foge ao escopo desse artigo. O que nos interessa, no momento, é o distanciamento através da fábula: geralmente os enredos (ou a “história”) das peças brechtianas se passam em locais distantes, como, por exemplo, na China, em “A alma boa de Tsesuan”, ou usa uma personagem histórica, como em “Galileu Galilei”.

Já nessa escolha está o dramaturgo convidando o espectador não para a vivência de emoções dramáticas, mas para a observação mais ou menos neutra do que acontece. Dissemos “mais ou menos” neutra intencionalmente, porque não é que não possa haver “emoção” no teatro brechtiano, mas é o tipo da emoção definida por Fernando Pessoa: “o que em mim sente está pensando”. Ou seja, uma emoção controlada pela razão, que está sempre em primeiro lugar.

Outro recurso utilizado por Brecht para esse distanciamento é a música, o que ocorre em muitas peças, porque, para ele, o teatro é também divertimento, é também prazer, prazer estético, embora o lúdico se apresente como algo que distenda a mente do espectador para a compreensão do que ele deseja que o espectador entenda.

E assim, chegamos ao núcleo do teatro que denominamos de ético, ou seja, o dilema ético: ele apresenta, muitas vezes, duas visões distintas de um mesmo problema, para a decisão do público. Brecht não quer a catarse do teatro aristotélico, em que o objetivo do dramaturgo é levar o espectador a perceber que a “falha ética” das personagens levou a uma espécie de “punição dos deuses”, por contrariar um desígnio da “república”, por contrariar valores da sociedade, como o crime cometido por Édipo, ao matar o próprio pai e casar-se com a mãe, embora sem o querer, sem o saber. Mas, se ele o fez, e precisa ser punido. Contrariou uma lei da pólis. E Édipo arranca os próprios olhos, para não “ver”, não enxergar o crime. Em todo o teatro dramático, de origem aristotélica, está implícito, de alguma forma, essa catarse que o teatro de Brecht não quer, não deseja e não propõe.

Chegamos a um ponto importante desse nosso comentário: as montagens feitas no Brasil das peças de Brecht e as análises que aqui se fazem sobre elas. E sobre isso, afirmo que, quase sempre há dois equívocos: na montagem e nos comentários. Senão, vejamos, como exemplo, duas peças conhecidas e que foram montadas ou que têm sido montadas aqui e são razoavelmente conhecidas: “Mãe Coragem” e “A alma boa de Setsuan”.

Mãe Coragem. A peça se passa durante a guerra dos trinta anos, quando as batalhas são intermitentes. Mãe Coragem arrasta sua carroça entre as trincheiras, para abastecer os contendores. Quando há batalhas, ela ganha dinheiro. E fica feliz. Quando não há batalhas, ela não ganha nada. E se desespera. Enquanto isso, não percebe que as batalhas levam seus filhos. Sim, ela sofre a perda deles, mas, como ela é, na expressão de meu mestre Chico de Assis, em suas aulas no SEMDA (Seminário de Dramaturgia do Arena), “o vampiro da guerra”, ou seja, ela se alimenta da guerra, a perda dos filhos é, para usar um termo moderno, apenas um “efeito colateral”. Mãe Coragem, portanto, não é uma personagem dramática. Ela representa aquilo que Brecht propõe: a discussão dos malefícios da guerra. Não tem sua trajetória “sofredora” o objetivo de fazer o expectador ter empatia por ela, sofrer por ela, entrar em catarse, mas, ao contrário, discutir eticamente o que a guerra faz com os seres humanos.

Já em “A alma boa de Setsuan”, quando a protagonista dirige sua empresa como ela mesma, ou seja, com “bondade” e altruísmo, ela tem prejuízo. Como não consegue fazer diferente, cria um alter-ego, um disfarce, um primo que é ela mesma, mas com personalidade oposta, capaz de fazer “maldades” e desenvolver a empresa, sem atitudes altruístas ou paternalistas. Através dessa fábula, Brecht propõe ao expectador verificar o funcionamento, por dentro, da máquina capitalista. Ou seja, quando o “patrão” não segue suas leis de mercado, quando se deixa levar pelo sentimento, o negócio não prospera, o risco de falência fará com que muitos percam o emprego. Ou, ainda, se houver falência, não haverá mais empregos. E todos sofrerão. Ao contrário, quando o “patrão” endurece as regras, segue as leis de mercado, o negócio prospera e, embora muitos percam o emprego, muitos outros o conservarão. E uma boa parcela da sociedade agradecerá, por continuar trabalhando, embora haja outra parcela que empobreça e feneça, sem esperança. Esse o dilema ético: será o capitalismo um sistema realmente capaz de prover as necessidades humanas? Assim, não há que se possa ter empatia pela personagem – ela mesma ou seu duplo -, nem há possibilidade de qualquer catarse, porque não há propriamente um desrespeito à lei da pólis, mas uma situação com que todos convivemos e sobre a qual precisamos ter consciência.

Portanto, não há personagens “bonzinhos” ou “mauzinhos”, não há mocinhos ou bandidos, no teatro de Brecht. Não é o escopo de “A alma boa de Setsuan” propor ao espectador emocionar-se com a “bondade” ou a “maldade” da personagem, mas analisar e compreender seus atos, para tomar consciência de uma realidade. O mesmo acontece com a “mãe coragem”: sua coragem está em enfrentar a guerra e, ao mesmo tempo, perder os filhos. Cabe ao expectador julgar seus atos, não comover-se com seu sofrimento ou, talvez fosse melhor dizer, com seu pseudo-sofrimento.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

MILENA CARASSO ESCREVEU: A ALMA BOA DE SETSUAN E A BONDADE

 

(Denise Fraga em A Alma Boa de Setsuan; João Caldas) 



A alma boa de Setsuan trata-se de um texto de Brecht escrito nos anos 40 e que agora toma lugar em uma montagem de Marco Antônio Braz, em temporada popular, no Teatro Tuca.

O enredo começa quando os deuses vêm à Terra a fim de encontrar uma alma boa. Acreditam eles que no nosso mundo isto está tornando-se cada vez mais raro, o que é, logicamente (?), preocupante.

Na montagem em questão os deuses são apresentados de forma cômica e descompromissada de uma figura religiosa no sentido institucional.

Ao chegarem à província de Setsuan, procuram um lugar para pernoitar e não encontram, a princípio, ninguém que os acolhe, confirmando suas suspeitas iniciais de que os homens tornaram-se egoístas e incapazes de dividir. Já quase desistindo, porém, deparam-se com Chen Tê, a prostituta da cidade, que lhes dá um lugar para dormir deixando assim, para isto, de atender a um cliente. Convencidos de que se trata este de um inquestionável e incomum caso de generosidade desinteressada, os deuses oferecem à moça uma alta quantia em dinheiro. Feliz com seu prêmio, Chen Tê deixa de ser prostituta e abre uma tabacaria, no intento de mudar de vida.

Aí começam os conflitos. O povo da cidade, antes acostumado a vê-la como uma mulher pouco digna de respeito, agora quer sua ajuda. Vendo que ela se encontra numa situação diferenciada, em que está provida de uma série de recursos, vão até ela pedindo abrigo, comida, favores. A índole boa de Chen Tê a impede de negar. Sempre disponível, ela atende a todos que a solicitam, metendo, assim, em palavras simples, os pés pelas mãos.

Numa situação limite, decide então compor uma persona falsa. Inventa um primo, veste-se de homem, engrossa a voz, e reveza-se entre este personagem e ela mesma. Como o primo Chui Tá, a ex-prostituta consegue, disfarçada, ter a dureza que em sua forma tradicional é incapaz de demonstrar. Nega, exige direitos, e, em último caso, torna-se mesmo antiética e revela capacidade para os atos maus.

A partir daí a peça se desenrola com muitas situações e uma evolução interessante, incluindo um elemento literário precioso, o amor. Entretanto, este motivo inicial é já suficiente para levantar uma reflexão que requer tempo e, por que não, coragem.

A questão ética que o belíssimo texto de Brecht levanta é a da bondade e generosidade, não em seu aspecto mais óbvio e clichê, mas sim discutindo a liberdade que se tem ou não em ser bom e generoso e a viabilidade destas virtudes no mundo real e moderno. Será possível ser bom num mundo em que se passa fome? E, acima de tudo, qual é o tamanho da fome que justifica cruzar o limite da ética? A resposta pretendida por Brecht, ao que parece, é positiva, mas não ingênua.

A generosidade, embora um valor indiscutivelmente louvável, deve ser acrescida de firmeza. Sim, a gentileza deve ser firme para que possa sustentar-se e, em ação, promover produtos e não perdas.

Aquele que é gentil e que compromete assim sua própria integridade, acaba por desistir da bondade ou perder sua capacidade material e psicológica de exercê-la. Dando tudo e ficando, consequentemente, desprovido de recursos, o gentil torna-se inútil até para si mesmo, além de promover a manutenção perversa das relações de ingratidão e abuso. O que consegue ser gentil, porém firme, pode, no entanto, continuar exercendo generosidade sem que para isso precise dar mais do que tem, ou ainda, o que é importante, do que quer dar.

Falar em alguém bom, ou pior, bonzinho, é quase um desrespeito. A bondade perdeu seu valor social há muito tempo, quando em lugar do gentil passou a ser valorizado o truculento. Aquele que se apresenta socialmente como bom é frequentemente visto como fraco, quando não bobo. A ele não se defere respeito, porque, em detrimento da bondade, prefere-se respeitar o que desperta medo, o que ameaça.

Assim, um empregador, por exemplo, quando conhece sua equipe de trabalho, seus funcionários, terá mais chance de êxito, aparentemente, se demonstrar dureza em vez de docilidade.

A dúvida que fica é: precisa ser assim? Será que não seríamos todos coniventes com isso, no movimento de respeitar quem ameaça e abusar do que oferece, tornando a bondade quase impraticável?

É possível que seja simplesmente uma escolha. De exercício diário e difícil, é verdade, mas exequível e real quando intencionado. O segredo talvez resida em não ter medo de ser gentil e, em consequência, ser abusado. O medo da velha história de estender a mão e ver arrancado o braço. Não será possível estender a mão, firme, sólida, generosa, e, ao mesmo tempo, se necessário for, impor sua necessidade de respeito e a integridade do tal braço, que, neste momento, não pode ser doado?

É provável que o limite seja tênue e que um elemento imponha-se no caminho; o narcisismo do bom. É comum que aquele que faz bondades não possa aceitar ser rejeitado, decepcionar e, assim, quem sabe, despertar ódio e frustração. Mais comum ainda é que esta necessidade de prover ao outro e ser pelo outro visto como um verdadeiro redentor implique em uma falta de capacidade de prover a si mesmo.

A resposta para a pergunta de "o que justifica a falta de ética?" pode ser tudo ou nada. Por isso, pensar diariamente nas escolhas, sobretudo naquelas que concernem às relações, é uma prática de caráter e sabedoria.

Deve haver, acredito, um equilíbrio saudável. O que não parece possível é dar sequência a um estilo de vida, aparentemente o vigente, em que a bondade torna-se rara e desvalorizada, e não seja mais pretensão de ninguém. "O mundo é dos espertos". Será?

Por último, é interessante lembrar que ser bom não consiste em atos grandiloquentes de esforços homéricos. Trata-se apenas, muitas vezes, de disponibilidade. Estar disponível para o outro é já uma ação coerente com o fato de que vivemos num mesmo espaço e tempo.

"Prefiro ser otimista e estar errado a ser pessimista e estar certo."



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