sábado, 29 de junho de 2024

OS MALEFÍCIOS DO TABACO, de Anton Tchekov (Monólogo)

 




(Anton Pavlovich Chekov (1860-1904) em 1889)

 

NIOUKHINE (de longas suíças, sem bigode, fato velho e coçado. Entra majestosamente, saúda e ajeita o colete) – Minhas senhoras e, de certo modo, meus senhores. (Alisa as suíças) Pediram a minha mulher que eu viesse aqui fazer uma conferência, para fins beneficentes, sobre um assunto qualquer. E por que não fazê-la? Se é preciso uma conferência, façamos então uma conferência; a mim é-me absolutamente indiferente. Bem... Para dizer a verdade, eu não sou propriamente um professor, e nem sequer estou munido de qualquer título académico ou científico: pois apesar disso, há trinta anos que ininterruptamente, e posso mesmo acrescentar que em detrimento da minha saúde e de outras coisas semelhantes, eu trabalho em assuntos de natureza estritamente científica. Dou tratos aos miolos quando, às vezes, - imaginem Vossas Excelências! – tenho de escrever artigos científicos ou... Talvez muito pouco científicos, mas que, vá lá, têm um certo ar científico.


 Nestes últimos dias, precisamente, escrevi entre outros um artigo considerável sob o título “Dos efeitos maléficos de alguns insetos”. Este artigo agradou muito às minhas filhas, sobretudo na parte que se relacionava com os percevejos.  Pois bem, eu, depois de o ter lido rasguei-o. De facto, por mais que eu dissesse e escrevesse, nem por isso se dispensaria o pó de piretro. Em nossa casa, por exemplo, há percevejos até no piano de cauda...


 Escolhi para tema da minha conferência de hoje, se assim lhe podemos chamar, o prejuízo que traz à humanidade o uso e abuso do tabaco. Quanto a mim, devo confessá-lo, sou um fumador inveterado. Mas a minha mulher ordenou-me que falasse hoje dos malefícios do tabaco, e não tenho por isso outro remédio senão obedecer-lhe. Já que é preciso falar de tabaco, falemos então de tabaco. Para mim é absolutamente indiferente; e eu convido Vossas Excelências, minhas senhoras e meus senhores, a escutar a minha conferência com toda a gravidade requerida para evitar qualquer sensaboria. E aquelas pessoas a quem mete medo uma conferência séria, digamos mesmo científica, têm inteira liberdade de não escutar... Ou de sair. (Ajeita o colete).


 Peço, sobretudo, a atenção dos senhores doutores aqui presentes. Eles poderão encontrar na minha conferência numerosos ensinamentos úteis, porque o tabaco, à margem dos seus efeitos nocivos, é muito empregado em medicina.

 Assim, por exemplo, se metermos uma mosca dentro de uma tabaqueira, ela morre, aparentemente por desarranjo nervoso... O tabaco é, para falar corretamente, uma planta...


 Quando faço uma conferência pisco ordinariamente o olho direito, mas Vossas Excelências não façam caso: é efeito da emoção. Eu sou, duma maneira geral, um homem muito nervoso.


 O meu olho direito começou a piscar em 1889, a 13 de setembro, exatamente no dia em que, por assim dizer, a minha mulher deu à luz a sua quarta filha, Bárbara... Todas as minhas filhas nasceram em dias 13. Mas de resto (tira e consulta o relógio) dado o pouco tempo de que dispomos, não nos afastemos do tema da nossa conferência.


 Devo em todo o caso dizer a Vossas Excelências que a minha mulher tem uma escola de música e um pensionato particular, ou, talvez mais exatamente, não é bem um pensionato, mas qualquer coisa no género. Aqui para nós, a minha mulher gosta de apregoar aos quatro ventos a sua miséria, mas a verdade é que ela conseguiu pôr uns dinheiros de lado – uns quarenta ou mesmo uns cinquenta mil rublos; eu, pessoalmente, é que não tenho um copek, nem sequer uma moeda furada. Mas deixemos isso... No pensionato de minha mulher sou eu o encarregado da administração. Faço as provisões, fiscalizo o pessoal, assento as despesas, tomo conta da escrita, mato os percevejos, passeio o cãozinho de minha mulher e dou caça aos ratos.

Ontem à tarde, por exemplo, eu devia entregar à cozinheira farinha e manteiga, porque se tinha decidido fazer fritos. Pois muito bem! Imaginem Vossas Excelências que hoje, quando os fritos já estavam prontos, a minha mulher veio à cozinha anunciar que três pensionistas, estando doentes da garganta, não podiam comer fritos. Tinham-se feito, portanto, fritos a mais. Que destino lhes havíamos de dar? A minha mulher, primeiro, ordenou que os guardassem na dispensa, para o doa seguinte. Mas depois refletiu longamente e disse-me: “Coma você esses fritos, seu espantalho!”.

 Quando não está de bom humor, a minha mulher chama-me espantalho, víbora, demónio... Demónio, eu? Calculem Vossas Excelências!... Em suma, ela está sempre de mau humor!


 Pois quanto aos tais fritos, não se pode bem dizer que os tenha comido, porque os devorei, de tal modo que ando sempre esfomeado! Ontem, por exemplo, a minha mulher não me deu de jantar... Disse-me assim: “A você, seu espantalho, não vale a pena alimentá-lo”!


 Entretanto (consulta novamente o relógio) falando disto e daquilo fomo-nos afastando um pouco do assunto... Vamos, pois, prosseguir, ainda que naturalmente, eu esteja convencido que Vossas Excelências haviam de gostar mais de ouvir uma romanza, ou uma sinfonia qualquer, ou uma área de ópera.  (Trauteando) “Fremente indignação – Palpita meu coração...”


 (Falado) Não me lembro de onde isto é... Entre parêntesis, esqueci-me de dizer a Vossas Excelências que na escola de música de minha mulher, além das particularidades domésticas, eu tenho a meu cargo o ensino das matemáticas, da física, da química, da geografia, da história, do solfejo, da literatura etc. Para as danças, o canto e o desenho a minha mulher ministra os rudimentos, embora seja eu, igualmente, quem ensina essas matérias. A nossa escola de música fica no Beco dos Cinco Cães, número 13. A razão da minha pouca sorte, não há dúvida, é habitarmos no número 13. As minhas filhas, como Vossas Excelências já sabem, nasceram todas em dias 13 e a nossa casa tem 13 janelas... Mas deixemos isso.


 Para quaisquer informações que Vossas Excelências pretendam, encontrarão sempre a minha mulher em casa, e o programa da escola, se alguém deseja conhecê-lo, está à venda no porteiro, ao preço de 30 copeks. (Tira do bolso algumas pequenas brochuras) E até se alguém está interessado, posso vender alguns a Vossas Excelências. São a 30 copeks o exemplar. (Pausa) Ninguém deseja? Então a 20!... (Outra pausa. Guardando os programas) É pena...


 Pois é verdade, a nossa casa tem o número 13. E nada me sai bem; envelheci, tornei-me estúpido... Assim, reparem Vossas Excelências, estou a fazer uma conferência, tenho um ar alegre, e, contudo, desejaria gritar de desespero e fugir, fugir, fosse lá para onde fosse!


 E como não tenho ninguém a quem contar as minhas mágoas, até chego a ter vontade de chorar...


 Já sei que me vão dizer: e então as suas filhas? Mas as minhas filhas, quando eu me lamento, não fazem outra coisa senão rir de mim!... A minha mulher tem sete filhas... Não, perdão, seis! Parece-me... (Emenda rapidamente) Sete, sete! A mais velha, Ana, tem 27 anos e a mais nova 17. Meus senhores, (olha receosamente em direção dos bastidores) eu sou um desgraçado; tornei-me estúpido, nulo, insignificante mas no fundo tendes diante de vós o mais feliz dos pais. No fundo tem de ser assim e não posso falar doutra maneira. Se ao menos Vossas Excelências pudessem saber... Há trinta e três anos que vivo com a minha mulher... E... Posso dizer que estes foram os melhores anos da minha vida,... Ou, pelo menos, poderiam ter sido os melhores... Apesar de tudo, para falar verdade, esses anos passaram como um instante, um momento feliz – que os leve o diabo de uma vez para sempre!


 (Olhando os bastidores) Bom, parece-me que a minha mulher ainda não chegou. E como ela ainda cá não está, posso dizer tudo o que eu quiser. Tenho um medo horrível... um medo horrível quando ela olha para mim...


 Pois bem, eis o que às vezes eu digo a mim próprio: se as minhas filhas demoram tanto a casar-se, é porque são tímidas e os cavalheiros não reparam nelas. A minha mulher não quer dar serões, não convida ninguém para jantar; é muito avarenta, conflituosa e azeda; e é por isso que ninguém vai a nossa casa. Mas,... Mas aqui para nós e muito em segredo... (Aproxima-se da boca de cena; em tom de confidência) Nos dias de grande festa, quem quiser ver as filhas de minha mulher, é em casa da tia Natália Semionovna; conhecem:... Aquela Natália Semionovna que sofre de reumatismo e tem um vestido amarelo, salpicado de manchas pretas que parecem baratas... Em casa dela até se servem acepipes; e quando a minha mulher não está, sempre se bebe um bocadito... Também é verdade que o mais pequeno copo me embriaga; então sente-se o coração tão quente... e ao mesmo tempo fica-se tão triste..., que nem sou capaz de vos explicar... A gente recorda-se, não se sabe por que, do tempo em que era novo, e só apetece fugir não se sabe para onde... Ah, se Vossas Excelências soubessem como é forte este desejo! (Com paixão) Fugir! Deixar tudo sem olhar para trás! Mas fugir para onde? Não importa para onde... Desde que se deixe esta vida estúpida e banal, esta vida medíocre que fez de mim um deplorável pateta, um velho idiota e ridículo... Fugir desta mesquinha, malvada, malvada avarenta que me martiriza e tortura há trinta e três anos! Fugir da música, da cozinha, do dinheiro da minha mulher, de todas estas ninharias, de todas estas baixezas... E parar num campo, em qualquer parte, longe, muito longe!... E debaixo de um céu imenso ser como uma árvore, uma vara... Ser como um espantalho de pardais,... E ver, toda a noite, por cima de mim, a lua tranquila e clara... E esquecer, esquecer, esquecer... Oh! Como eu desejaria arrancar esta casaca velha e mesquinha, dentro da qual me casei há mais de trinta e três anos,... (tira violentamente a casaca) dentro da qual faço continuamente conferências para fins beneficientes. Toma! (Calca raivosamente a casaca aos pés) Toma! Toma!... Estou velho, sou pobre, sou tão ridículo, tão lamentável como este colete com as suas costas coçadas e luzidias... (Volta-se para mostrar as costas do colete) Mas não preciso de coisa nenhuma! Estou acima disto e sou mais puro do que tudo isto! Dantes, era jovem, inteligente, cursava a Universidade, sonhava... Julgava-me um homem! Agora só preciso de repouso...


 (Depois de ter olhado para os bastidores, torna a vestir rapidamente a casaca) A minha mulher já está lá dentro... Já chegou e está ali à minha espera. (Olha o relógio) E a hora já passou! Se ela perguntar alguma coisa, digam-lhe, por favor, digam-lhe que a conferência se realizou e que o espantalho – sou eu, o espantalho... – se portou convenientemente... (Olha para os bastidores e baixa a voz) Ela já está a olhar para aqui...


 (Endireitando-se e elevando a voz) E visto que o tabaco encerra o terrível veneno de que vos acabo de falar, não se deve fumar em caso nenhum e permito-me ter a esperança de que a minha conferência sobre os malefícios do tabaco possa, de certo modo, haver trazido a Vossas Excelências qualquer utilidade. Tenho dito. Dixi et animam levivi!


            (Saúda e afasta-se majestosamente)

 

 

 

 

FIM

 

 Fonte:


www.desvendandoteatro.com




NOTA DO BLOG: Não consegui identificar o autor da tradução que, pela estilo e pelo léxico empregado, deve ser um tradutor português. Se alguém conseguir identificá-lo, por favor, nos informe. 

 

sábado, 22 de junho de 2024

RAFAEL BLANCO ESCREVEU: INTRODUÇÃO A OTELO, O MOURO DE VENEZA

 


Ilustração de Othello e Desdemona no livro antigo Shakespeare por N. Kozhevnikov, 1894

Otelo difere em vários aspectos das outras três tragédias principais de Shakespeare com as quais é geralmente comparada. Escrita aparentemente no momento de sua performance na corte pelos Homens do Rei (a companhia de atuação de Shakespeare) em 1 de Novembro de 1604, depois de Hamlet (cerca de 1599-1601) e antes de Rei Lear (1605-1606) e Macbeth (cerca de 1606-1607), Otelo compartilha com essas outras peças uma fascinação com o mal em seu aspecto mais virulento e universal. Essas peças estudam os efeitos devastadores do orgulho ambicioso, ingratidão, cólera, ciúmes e ódio vingativo – os pecados capitais do espírito – com apenas um breve interesse no conflito político o qual as peças Romanas de Shakespeare ou as tragédias clássicas são geralmente devotadas. Das quatro, Otelo é a mais concentrada em um mal particular. A ação preocupa-se com o ciúme sexual, e, apesar do pecado humano ser de tal forma que o ciúme incessantemente toca em outras formas de depravação, o centro de interesse sempre retorna em Otelo para a destruição de um amor através do ciúme. Otelo é um retrato trágico de um casamento. O protagonista não é um rei ou príncipe, como nas tragédias já mencionadas, mas um general recentemente casado. Não há visitas sobrenaturais, como em Hamlet e Macbeth. As ideias de justiça divina, enquanto essenciais para a descrição de Otelo de uma batalha entre bem e mal para a devoção do protagonista, não abrangem os vastos contornos de Rei Lear, nem encontramos aqui a mesma ampla acusação da humanidade. A ordem social não é abalada seriamente na tragédia de Otelo. O justo Duque de Veneza permanece firmemente no controle, e seu deputado Ludovico supervisiona uma justa conclusão em Ciprus.

Pelas mesmas razões, Otelo não oferece o questionamento sem remorso sobre o relacionamento da humanidade com o cosmos que encontramos em Rei Lear, Hamlet e Macbeth. A batalha entre bem e mal é, claro, cósmica, mas em Otelo esta batalha é realizada através de uma narrativa insultante de ciúme e assassinato. Suas imagens poéticas estão adequadamente focadas principalmente no mundo natural. Um grupo de imagens é doméstico e animal, lidando com cabras, macacos, lobos, babuínos, aves da guiné, gatos selvagens, aranhas, moscas, burros, cães, cavalos copulando e ovelhas, serpentes e sapos; outras imagens, mais amplas em escopo, incluem monstros de olhos verdes, demônios, venenos, buscas por dinheiro, joias manchadas, música fora do tom, e luzes extintas. A história é imediata e direta, mantendo a atmosfera sensacional de sua fonte Italiana em prosa de Giovanni Baptista Giraldi Cinthio, em seu Hecatommithi, de 1565 (traduzido para o Francês em 1584). Os eventos movem-se ainda mais rapidamente do que na obra de Cinthio, pois Shakespeare comprimiu a história em duas ou três noites e dias (embora com um jornada intermediária no mar e com um uso elástico do tempo de palco para permitir a maturidade dos planos de longo prazo, como quando aprendemos que Iago implorou a Emília “cem vezes” para roubar o lenço de Desdêmona, (3.3.308, ou que Iago acusou Cássio de fazer amor com Desdêmona “mil vezes,” 5.2.219). Otelo não tem um enredo duplo totalmente desenvolvido, como em Rei Lear, ou, comparativamente, um grande grupo de personagens servindo como antagonistas ao protagonista, como em Hamlet. O elenco de Otelo é pequeno, e o enredo é concentrado a um grau extraordinário em Otelo, Desdêmona e Iago. O que Otelo pode perder em largura, ela ganha em intensidade dramática.

Ousadamente, Shakespeare abre essa tragédia de amor, não com um retrato direto e simpático dos próprios amantes, mas com uma cena de insinuação viciosa sobre o casamento deles. As imagens empregadas por Iago para descrever o sexo de Otelo e Desdêmona são revoltantemente animalescas, sodomitas. “Neste momento um bode velho e preto / Cobre a sua ovelhinha,” ele insulta o pai de Desdêmona, Brabâncio. (Cobre [Tupping] é uma palavra usada especificamente para a cópula das ovelhas.) “Terá sua filha coberta por um garanhão da Barbária; terá netos que relincham”; “sua filha e o Mouro estão agora formando a besta de duas costas”; “o demônio fará de você um avô” (1.1.90-3, 113-20). Essa visão degradada reduz o casamento à total carnalidade, com repetida ênfase na palavra “grosso”: Desdêmona sucumbiu “ao grosso abraço de um lascivo Mouro” e fez uma “grosseira revolta” contra sua família e sociedade (linhas 129, 137). O segundo tema de Iago, um que lhe é habitual, é o dinheiro. “Pega ladrão! Brabâncio! Acorda, acorda! / Olha a casa, olha a filha, olha os teus cofres!” (linhas 81-2). A implicação é a de um laço sinistro entre o furto no sexo e o furto em ouro. Sexo e dinheiro são, ambos, provisões a serem protegidas por pais vigilantes contra filhos libidinosos e oportunistas.

Nós como plateia fazemos uma ampla concessão ao viés de Iago em tudo isso, desde que ele admitiu para Rodrigo desonestidade e ressentimento por Otelo. Mesmo assim, a visão carnal do amor que confrontamos é calculadamente inquietante, porque ela parece muito equacionada com uma imagem pejorativa da negritude. Otelo é, inquestionavelmente, um homem negro, referido depreciativamente por seus detratores como “lábio-grosso” com um “peito escuro” (1.1.68; 1.2.71); o uso Elisabetano aplicava o termo “Mouro” sem distinguir entre pessoas Árabes e Africanas. Desde o ofensivo início da peça, Otelo e Desdêmona têm que provar o valor do amor deles perante às atitudes preconceituosas contra a miscigenação. Brabâncio refugia-se no pensamento que Otelo deve ter enfeitiçado Desdêmona. Sua assunção básica – uma que será ecoada posteriormente por Iago quando a confiança de Otelo for minada pelo próprio Otelo – é que a miscigenação é desnatural por definição. Ao confrontar e acusar Otelo, ele repetidamente apela “para todas as coisas do sentido” (isto é, para o senso comum) e pergunta se não é “um sentido grosseiro” (auto-evidente) que Otelo praticou magia sobre ela, pois nada mais poderia incitar à natureza humana a deixar seu caminho natural. “Pois errar de tal modo a natureza / Sem ser deficiente, cega ou falha / É impossível sem mágica” (1.2.65, 73; 1.3.64-6). Nós como plateia podemos perceber o preconceito racial na visão de Brabâncio e podemos também reconhecer nele o tipo de pai imperioso que convencionalmente opõe-se ao amor romântico. É tristemente irônico que ele deve preferir agora Rodrigo como genro, evidentemente concluindo que qualquer Veneziano branco seria preferível ao príncipe dos negros. Ainda assim, Brabâncio foi hospitaleiro ao Mouro e confiante em sua filha. Ele é uma figura triste em vez de ridícula, e a acusação que faz contra o par casado, não importando o quanto é baseado em hipóteses a priori do que é “natural” no comportamento humano, permanece a ser respondida.

Sobretudo, encontramo-nos perguntando, o que atraiu Otelo e Desdêmona um ao outro? Mesmo que ele certamente não usou de feitiçaria, Otelo pode ter empregado um tipo de encantamento mais sutil no caráter exótico de suas viagens entre “os Canibais que se comem uns aos outros, / Os Antropófagos, e homens cujas cabeças / Crescem abaixo de seus ombros” (1.3.145-7)? Esses eventos “extremos” fascinam Desdêmona e a todos, incluindo o Duque de Veneza (“Penso que esse conto ganharia minha filha também”). Otelo não foi injusto com ela – “Isto sendo a única bruxaria que usei” (linhas 162, 171-3). Entretanto ele não pode representar para Desdêmona uma novidade radical, sendo um homem simultaneamente menos desonesto e mais interessante do que os vangloriadores Venezianos, tais como Rodrigo e os “mais ricos dentre os nossos” (1.2.69), que a perseguiam? O fato dela enganar seu pai através da fuga foi um meio de escapar da convencionalidade? Por que ela foi atraída por um homem mais velho? Por sua parte, Otelo dá a impressão de ser inexperiente com as mulheres, ao menos do status e do aspecto de Desdêmona, e está intrigado e lisonjeado com as atenções dela. “Ela me amou pelos perigos que passei, / E eu a amei porque sentiu piedade” (1.3.169-70). Desdêmona preenche um lugar na visão de Otelo de si mesmo. Ela também representa status para ele na sociedade Veneziana, onde ele trabalha como comandante militar, mas é tratado, entretanto, como algo de alienígena?

Essas maneiras sutis mais impertinentes de duvidar das motivações de Otelo e Desdêmona, adicionando às dificuldades que são inerentes ao tentar-se compreender os mistérios da atração em qualquer relacionamento, são impostas sobre nós na abertura da peça e são, posteriormente, cruciais para a estratégia de Iago de gerar desconfiança. Igualmente importante, entretanto, essas insinuações são refutadas por Otelo e especialmente por Desdêmona. Quaisquer coisas que os outros possam pensar, ela nunca dá a mínima indicação de considerar seu marido diferente porque ele é negro e velho. De fato, as imagens da negritude e da idade são significantemente revertidas durante as primeiras cenas da peça. Otelo já aceitou a fé Cristã, ao passo que Iago, um Italiano branco em uma cultura Cristã, emerge como inatamente maligno desde o início da peça. A primeira aparição de Otelo no palco, quando confronta uma turba de homens com tochas vindo prendê-lo e manda seus seguidores embainharem as suas espadas (1.2.60), relembra, talvez, a detenção de Cristo no jardim de Getsêmani; se sim, ela sugere uma transitória comparação entre Otelo e o Deus Cristão cuja caridade e autodomínio ele busca emular. A negritude de Otelo pode ser usada em parte como um emblema da humanidade decaída, porém todos somos decaídos. Sua idade similarmente fortalece nossa impressão de sua sabedoria, contenção e liderança. Quaisquer sugestões de infidelidade sexual cômica no casamento de um homem mais velho com uma jovem noiva atraente são refutadas pelo o que vemos na consideração casta porém sensual de Desdêmona pelo bem do homem que escolheu.

Desdêmona é devotada a Otelo, admiradora e fiel. Acreditamos nela quando diz que ela nem sequer sabe o que significa ser infiel; a palavra prostituta não está em seu vocabulário. Ela é vulnerável contra as acusações impostas a ela porque não as compreende e não acredita que alguém pode imaginá-las. Seu amor, erótico e casto, é de uma transcendência benéfica comum a várias heroínas posteriores de Shakespeare, como Cordélia em Rei Lear e Hermione em O Conto do Inverno. A “preferência” a Otelo, em vez de seu pai, como Cordélia, que coloca seu dever ao marido antes do que ao seu pai, não é ingrato, mas natural e adequado. E Otelo, não importando o quanto ele possa considerar Desdêmona em termos de sua própria identidade (ele a chama “meu belo guerreiro”), estima Desdêmona como ela merece. “Não posso falar o suficiente desse conteúdo,” ele exclama quando a reencontra em Ciprus. “Ele sufoca. É muita alegria” (2.1.182, 196-7). A apaixonada intensidade de seu amor prepara o caminho para sua tragédia; ele fala mais verdadeiramente do que sabe, “quando eu não te amar, / o Caos estará de volta” (3.3.99-100). Iago também fala verdadeiramente quando observa que Otelo “É de uma natureza constante, amante e nobre” (2.1.290). A tragédia de Otelo não é, de fato, que ele possa ser facilmente enganado, mas que a sua forte fé possa ser destruída a um custo terrível. Otelo nunca se esquece o quanto está perdendo. A ameaça a seu amor não é uma falta inicial de não ser felizmente casado, mas, em vez disso, a insidiosa hipótese que Desdêmona não pode amá-lo porque tal amor seria não-natural. O medo de não poder ser amado existe na mente de Otelo, mas o instrumento humano dessa doutrina viciosa é Iago.

Iago pertence a um grupo seleto de vilões em Shakespeare que, enquanto plausivelmente motivados em termos humanos, também têm deleite no mal por si só: Aaron o Mouro em Tito Andrônico, Ricardo III, Don John em Muito Barulho por Nada, e Edmundo em Rei Lear. Eles não são, como Macbeth ou como Cláudio em Hamlet, homens motivados pela ambição de cometer crimes que claramente reconhecem serem errados. Apesar de Edmundo tardiamente buscar fazer reparações, esses vilões são essencialmente sem consciência, sinistros e entretidos com a própria sagacidade. Eles estão relacionados uns aos outros por uma metáfora de palco do mal personificado derivado do Vício da peça de moralidade, cujo típico papel era ganhar a figura da Humanidade, mantendo-a longe da virtude e corrompendo-a com encantamentos mundanos. Como aquele tentador atraente, os vilões de Shakespeare nessas peças tomam à plateia como sua confidente, gabando-se em solilóquio de sua esperteza, jubilando-se com o triunfo do mal, e improvisando planos com ousadia e engenhosidade. Todos eles são excelentes atores, enganando praticamente todos os personagens no palco até o fim da ação, com suas aparências hipócritas e de Proteu. Eles têm prazer nesse “esporte” e nos impressionam pela virtuosidade. O papel é paradoxalmente cômico em seu uso da enganação ingênua e talentosa – a lúgubre e irônica comédia do vício. Sabemos que devemos condenar moralmente mesmo enquanto aplaudimos à habilidade.

Essa tradição teatral do Vício pode explicar melhor um dispositivo misterioso de Iago, notado há muito e inesquecivelmente expressado por Samuel Taylor Coleridge como “a caça de motivos de uma malignidade sem motivos.” De fato, Iago oferece motivos plausíveis para o que faz. Apesar de sua semelhança com o Vício da moralidade, ele não é uma abstração alegorizada, mas uma insígnia no exército, o oficial de campo júnior que odeia ser subordinado por um teórico ou comandante militar. Como um profissional antigo, ele também ressente não ter sido promovido com base na antiguidade, a “antiga gradação” (1.1.38). Mesmo seus esforços em usar a influência com Otelo resultaram em nada, e Iago pode dificilmente ser culpado por supor que a amizade de Cássio com Otelo lhe ganhou um favor especial. Assim, Iago tem razão para tramar contra Cássio, assim como contra Otelo. Entretanto, uma dimensão adicional é necessária para explicar a arrogância de Iago, sua total falta de reflexão moral, sua concentração em destruir Desdêmona (que não foi injusta com Iago), sua absorção em métodos ingênuos de conspiração, sua delicadeza e estilo. O ódio precede qualquer motivo plausível em Iago e, em última instância, não depende da causalidade psicológica. Provavelmente a tradição do Maquiavel de palco (outro tipo de vilão arrogante baseado em atitudes estereotipadas em relação às ideias políticas heréticas de Nicolau Maquiavel), como em O Judeu de Malta, de Marlowe, contribui para o retrato; essa tradição foi prontamente assimilada por aquela do Vício.

As maquinações de Iago rendem a ele ambos “esporte” e “lucro” (1.3.387); isto é, ele aprecia seus atos malignos, apesar de ser impelido por um motivo. Esse comportamento tal qual o de Vício em roupagem humana cria um senso de uma realidade metafísica destrutiva incansável por detrás de seu exterior visível. Mesmo seus motivos declarados nem sempre fazem sentido. Quando em um acesso de ódio ele soliloquia que “Odeio o Mouro / E dizem por aí que em meus lençóis / Ele fez meu papel.” Iago continua até conceder à improbabilidade dessa acusação. “Não sei se é certo; / Mas, para mim, só suspeitar é o mesmo / Que certeza, no caso.” (linhas 387-91). A acusação é tão absurda, de fato, que temos que olhar para o próprio Iago para a origem dessa ciumenta paranoia. A resposta pode ser parcialmente emblemática: como a encarnação e gênio do ciúme sexual, Iago sofre com a apropriação irônica do mal que ele prega, e sem causa externa. Emília entende que o ciúme não é uma aflição racional, mas uma doença auto-induzida da mente. Pessoas ciumentas, ela diz a Desdêmona, “Não é por causa que se tem ciúme, / Só se o tem porque se o tem. É um monstro / Que é gerado e parido por si mesmo.” (3.4.162-3). O próprio testemunho de Iago confirma isso, pois seu ciúme é, ao mesmo tempo, completamente irracional e agonizantemente autodestrutivo. “Suspeito que o lascivo Mouro / usou a minha cama, um pensamento por meio do qual / Como um mineral envenenado, corrói minhas vísceras” (2.1.296-8). Na luz desse pesadelo, podemos ver que mesmo o aparentemente plausível ressentimento dele com a promoção de Cássio é inveja ciumenta. A “beleza diária” da vida de Cássio faz Iago sentir-se “feio” por comparação (5.1.19-20), engendrando em Iago um profundo senso de falta de valor do qual ele pode temporariamente encontrar alívio somente ao reduzir Otelo e os outros a sua própria condição miserável. Ele é hábil em provocar o ódio próprio nos outros porque ele próprio sofre disso. Sua declaração a Otelo que “Eu sou seu para sempre” (3.3.495) é, claro, cínica, mas também sinaliza a extensão pela qual Iago foi bem-sucedido em separar Otelo de Desdêmona e Cássio em uma união assassina entre dois homens que odeiam mulheres. O Iago que se dedica, assim, como parceiro de Otelo na realização de suas fantasias homicidas é, aprendemos, capaz de fantasiar um bizarro encontro amoroso entre ele próprio e Cássio (linhas 429-41).

Otelo chega, finalmente, a considerar Iago como um “semi-demônio” que o instigou à arruinar-se “abaixo de toda a profundeza do inferno”; Ludovico fala de Iago nas linhas finais da peça como um “vilão infernal” (5.2.142, 309, 379); e o próprio Iago gaba-se que “Quando os demônios vão cometer os mais negros pecados / Eles começam celestiais / Como eu agora” (2.3.345-7). Iago, assim, comporta alguma afinidade com o Vício e com o demônio, sugerindo seu relacionamento tanto com a tentação interior de Otelo quanto com uma força maligna preexistente no próprio universo. Contrariamente, Desdêmona é, nas palavras de Emília, um “anjo”, puramente casta; “Então minha alma atinge a bem-aventurança quando falo a verdade” (5.2.134, 259). Quando Desdêmona desembarca em Ciprus, ela é cumprimentada com palavras que ecoam a Ave Maria: “Salve, senhora! E que a graça divina … Sempre a envolva” (2.1.87-9). Essas imagens introduzem metaforicamente um conflito entre bem e mal no qual Otelo, típico da humanidade decaída, escolheu o mal e destruiu o bem sob o encorajamento de um conselheiro diabólico. Novamente, vemos a herança da peça de moralidade, especialmente da peça de moralidade tardia, na qual a figura da Humanidade era, às vezes, condenada em vez de salva. Mesmo assim, alegorizar Otelo é obscurecer e ler incorretamente seu confronto de paixão humana. De fato, vemos que o impulso que reduz a complexidade humana a absolutos morais simplistas é uma fraqueza fatal em Otelo; ao insistir em ver Desdêmona como um tipo ou abstração, ele perde a visão da maravilhosa humanidade dela. A questão teológica da salvação ou condenação não é relevante em termos dramáticos; a peça não é uma homilia sobre os perigos do ciúme. As dimensões metafísicas de uma tradição homilética são transmutadas no drama humano. Ao reconhecermos essas limitações, podemos, não obstante, ver uma analogia espiritual no método demoníaco de Iago de destruir suas vítimas.

Seu truque assemelha-se ao do similarmente criminoso Don John em Muito Barulho por Nada: uma ilusão ótica pela qual a inocente heroína é impugnada como uma adúltera. O oculto Otelo deve assistir Cássio gabando-se de seus triunfos sexuais e acredita que este fala de Desdêmona. Como o diabo, Iago detém poder sobre os frágeis sentidos das pessoas, especialmente os olhos. Ele pode criar ilusões para induzir Otelo a ver o que Iago quer que ele veja, como Don John faz com Cláudio, mas a aceitação da mentira por Otelo deve ser de sua própria responsabilidade, uma falha de sua vontade corrupta. Iago pratica em Otelo uma lógica a priori usada anteriormente em Brabâncio e Rodrigo, encorajando à tendência de todos os mortais em pecarem e a suposta não-naturalidade do casamento negro-branco. Todas as mulheres têm apetites; Desdêmona é uma mulher; então, Desdêmona tem apetites. “O vinho que ela bebe é feito de uvas,” ele zomba com Rodrigo. “Se ela fosse abençoada, ela nunca teria amado o Mouro” (2.1.253-5). Ela é uma Veneziana, e “Em Veneza elas permitem que Deus veja os truques / Que não ousam mostrar para seus maridos” (3.3.216-17). Assim, ela, também, é uma hipócrita; “Ela enganou seu pai” (linha 220). Sobretudo, é razoável que ela anseia por um homem de sua própria raça. Iago é bem-sucedido em fazer Otelo concordar: “E entretanto, a Natureza pode errar-” (linha 243). Essa proposição, que a Natureza ensina todas as pessoas, incluindo Desdêmona, a buscar uma combinação harmoniosa de “clima, aparência e grau”, cria uma resposta emocional em Otelo, pois ele sabe que apesar de ter autoridade como um general servindo sua cidade adotada ele é também negro e, em alguns sentidos, um estrangeiro, um alienígena. “Quiçá por seu eu negro, / E faltar-me a arte da conversa / Dos cortesãos, ou por estar descendo / Para o vale dos anos” (linhas 246, 279-82), “os jovens afetos / Que em mim já são passados” (1.3.266-7). E então, se se deve concluir do anterior que Desdêmona buscará um amante, a única questão é quem. “Uma vez isso admitido – que é uma conclusão muito ponderada e nada forçada – quem fica tão eminentemente qualificado quanto Cássio?” (2.1.236-9). Uma vez que Otelo aceitou esta sequência silogística de provas, enganosa não através de qualquer lapso na lógica, mas porque as hipóteses axiomáticas sobre a natureza humana são degradadas e não se aplicam a Desdêmona, Otelo chega a uma conclusão inabalável a qual toda a evidência subsequente deve aplicar-se. “Vilão, é bom provar que o meu amor é puta,” ele delega Iago (3.3.375). A súplica inocente de Desdêmona por Cássio somente torna as coisas piores. O suposto murmúrio de Cássio enquanto dormia, assim como o lenço visto em sua posse ou sua conversa risonha sobre sua amante Bianca, “discursa contra ela [Desdêmona] com as outras provas” (linha 456).

Como Otelo pode ter caído tanto? Sua alegria com Desdêmona quando eles se reuniram em Ciprus não conhecia limites. Essas duas pessoas representam o amor no casamento em seu melhor, erótico e espiritual, ela aumentando a masculinidade dele, ele estimando a beleza e a virtude dela. A negritude e a idade são imagens positivas para ele, apesar das insinuações anteriores ao contrário. De fato, não temos razões para supor que Otelo é o que chamaríamos de “velho,” apesar de suas preocupações sobre estar “descendendo / Nos vales dos anos” e de ter perdido os “efeitos jovens” do desejo sexual; ele parecer ser de meia-idade e vigoroso, tanto que Desdêmona é atraída por ele sexualmente, assim como de outras formas. Ele é um homem de valor público, de comando, de autoconfiança. Desdêmona é a mais doméstica das heroínas trágicas de Shakespeare, mesmo enquanto ela é, também, representativa de muito que é transcendente. Marido e mulher estão felizmente conectados em um dos poucos retratos detalhados de Shakespeare do compromisso sério do casamento. Otelo inicialmente tem a sabedoria para compreender que a atratividade feminina de Desdêmona não deve ser uma ameaça a ele: ele não precisa ser ciumento porque ela é bela, “livre no discurso,” e ama a dança e a música, pois “Onde há virtude, essas são virtuosas.” Nem vê qualquer razão à primeira vista para temer a “revolta” dela simplesmente porque ele é negro e mais velho que sua esposa; “ela tem olhos, e escolheu-me” (3.3.197-203). A autoconfiança de Otelo através do amor que ele percebe em Desdêmona é o mais forte signo de sua felicidade no casamento.

O que muda então? Olhamos para Iago para um importante insight, mas, em último lugar, a causa deve estar no próprio Otelo. Arthur Kirsch argumentou persuasivamente (em Shakespeare e a Experiência do Amor, 1981) que a mais grave falha de Otelo é uma consideração insuficiente sobre si mesmo. É em parte uma inabilidade de conter os efeitos nele de uma cultura que o considera um forasteiro; ele é finalmente persuadido a ver a si mesmo com os olhos de Veneza, não somente de Iago, mas de Brabâncio (que felizmente entretém Otelo até este ter a presunção de fugir com a filha branca de Brabâncio) e outros. A destruição resultante da autoestima é devastadora. O ciúme de Otelo origina-se da suspeita profunda que os outros não podem amá-lo porque ele não se considera amável.

Otelo amou Desdêmona como uma extensão de si mesmo, e, em seus momentos mais satisfeitos, seu casamento é sustentado por uma visão idealizada de si mesmo servindo como o objeto de sua paixão romântica exaltada. Quando ele destrói Desdêmona, conforme percebe com terrível claridade, Otelo destrói a si mesmo; o ato é um prelúdio de seu suicídio de fato. O meio da tentação de Iago, então, é o de persuadir Otelo a considerar-se com os olhos de Veneza, a aceitar a visão que Otelo é, ele próprio, um estrangeiro e que qualquer mulher que amá-lo assim o faria perversamente. No estado contaminado da mente de Otelo, a própria sexualidade de Desdêmona torna-se uma ameaça insuportável para ele, o calor e a devoção dela uma “prova” de deslealdade. Os discursos mais torturados de Otelo (3.4.57-77, 4.2.49-66) revelam a extensão a qual ele equipara as aparentes mulheres traidoras, as quais ele tanto dependeu para sua felicidade, com sua própria mãe, que deu um lenço para um feiticeiro Egípcio e foi avisada que, se ela o perdesse, ela perderia a afeição de seu marido. Otelo aprendeu brevemente e então esqueceu a preciosa arte de harmonizar a paixão erótica e o amor espiritual, e, quando esses dois grandes objetivos do amor foram retirados dele, ele passou a repugnar e temer a sexualidade que o relembra constantemente de sua fragilidade física e da dependência da mulher. O horror e a lástima de Otelo repousam, sobretudo, no espetáculo de um amor que foi outrora tão completo e nobre que se tornou obsceno pelo ódio próprio. O erro trágico encontra-se, assim, na masculinidade de Otelo, em seu medo da traição da mulher inocente que ama, e sua aparente necessidade de degradá-la pelas próprias coisas que considera desejáveis nela – uma tendência muito comum entre os homens que Freud, no início do século vinte, podia declará-la “a mais prevalente forma de degradação da vida erótica” (no Sammlung, de Freud, volume 4).

A crescente submissão do juízo de Otelo à paixão pode ser medida em três cenas de julgamento sucessivas na peça: o julgamento inteiramente justo do próprio Otelo pelo Senado Veneziano em relação à fuga [com Desdêmona], o julgamento de Cássio por Otelo, por beber e tumultuar (quando, como um mau presságio, “o sangue já começa a dominar-me,” 2.3.199), e finalmente a sentença prejulgada contra Desdêmona, sem prover a ela qualquer oportunidade de defender-se. Em um consequente declínio, Otelo decai da compaixão Cristã das cenas de abertura (ele costumeiramente confessas ao céu “os vícios do meu sangue,” 1.3.125) para a selvageria pagã da execução vingativa e ritualística de sua esposa. “Meu coração tornou-se pedra” (4.1.184-5), ele jura, e, no final da peça, dolorosamente caracteriza a si mesmo como um “mero Índio” que “jogou uma pérola fora / Mais valiosa que toda a sua tribo” (5.2.357-8). Iago sabe que ele deve persuadir Otelo a sentenciar e executar Desdêmona, pois somente por um ativo comprometimento com o mal Otelo irá condenar-se. É no desejo de ver Otelo destruir à inocência e à bondade às quais sua felicidade depende que Iago mais assemelha-se ao demônio.

O destino de alguns dos personagens menores ecoa o de Otelo, pois a má intenção de Iago é de “enredar a todos” (2.3.356). Cássio, em particular, é, como Otelo, um homem atraente com uma única e vulnerável fraqueza – em seu caso, um apetite carnal por vinho e mulher. Para ele, alternativamente idolatrando e depreciando às mulheres como ele o faz, o intervalo entre o amor espiritual e o sensual permanece vasto, mas ele é de natureza essencialmente boa e honrada. Seus erros aparentemente geniais conduzem ao desastre, porque eles o colocam à mercê de um inimigo sem remorso. Iago é, com adequada ironia, o apóstolo do autocontrole absoluto: “Nossos corpos são nossos jardins, os quais nossas vontades são jardineiras” (1.3.323-4). Assim, a tragédia de Cássio é qualquer coisa exceto uma homilia direta sobre as virtudes da temperança. Similarmente, Bianca é arruinada, não através de qualquer punição simples de causa e efeito por sua conduta sexual – ela é, sobretudo, apaixonada por Cássio e leal a ele, mesmo que ele não pretenda casar-se com ela – mas porque Iago é capaz de tornar às aparências contra ela. Com seu apelo usual a uma lógica a priori, ele constrói um caso a qual ela e Cássio estão em conluio: “Senhores, desconfio que esse lixo / Esteja nisso … Dá nisso andar com putas” (5.1.86-7, 118). Rodrigo é outra das vítimas de Iago, uma das desdenháveis, iludido porque ele, também, submeteu a razão à paixão. Emília não pode escapar da influência maligna de Iago e rouba o lenço para ele, sem saber de seu valor para Desdêmona. Os erros são ampliados em desastres por uma inteligência maligna impiedosa. Homens e mulheres devem ser incessantemente circunspectos; uma boa reputação é mais brevemente perdida do que recuperada. Emília é uma mulher convencionalmente decente – ela troça de Desdêmona que seria infiel no casamento somente por um preço muito alto – e, entretanto, seu pequeno compromisso com sua consciência contribui para o assassinato de sua senhora. Como Otelo, ela oferece redenção muito tarde, ao denunciar seu marido em um gesto de oposição à autoridade masculina que diz muito sobre as consequências trágicas da desconfiança masculina da mulher. Desdêmona é a única pessoa na peça muito boa para ser incapacitada por alguma falha interior, o que pode explicar por que Iago é tão determinado em destruí-la juntamente com Otelo e Cássio.

Como um herói trágico, Otelo obtém o autoconhecimento a um preço terrível. Ele sabe finalmente que o que destruiu era inefavelmente bom. A descoberta é muito tardia para fazer reparações, e ele morre por suas próprias mãos em compensação. As mortes de Otelo e Desdêmona são, de maneiras separadas, igualmente devastadoras: ele é em parte vítima de racismo, apesar de nobremente recusar desmentir sua própria culpabilidade, e ela é vítima do sexismo, decaindo tristemente no papel estereotípico do sofredor passivo e silencioso que o mundo Veneziano espera das mulheres. Apesar da perda, entretanto, a reafirmação da fé de Otelo na bondade de Desdêmona desfaz o que o demoníaco Iago mais esperou alcançar: a separação de Otelo de sua amável confiança em quem é bom. Nesse importante sentido, o autoconhecimento de Otelo é catártico e uma compensação pelo terrível preço que pagou. A própria existência de uma pessoa tão boa quanto Desdêmona desmente à crença de Iago que todos têm seu preço. Ela é a vítima sacrificial que deve morrer pela perda da fé de Otelo e, ao morrer, reacende àquela fé. (“Minha vida sobre a fé dela!” Otelo afirma profeticamente, em resposta à advertência do pai dela, que esta poderia enganar [1.3.297].) Ela não pode recuperá-lo, pois o ódio próprio cumpriu seu feio trabalho, mas ela é o meio o qual ele compreende finalmente a natureza destrutiva, quimérica e licenciosa de seu ciúme. Sua grandeza aparece em seu reconhecimento dessa verdade e no conflito heroico com o qual confrontou uma escuridão interior que nós todos compartilhamos.

No palco e em filme e televisão, Otelo prova-se chocantemente relevante para as questões modernas em torno do conflito racial e os maus tratos dos homens em relação às mulheres. Janet Suzman escolheu produzir a peça no palco e subsequentemente para a televisão educacional em Joanesburgo, África do Sul, em um momento em que o apartheid seria brevemente desmantelado, mesmo que este surpreendente porém inevitável evento ainda não fosse discernível. Uma plateia racialmente misturada veio assistir a um elenco racialmente misturado, com John Kani, um bem conhecido ator Negro Sul-africano, como Otelo, e uma atriz Sul-africana loira como Desdêmona. Iago inconfundivelmente representou a mentalidade de um policial obcecado em preservar a pureza da raça Branca e, por isso, venenoso em seu ódio racial por Otelo, por seu casamento miscigenado com uma mulher Branca. As emoções explosivamente poderosas dessa produção produziram uma memorável versão em filme. A versão em filme de Orson Welles, de 1951, recentemente remasterizada, apresentava Otelo com a face pintada de preta como o protagonista; assim também o filme de Laurence Olivier, 1965, baseado em uma produção de palco no Teatro Nacional de 1964 com Frank Finlay como Iago e Maggie Smith como Desdêmona. De fato, a maioria dos Otelos de palco ao longo dos séculos foram atores Brancos (incluindo Edmund Kean, John Philip Kemble, Edwin Booth, Charles Macready, Edwin Forrest, Henry Irving, Tommaso Salvini e Paul Scofield, vários deles também interpretaram Iago), com exceções notáveis que incluem Ira Aldridge, Earle Hyman e Paul Robeson. As estimulantes performances de Robeson no Teatro Savoy, em 1930, com Peggy Ashcroft como Desdêmona, e então na produção de Margaret Webster, em Nova Iorque, de 1943-1945, com Uta Hagen como Desdêmona e José Ferrer como Iago, ajudaram a estabelecer o papel de Otelo como um que grandes atores Negros poderiam interpretar. Hoje um elenco racialmente misturado permite todos os tipos de permutas, embora o filme recente de Kenneth Branagh escolher um padrão mais reconhecível, com o próprio Branagh como Iago e Laurence Fishburne como Otelo. Em outro desenvolvimento recente, Emília projeta-se, em várias produções, como a figura heroica da peça e raisonneur, falando em nome das mulheres maltratadas, clamando para que Desdêmona busque seus direitos. Uma produção recente em Chicago foi tão longe a ponto de reescrever o final: Otelo e Iago sobrevivem sem punições pelo que fizeram, enquanto Desdêmona e Emília morrem como suas vítimas inocentes. Esse exagero deliberado e provocativo pode parecer extremo para alguns espectadores, porém inquestionavelmente assinala a direção da recente história da performance dessa peça profundamente perturbadora.


Fonte:


Rafael Blanco


https://shakespearebrasileiro.org/introducao-a-otelo-o-mouro-de-veneza/

quinta-feira, 6 de junho de 2024

SIMONE MALAGUTI ESCREVEU: RUTH RÖHL - O TEATRO DE HEINER MÜLLER (resenha)



 RUTH RÖHL - O TEATRO DE HEINER MÜLLER


Ruth Röhl (1997): O Teatro de Heiner Müller: Modernidade de Pós-Modernidade. São Paulo: Perspectiva. (Coleção Estudos). 189 pgs.

* Simone Malaguti



Heiner Müller tornou-se o dramaturgo alemão por excelência e, por isso, personalidade de referência obrigatória da dramaturgia e literatura alemã atuais. Suas obras históricas, revolucionárias e convulsivas identificam-se tanto com a construção da história alemã e do mundo contemporâneo que nele se incorporou uma espécie de "voz da Alemanha" e da modernidade. Entre uma palavra torpe aqui e outra sórdida ali, essa voz faz ecoar muitas outras: a do teatro de Brecht – mestre que seguiu e transgrediu -, a do materialismo histórico de Marx e a do niilismo de Nietzsche, para não citar outras. Tematicamente Müller baseia-se em obras consagradas da tradição literária - nas tragédias gregas, no teatro de Shakespeare, nas obras de Walter Benjamim, Kleist, Hölderlin – e nos principais acontecimentos do século XX, colocando assim sua literatura sempre ao lado de processos históricos e propósitos políticos, seja para objetivá-los, seja para ironizá-los. Em conseqüência, a literatura mülleriana propõe ao público uma leitura desafiadora, pois tem no nível da sua elaboração uma composição temática e estrutural complexa e polêmica.

Ruth Röhl deslinda as facetas dessa complexidade através de uma leitura intertextual e desconstrutivista e busca, simultaneamente, as características modernas e pós-modernas de Müller e suas obras. A autora apresenta-nos um autor que mesmo circunscrito dentro das normas estreitas do realismo socialista, sistema que se queria harmônico e não-decadentista, não se deteve nelas, ligando-se à literatura moderna e pós-moderna e correndo riscos sócio-políticos da realidade da ex-Alemanha Oriental. À procura de pré-textos e discursos primeiros que se inserem nas obras de Heiner Müller, Ruth Röhl analisa o dramaturgo e suas obras confrontando o "velho" e o "novo", um tipo de trabalho que era objetivo obsessivo na criação artística de Müller, para quem esse tipo de confronto era o instrumento ideal para reativar a memória do receptor.

Após uma introdução que contextualiza Heiner Müller dentro das normas estético-literárias da RDA, a primeira parte do livro trata do conceito de modernidade e pós-modernidade. Para tanto, diversos teóricos são citados, como por exemplo Bürger, Casullo, Habermas, Birringer, Jameson, Sontag, Foucault e Hutcheon.

À análise crítico-interpretativa de obras de Heiner Müller são dedicados dois capítulos: um que cobre a teoria da intertextualidade e sua prática por meio de uma análise de Macbeth e Hamletmaschine e, de forma semelhante, o outro que se ocupa com as teorias da construção e desconstrução (de Derrida) nas análises de O Achatador de Salários e A Missão . Aqui é ao nosso ver a parte mais interessante do estudo e que justifica o interesse pelo livro.

Não obstante a „idade“ e o desgaste do conceito da intertextualidade, Ruth Röhl comprova a utilidade dessa noção através da aplicação do método de Broich e Pfister, professores nas universidades de Munique e Passau. Eles pretendem chegar à identificação das relações intertextuais através de um método que vise o grau, a relevância, integração, seleção e diálogo entre os elementos dos textos, onde um se utiliza de elementos dos outros. Ruth se detém com algum pormenor nos traços das peças de Müller que geram a poética intertextual, inovadora e polêmica para o cenário político da então RDA. Para tanto, a autora faz: 1) a análise da macro e da microestrutura dos textos de Müller a partir dos textos de Shakespeare, e 2) a análise dos textos de Müller do ponto de vista de uma lista de pré-textos secundários. A peça Hamletmaschine ganha mais espaço dentro do livro: cena a cena, a autora levanta detalhes que são na verdade citações de textos já conhecidos sedimentados no fundo do texto mülleriano.

No capítulo dedicado à desconstrução, Ruth remete inicialmente a Brecht e Artaud, os dois dramaturgos que mais influenciaram o teatro de Heiner Müller. Afirma que Müller era consciente do forte engajamento político de Brecht, por isso, condena seu rigor exagerado, mas, por outro lado, valoriza os textos "inacabados" e as peças de aprendizagem. De Artaud, Müller extrai o irracionalismo e a anarquia para emprestar ao teatro o caráter incômodo. Com a combinação da polissemia que o teatro brechtiano oferece e a anarquia incômoda emprestada por Artaud o resultado é, conforme a autora, um "equilíbrio supremo" em forma de destruição. Dessa forma, Müller encontra a expressão perfeita para representar suas impressões sem ser dogmático. Antes de passar às análises das obras O Achatador de Salários e A Missão, Ruth expõe algumas idéias centrais da desconstrução (na reflexão do filósofo francês Jacques Derrida, principal figura da corrente do pensamento atual que cunha o termo) ligando-as à ênfase colocada por Müller na expressão da "diferença" e na "figura da margem". Essa perspectiva levou Ruth Röhl ao exame de movimentos conflituais na estrutura das obras e à explicação do movimento dialético da peça enquanto crítica ao socialismo e à utopia socialistas na RDA.

A análise de cenas da peça A Missão se faz pelo filtro de seus pré-textos A Luz sobre a Forca de Anna Seghers, A Decisão de Brecht, a Morte de Danton, de Büchner e através da visão de mundo kafkiana. Centrado no conflito entre Primeiro e Terceiro Mundos, entre o destino missionários do europeu e o fado da submissão dos países colonizados, o estudo enfatiza como se dá a desconstrução de uma realidade pela percepção do outro e da diferença. Tal enfoque tem efeitos subversivos dentro da peça: despe o homem europeu de sua arrogância, "concedendo ao espaço periférico (Terceiro Mundo) o direito à sua diversidade" (p.133).

No último capítulo, "Modernidade e Pós-Modernidade" em Heiner Müller, Ruth Röhl aponta para a evidente dificuldade de demarcações absolutas na constelação teatral de Heiner Müller. Todavia, através de seu próprio estudo, Ruth demonstra ser possível detectar as "marcas" e as "estratégias" praticadas por Müller, características que simultaneamente inovaram o teatro e inseriram o dramaturgo na estética moderna e pós-moderna.



*Simone Malaguti é mestranda em Literatur Alemã na Universidade de São Paulo




Fonte:



(Leia neste blog a passagem do BERLINER ENSEMBLE por São Paulo:

quarta-feira, 5 de junho de 2024

INGRID KOUDELA ESCREVEU: OS FANTASMAS DE HEINER MÜLLER

Os fantasmas de Heiner Müller


Ingrid Koudela




"Eu era Hamlet. Estava à beira-mar e falava, com a ressaca, na língua do blablablá. Atrás de mim, as ruínas da Europa" (Heiner Müller).

"Um fantasma abandona a Europa" (1), escreve Heiner Müller no decorrer dos eventos que marcaram a queda do muro de Berlim. O fantasma deixou atrás de si um escritor inútil? Hoje, que o fantasma já pode ser nomeado abertamente, há ainda necessidade de usar máscaras para dialogar com os mortos? É de se temer que, abandonando a Europa, o fantasma confira um valor premonitório ao "homem no elevador" (2), na busca desesperada de sua missão? Estamos lidando com uma obra envelhecida prematuramente pelo tempo, subitamente "fora dos eixos" (3)?

O passado, individual e coletivo, precisa mais do que nunca ser invocado, e muitos fantasmas, mais antigos e mais recentes, hão de fazer a sua aparição. "É preciso aceitar a presença dos mortos como parceiros de diálogo ou como destruidores ­ somente o diálogo com os mortos engendra o futuro" (4).

"A partir de hoje e por muito tempo não haverá mais neste mundo vencedores mas apenas vencidos", diz o Egoísta Fatzer (5). Brecht faz o comentário do fragmento: "[...] como antigamente fantasmas vinham do passado assim também agora do futuro" (6). E Müller declara, em 1990: "[...] os fantasmas não ameaçam apenas surgir do passado mas como motoristas loucos na via expressa do futuro" (7). Brecht, adulado e rejeitado, caído no esquecimento?

Nascido em 1929, Heiner Müller iniciou sua carreira literária quando o socialismo estava em construção, na antiga RDA. A obra de Müller, que está em confronto permanente com a teoria e prática de Brecht, permite lançar um olhar novo sobre um autor que também virou um fantasma que assola o teatro. Durante uma espécie de "exílio interior", Müller se deteve na obra do "escrevinhador de peças", depois do qual "[...] muitas coisas não são mais possíveis ou só são possíveis diferentemente" (8). Após uma tentativa de levar adiante o fragmento "Viagens do Deus da Felicidade", Heiner Müller dirá mais tarde que esta empreitada significou para ele uma iluminação sobre a "mudança de função da literatura num período de transição" (9).

Müller tem uma experiência igualmente fecunda para a sua criação através do confronto com o Lehrstück (Peça Didática), em especial com o fragmento "Decadência do Egoísta Johann Fatzer", um trabalho inacabado do jovem Brecht, que assume atualidade de singular valor na pós-modernidade .

Em O Teatro de Heiner Müller, Ruth Röhl considera a pós-modernidade como uma continuação da modernidade, enquanto macroperíodo. Lembrando Lyotard, para quem o prefixo "pós" conota necessariamente a idéia de começo, devido à ruptura com a produção estético-cultural precedente, a autora demonstra como mesmo o projeto cultural da modernidade não se mostra uniforme. Assim, a "crise das representações", na pós-modernidade, parece trazer à tona a consciência da ruptura com a tradição, que sempre marcou a modernidade.

O macroperíodo da modernidade está centrado em duas categorias, recorrentes na representação moderna ­ a intertextualidade e a desconstrução. Ruth Röhl descarta a possibilidade de uma inovação radical em termos de categorias estéticas, na medida em que na pós-modernidade o acento recai na forma de reconstrução e refuncionalização de material já existente. Esse ethos da representação pós-moderna permite investigar como a nova sensibilidade se comporta em relação à autoridade pretérita, não só em termos de produção estético-poética, como também do ideário cultural.

"Eu comecei ali onde Brecht parou" (10). Nos diálogos com o filósofo Wolfgang Heise, Müller revela sua adesão fundamental, como se a prática prolongada de acordo com a máxima "usar Brecht sem criticá-lo é traição" (11) lhe tivesse permitido penetrar nos reais fundamentos dessa obra. Ou como se a espiral de sua criação o tivesse conduzido ao coração da estética do teatro épico.

O estudo da obra de Heiner Müller permite constatar que ali onde ele parece o mais distante está na realidade mais próximo de Brecht. A cadeia de experimentos O Horácio e Mauser é testemunho de sua preocupação com a teoria e a prática da tipologia dramatúrgica do Lehrstück, criada por Brecht, que a diferencia do Episches Schaustück, a Peça Épica de Espetáculo. Durante a fase de experimentação dos Versuche (12), Brecht não concebeu suas peças como obras isoladas, mas desde o seu ponto de partida, como elos de uma cadeia. Cada Versuch (experimento) vale por si mesmo, mas a ele se opõe um Gegenstück (contrapeça), uma negação, que poderá ser superada através de uma terceira peça. Na cadeia de experimentos com a Peça Didática, escrita antes da emigração, esse procedimento dialético pode ser claramente identificado. Ao mesmo tempo, cada tentativa isolada também é modificada e melhorada em si mesma, de forma que, dentro da grande cadeia, formam-se cadeias menores. Se entendermos os textos das Peças Didáticas como dispositivos para experimentos, então eles devem ser suscetíveis de modificações, quando novas questões ou pontos de vista são gerados.

Heiner Müller realiza, através de um conteúdo totalmente novo, de forma exemplar, o modelo do Lehrstück. O gênero dramático inaugurado por Brecht traz assim uma nova contribuição, não apenas na área da teoria do drama e da nova práxis teatral, através da qual representa também uma alternativa séria para a pedagogia, como também inaugura uma nova tipologia de dramaturgia que se diferencia da dramaturgia tradicional. Em uma sociedade na qual o próprio teatro se tornou uma indústria e a literatura, sua matéria-prima, permanece a proposta da Peça Didática como um modelo de educação político-estético e experimentação teatral que procura gerar novos meios de produção ­ "entre a espada e a palavra". Para transformar a sociedade pelos meios do teatro, é indispensável modificar as estruturas do teatro, que são um reflexo das estruturas da sociedade. Heiner Müller resume sua concepção do teatro ao falar do fragmento Fatzer que ele considera como uma utopia política. "Brecht expressou isso certa vez assim: o teatro épico só existirá quando cessar a perversidade de transformar um luxo em profissão. Trata-se naturalmente de uma utopia política e 'Fatzer' é um teatro da utopia" (13).

A obra de Heiner Müller mostra um autor cujo traço é marcado pela reescritura de literatura. O "diálogo com os mortos" se faz como numa via de mão dupla, na medida em que, participando na história da recepção de literatura, o texto convive também com a posteridade. Para Ruth Röhl, a intertextualidade, ainda que presente como procedimento sistemático e intencional em grande parte dos autores contemporâneos, projeta-se na escrita de Müller através da visão crítica da realidade. Nesse sentido, tanto Hamletmaschine como Macbeth são "reescrituras materialistas" ­ a construção de significação através dos intertextos provoca o ato crítico, que instaura o processo de transformação de consciência histórica. A intenção desse olhar, voltado para a história, tem contudo em mira o futuro, embora o autor não ofereça soluções

Notas

(1) Heiner Müller, Ein Gespenst verlässt Europa, Photographien von Sibylle Bergemann, Kiepenhauer & Witsch, 1990.

(2) Idem, "A Missão. Lembrança de uma Revolução", in Fernando Peixoto (org.), Teatro de Heiner Müller, São Paulo, Hucitec/Associação Cultural Bertolt Brecht, 1987.

(3) Idem, ibidem.

(4) TransAtlantik, 1990-94, p. 15.

(5) Bertolt Brecht, "Decadência do Egoísta Johann Fatzer", in Teatro Completo de Bertolt Brecht, vol. 12, tradução de Ingrid Koudela, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.

(6) Idem, ibidem

(7) Sinn und Form, 1991-92, p. 415.

(8) Heiner Müller, Gesammelte Irrtümer. Interviews und Gespräche, Frankfurt, Verlag der Autoren, 1986.

(9) Idem, ibidem.

(10) Wolfgang Heise, in Wolfgang Storch (ed.), Explosion of a Memory Heiner Müller DDR. Ein Arbeitsbuch, Berlim, Edition Hentrich, 1988.

(11) Idem, ibidem.

(12) Bertolt Brecht, Versuche, Berlim, 1930.

(13) Heiner Müller, Gesammelte Irrtümer. Interviews und Gespräche, op. cit.

Ingrid Koudela é professora da ECA-USP e autora, entre outros, de Texto e Jogo: uma Didática Brechtiana (Perspectiva/Fapesp).

O Teatro de Heiner Müller: Modernidade e Pós-Modernidade, de Ruth Cerqueira de Oliveira Röhl, São Paulo, Perspectiva, 1997.


Fontes: 




http://www.leechvideo.com/video/view537798.html vídeo da peça A MISSÃO, de Heiner Muller

quarta-feira, 22 de maio de 2024

INÁ CAMARGO COSTA ESCREVEU: LEMBRANÇAS DE TENNESSEE WILLIAMS

 

Uma Rua Chamada Pecado, 1948
Acervo Cedoc/FUNARTE


Seja o senhor quem for... eu sempre dependi da bondade dos estranhos...


Blanche Dubois (*)


Mesmo reconhecendo-o como um dos grandes dramaturgos americanos do período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, críticos e historiadores são reticentes em relação à obra de Tennessee Williams. Este ensaio procura identificar uma das razões do mal -estar que sua dramaturgia provoca.


Repressão da Memória

Tennessee Williams foi revelado para o grande público do teatro americano (leia-se Broadway) a 31 de março de 1945, quando estreou com imenso sucesso de público e crítica a sua The Glass Menagerie. Estava co m 3 4 a nos, o que para ele significava sucesso tardio e arduamente conquistado.

De um modo geral, os estudiosos de sua vida e obra, mesmo reconhecendo nele o poeta das vítimas da repressão em geral e da sexual em particular, passam ao largo daquela informação, sendo muito raros os que dedicam meia dúzia de linhas a uma experiência anterior (Batt/e of Angels, 1940) que resultou em fracasso de bilheteria. Outra aventura teatral também esquecida é a coletânea de peças em um ato, American Blues, premiada pelo Group Theatre em 1939. As peças deste volume, carimbadas com a rubrica "preocupações sociais e radicalismo", costumam ser despachadas para o arquivo das "superadas" experiências teatrais dos anos trinta. E não se fala mais no assunto, pois a regra americana ensina que só o sucesso interessa.

No caso de um escritor como Tennessee Williams, essa estratégia de rasurar o passado tem conseqüências nefastas em mais de um sentido: de um lado, desarma até mesmo a análise de seus sucessos e, de outro, deixa completamente inexplicada a maior parte de sua obra. Para nos restringirmos a números: 32 peças curtas, 7 médias e 24 longas, além de 15 filmes, um dos quais é baseado em um de seus romances (The Roman Spring of Mrs. Stone) que, assim como os livros de poesia e contos, não entraram nesta conta.

O próprio dramaturgo colaborou com a estratégia, na medida em que, por exemplo, repetiu seguidamente a informação de que passou toda a vida reciclando seus materiais, de modo que um conto virou peça em um ato, depois peça longa, depois filme, ou o contrário, como The Glass Menagerie, que primeiro foi o conto Portrait of a girl in glass - onde, segundo o autor, se encontra o verdadeiro retrato literário de sua irmã Rose, matriz de Laura em Menagerie -, depois roteiro (The Gentlemann Caller) recusado por Hollywood e finalmente a peça que o consagrou. Com base neste tipo de declarações, devidamente confirmadas por longas análises comparativas, acredita-se que quem identificou um par de temas já está em condições de explicar o conjunto da obra e, portanto liberado de entrar em certos detalhes, sobretudo os que escapam ao esquema.

Mas se for verdade que a supressão de um problema, como ensinam os homeopatas, costuma ter por resultado o seu ressurgimento em circunstância agravada, podemos antecipar desde já algumas dificuldades para interessados na obra de Tennessee Williams. Por exemplo: como explicar que Camino Real (reciclagem de American Blues) permaneça sem classificação, e quando muito seja considerada apenas uma coletânea de cenas escrita sob a influência da leitura de O Sonho de Strindberg?

Reconhecendo que seria pedir demais à crítica norte-americana um interesse maior que o simples registro por fracassos de bilheteria ou, mais grave, por textos que nem sequer ultrapassaram a condição de montagem experimental, vejamos então como ela trata os sucessos. No caso de Tennessee Williams, também não adianta muito, pois até mesmo A Streetcar Named Desire, uma quase unanimidade em sua condição de obra-prima, tem sido, desde a estréia na Broadway em 1947, objeto de cobranças no mínimo improcedentes (nos termos da peça) pela própria critica favorável. John Gassner, absolutamente insuspeito, por ter sido o primeiro a apostar no dramaturgo (patrocinou a montagem de Battle of Angels depois de tê-io selecionado para participar de um seminário que ministrava na escola de Erwin Piscator), cobra-lhe disciplina, multiplicação desnecessária de motivos e (pasmem!) lamenta a incapacidade de alcançar a dimensão trágica dos personagens. E Roger Boxill, um dos especialistas mais simpáticos à obra, não ultrapassa a sua defesa em nome de um conceito tão problemático como o de "naturalismo lírico". Concordando com Eric Bentley, que identificara a estruturação das peças com base antes no conto moderno que na "peça-bem-feita", aponta sem maiores sobressaltos os recursos técnicos da narrativa cinematográfica, bem como a inspiração em temas e motivos semelhantes aos de Tchekov (aliás, informação mais de uma vez dada pelo próprio dramaturgo, que estranhava a unilateralidade da crítica teatral, aparentemente interessada apenas em sua também declarada simpatia por temas provenientes de D.H. Lawrence).

Não vale, evidentemente, a pena perder tempo com a crítica conservadora, que desde a primeira peça rejeita a obra de Tennessee Williams em nome da "moral e dos bons costumes", ou de valores estéticos como a "peça-bem-feita", quando não de ambos. Mas para aproveitar a oportunidade de exercício do veneno ao estilo americano, não custa registrar a aristocrática objeção de Mary MacCarthy que, em nome de um critério como a verossimilhança de personagem, escreveu que Blanche até podia ser uma alcoólatra, mas ter sido expulsa de uma cidadezinha como prostituta e ao mesmo tempo se comportar como uma aristocrata convencional, isso seria inaceitável, por incoerência (logo, inverossimilhança). Consta que, por causa desse despropósito, Gore Vidal passou anos sem condições de ler as criticas teatrais da prestigiada colaboradora da Partisan Review.

É ainda menos produtivo concluir, depois dessa pequena amostra, que Tennessee Williams é um dramaturgo polêmico, como se costuma fazer nestes tempos de liberalismo intelectual triunfante. O principal problema é que afetos e desafetos acabam batendo no mesmo limite, ultrapassado pelo dramaturgo desde os primeiros exercícios de American Blues: sua obra, decididamente, não obedece ao padrão convencional que, entretanto continua orientando críticos e historiadores do teatro.

Para nos limitarmos ao primeiro sucesso, The Glass Menagerie, logo na primeira rubrica encontramos o seguinte alerta: "O narrador é uma convenção explícita da peça. Ele adota com a convenção dramática todas as licenças que servem a seus propósitos".

Diga-se, entretanto, em favor da crítica, que em mais de uma ocasião o dramaturgo curvou-se a suas exigências. Ele próprio confessa em suas memórias que acredita ter finalmente encontrado a forma da peça-bem-feita em Cat on a Hot Tin Roof e por essa razão, isto é, pelos critérios é sua peça preferida, já que os personagens são interessantes, verossímeis e tocantes; a unidade de tempo e lugar é consistente, etc.,

Para fins de especulação: quem conhece o senso de humor, com acentuada queda para o humor negro, do autor dessas memórias, deve considerar também outros dados. Cat estreou em 1954 e foi imediatamente aclamada pela crítica, recebendo o prêmio Pulitzer. Um ano antes, depois de muito tempo de batalha, inclusive com o texto, ele conseguira convencer Cheryl Crawford a produzir Camino Real (até então material de exercícios no Actors' Studio). Esta peça de estilo strindberguiano fora tão ferozmente rejeitada pela crítica que a produtora decidiu retirá-la de cartaz, sem condições financeiras de arriscar uma temporada. Não é impossível, pois, que o dramaturgo tenha escrito a sua "peça preferida" com um olho nos críticos, para mostrar-lhes que sabia escrever como pediam, e outro na bilheteria. No que andou bem, porque ao sucesso na Broadway seguiu-se o de Hollywood, garantindo-lhe uma situação financeira bastante confortável, capaz de justificar até uma aposentadoria. O fato de ele ter prosseguido, escrevendo um fracasso após outro, até às vésperas da morte, impunha perguntas a que ele respondia sempre tergiversando: "Elia Kazan foi o único a compreender o desespero com que eu preciso escrever para continuar vivendo", entre outras.

A outra vitória (de Pirro) da crítica está na opinião do próprio dramaturgo em relação a Menagerie (acabou concordando justamente com BrooKs Atkinson, que achava desnecessária a parte narrativa da peça) ou a Camino Real: ele morreu acreditando que não conseguira encontrar a estrutura adequada à peça, reiterando a sua convicção sobre a importância da forma acabada em qualquer obra.


Relações Perigosas

Os biógrafos de Tennessee Williams costumam se interessar por episódios mais ou menos folclóricos de sua vida, como o emprego arranjado pelo pai na companhia de sapatos, o trabalho em hotel vagabundo, ou pequenos golpes financeiros na cordata avó materna para financiar seus estudos universitários (área de dramaturgia), entre outros ao longo dos anos trinta. Mas a tentativa de se filiar ao programa da Works Progress Administrationtion em Chicago, onde o Federal Theatre desenvolvia radicais experiências de esquerda, não desperta muito interesse.

Outro detalhe considerado irrelevante é o prêmio conferido pelo Group Theatre a American Blues, peça em um ato onde estão registradas suas observações durante as andanças dos anos negros da Depressão, da mesma forma que não interessa relacionar o Group Theatre a seu sucessor, o Actors' Studio, fundado em 1947. E assim fica incompreenssível a preferência de Tennessee Williams por Elia Kazan, o diretor de A Streetcar Named Desire. A afinidade estética, que também envolveu a escolha de Marlon Brando e Jessica Tandy para os papéis de Stanley KowalsLy e Blanche Dubois, acaba parecendo simples questão de gosto pessoal, independente de critérios ou linguagem teatral. Isto quando não acontece de algum historiador provocar um curto-circuito para afirmar que o Actors' Studio foi criado em função das peças de Williams. (Se bem que neste caso estejamos no campo das analogias delirantes, mas com fundamento nas aparências: já que Stanislavski desenvolveu o seu método um pouco em função das peças de Tchekov, nada impede que Lee Strasberg tenha adaptado ao teatro americano aquele método em função do equivalente americano de Tchekov. Este é o tipo do engano produtivo.) Mas se houver alguma dúvida sobre o descompromisso do dramaturgo com o Studio, basta ver o tom divertido em que ele relata a derrota imposta por Bette Davis ao "método", quando da produção de The Night of the Iguana, em 1961.

Assim como não fez do Actors' Studio uma causa, este dramaturgo radicalmente individualista nunca foi militante de qualquer outra, muito menos das que a esquerda propôs nos anos 30, sem prejuízo de suas convicções democráticas e declarações de apreço pelo socialismo (anti-soviético, é claro, sobretudo devido à questão homossexual, como explicou pacientemente ao poeta Yevtuchenko). Da mesma forma, assumiu, pagando a conta no que lhe competia, posições perfeitamente claras, ao recusar autorização para montagem de suas peças em teatros segregacionistas ao sul do país, entre outros incidentes que envolveram integridade intelectual.

Simplificando bastante, pode-se dizer que os vínculos entre Williams e a tradição americana de esquerda acabaram passando para a história, sob as bênçãos do macarthismo, e no interesse de todos os envolvidos, como relações estritamente pessoais. Com isso, ficou na sombra a possibilidade de se examinarem seus textos, mesmo os maiores sucessos, como um elo importante para bem e para mal - entre as experiências teatrais dos anos trinta (patrimônio de que Williams se apropriou) e a Broadway depois de 1945, para não falar nada da Off-Broadway e outras experiências que pelas mesmas razões também não entram para a história.


Memória, Sensibilidade e Narrativa

Todos os que escrevem sobre Tennessee Williams acabam concordando que a matéria de seu teatro é constituída por lembranças sensíveis de um passado irremediavelmente perdido. Difícil é perceber quais são os instrumentos adequados para tratar com ela, ou por que o dramaturgo, por assim dizer, não cria heróis e vilões propriamente ditos; ou ainda, entender que não é o dramaturgo o nostálgico de tempos míticos, mas um tipo muito preciso de gente que ainda está por aí. Numa palavra: é difícil entender por que ele não escreve dramas.

Como a maioria acredita que ele queria escrever nessa forma, apenas falhava num ou noutro aspecto, alguns críticos acabam caindo na armadilha da projeção e chegam a afirmar que Tennessee Williams, em nome da nostalgia dos tempos melhores, recusa, através de figuras desagradáveis (como Stanley Kowalski), o presente e suas promessas, sem levar em conta que, mesmo no âmbito biográfico, quando muito a geração de seu pai desfrutou os tempos de opulência das tradicionais famílias sulistas, já que mesmo este sempre dependeu do trabalho para viver e sua mãe, que inspirou Amanda Wingfield, era filha de um pastor que sempre viveu em condições modestíssimas. Em outras palavras: não tendo nascido em "berço de ouro", não só o dramaturgo não tinha lembranças para mitificar como, ao contrário, dedicou sua arte a explicitar as dificuldades, inclusive mentais, de um tipo de mitômanas sulistas que conheceu muito bem. Por outro lado, suas convicções socialistas não lhe permitiam abraçar o novo mito do "american way of life" em construção.

Para trabalhar com o seu material, o dramaturgo precisaria recorrer, como fez acertadamente, a experiências como o "drama analítico" de Ibsen e aos pseudodiálogos dramáticos de Tchekov, por estarem em questão em suas peças o passado e o presente, não o futuro (não há futuro), como pressupõe o drama. Por conseqüência, não havendo perspectivas, nem uma ação a ser impulsionada pelo diálogo dramático, quando não é monólogo travestido, o diálogo se transforma em conversação, através da qual ficamos sabendo de eventuais ocorrências de tipo dramático na vida pregressa de algum personagem (caso mais evidente de Blanche em Streetcar).

De alguma forma percebendo que seu material era de ordem épica e não dramática, e estimulado pelas experiências de que participou na escola de Erwin Piscator, para continuar com o exemplo de Menagerie, nosso dramaturgo não teve dúvidas em recorrer às técnicas do teatro épico, tais como a projeção de legendas (como Piscator e Brecht) ou de fotos, criando também um narrador (como Thornton Wilder em Our Town, de 1937) que assume desde o inicio o foco narrativo da peça. Ainda hoje público e crítica ficam desnorteados com esse recurso não-dramático, passados 50 anos da estréia de Menagerie e outro tanto desde que Strindberg pela primeira vez o usou deliberadamente. Bem entendido: agora não se trata mais de recusá-lo como ilegítimo, que ninguém mais se arrisca a tanto; a dificuldade é perceber que a presença de um narrador retira do texto a objetividade que o drama sempre pretendeu ter e por isso obriga a análise a dar conta de sutilezas e especificações que o drama não tinha.


Perfis de Mulher sem Drama Nenhum

Summer and Smoke foi produzida entre nós em 1950, numa interessante demonstração de independência de colonizado, já que fracassara na Broadway. Apostando no dramaturgo que lançara entre nós em 1948, com The Glass Menagerie (À margem da Vida, na tradução de Esther Mesquista), e já que perdera para os Artistas Unidos, de Henriette Morineau, também em 1948, o bonde de A Streetcar Named Desire (Uma rua chamada pecado, na tradução de Bibi Ferreira e Carlos Lage), o TBC não teve dúvidas em lançar uma peça de Tennessee Williams que apresentava um papel perfeito para Cacilda Becker, mesmo desacompanhada da recomendação de crítica e bilheteria americanas. Traduzida por R. Magalhães Jr., Summer and Smoke chama-se no Brasil Anjo de Pedra, devido à estátua que ocupa o centro da cena.

Cacilda Becker foi assim a criadora de nossa primeira Alma Winemiller e Natália Thimberg a da segunda. Ambas foram calorosamente aplaudidas por Décio de Almeida Prado, que desde logo percebeu o especial talento de Tennessee Williams para criar papéis femininos capazes de consagrar atrizes, como aconteceu com as brasileiras. Se Alma Winemiller promoveu Natália Thimberg de boa a excepcional atriz, a de Cacilda ficou num plano "muito, mas muito superior a tudo o que fez anteriormente"4.

Nossa primeira Amanda Wingfield é criação de Marina Freire e Blanche Dubois, depois de Henriette Morineau, foi recriada por Maria Fernanda em 1962, numa produção do Teatro Oficina dirigida por Augusto Boal, agora em tradução para Um bonde chamado Desejo, de Brutus Pedreira (nos anos 70 Eva Wilma também fez o papel).

Curiosamente, e apesar da insistência do dramaturgo sobre o interesse de Laura em Menagerie, ninguém dá muita importância a esse papel. A começar por Laurette Taylor na Broadway e Anna Magnani na Itália, só as atrizes que fazem Amanda chamam a atenção dos críticos.

Embora todos se concentrem em Amanda, Blanche e Alma, por certo Laura também faz parte desse primeiro grupo de mulheres criadas por Tennessee Williams para mostrar alguns desastres da história americana. Laura foi derrotada por uma sociedade incapaz de lidar com gente frágil como os seus bichos de vidro, enquanto a leoa Amanda, a matriarca do politicamente correto ("Eu já disse para nunca, jamais usar essa palavra [aleijada]; você só tem um pequeno defeito, quase imperceptível"), tendo que carregar o fardo, luta pela sobrevivência com as armas que lhe restam, auxiliada pelos delírios que a aristocracia sulista (que só conhece de vista) e as imagens de Gone with the wind lhe sugerem, inclusive as do passado de Scarlett O'Hara, de que se apropriou. Diante da cada vez mais próxima partida de seu filho, única fonte de sustento dos três, só é capaz de pensar num casamento arranjado para a filha como solução de seus problemas básicos (isto é: como convém a um aristocrata, colocar-se com o seu fardo sob a guarda do primeiro incauto) - são os anos mais negros da Depressão. Com tanto material para um melodrama dos mais lacrimejantes (houve quem identificasse a peça como tal), a técnica - capaz de dar dimensão histórica às quatro figuras de Menagerie - e quem sabe o conhecimento de Mãe Coragem de Brecht podem ter salvo Tennessee Williams do desastre completo. O natural distanciamento que a presença de um narrador impõe obriga ao permanente exame crítico desses personagens: todos, inclusive o narrador, são o fruto mesquinho de uma sociedade e de um tempo que só produzem medíocres (não podemos nos esquecer de que o próprio narrador, um poeta de almoxarifado e desesperado consumidor de filmes de aventura, também não deu em nada: tornou-se um marinheiro cujo pior fardo é a culpa pelo abandono da mãe e da irmã). Qualquer tentativa de fazer tragédia, drama ou até mesmo comédia com essa gente resultaria em peça inócua, igual a milhares por aí. O dramaturgo, tendo feito uma opção programática pelo que depois chamou "little people", a ser reconhecido em sua dimensão própria, e não querendo fazer melodrama, teria mesmo que recorrer ao que chamava, em sua limitação terminológica, procedimentos não-convencionais no drama, pois não estava disposto a jogar no time dos edificantes.

Como ninguém se interessou pelo cenário inspirado em Porgy and Bess de Streetcar, que determina em termos históricos, estéticos e cênicos um enquadramento muito preciso dos personagens, Blanche foi transformada em mártir por uma crítica que antipatizava com o otimismo ingênuo e a vulgaridade americanos do pós-guerra, tudo devidamente encarnado na figura do trabalhador Stanley Kowalski. Mas é bom não esquecer que as platéias de 1947 percebiam com clareza o que havia de acintosamente torpe no comportamento e na linguagem aristocráticos de Blanche, e por isso volta e meia apoiavam as reações de Stanley. O dramaturgo estabelece desde a primeira cena que Blanche, como a Mãe Coragem de Brecht, não é personagem com a qual alguém possa se identificar: ela chega atirando, tanto na vizinha (a quem pede grosseiramente para sair) quanto na própria irmã, imediatamente transformada em subalterna, para não falar em seu desprezo ostensivo, de tipo cultivado, por Stanley. O desfecho de sua trajetória, sempre "dependendo da bondade de estranhos", menos que "justiça" moral do dramaturgo (como pensa Arthur Ganz, por exemplo), é antes a pergunta lançada a todos a respeito dos rumos daquela sociedade. Da mesma forma, Stanley, cujo comportamento chega ao repulsivo no sentido próprio, embora justificável de um angulo machista (Blanche se insinuou junto a ele desde o início, ela não estava pedindo para ser violentada?), tem normalmente atitudes saudáveis diante da vida: está interessado em sexo, comer, beber, jogar e trabalha para vencer na vida, com boas possibilidades, já que é caixeiro viajante (Arthur Miller vai tratar do assunto em seguida). Os momentos de confronto entre Stanley e Blanche, entretanto, não são suficientes para definir um antagonismo de tipo dramático: esses personagens precisariam ser menos complexos para essa possibilidade se verificar. E, como vimos, não faltou quem os simplificasse a ponto de cobrar coerência do dramaturgo.

Summer and Smoke é um caso ainda mais grave de inapetência dramática. Legítima descendente do drama de estações de Strindberg - até num literal sentido imprevisto, de passagem do tempo, que cobre o verão, o outono e o início do inverno -, esta peça se dilui propositalmente em um prólogo e doze cenas que elaboram o permanente desencontro entre duas pessoas que poderiam se amar, se a sociedade não desenvolvesse em ambos um insuportável superego (Roger Boxill foi um dos poucos analistas a perceber que tanto Alma quanto John só se expressam por clichês). Novamente, fértil material para melodrama ou "romance das moças" que Tennessee Williams preferiu não escrever. Pelo contrário, com toda a simpática perfídia de que poucos poetas neste século são capazes, mostrou o inferno em vida a que estão condenados os espertinhos adeptos da "alta cultura" e os gênios de província, autoproclamados aristocratas do espírito e por isso mesmo conformados com as regras de uma estrutura social falida, pagando o preço adicional de terem apenas uma leve desconfiança do que estão perdendo. O fracasso desta peça na Broadway pode ser ao menos em parte atribuído à dificuldade de se decidir, em cada cena, se é para rir ou para chorar. E Williams não facilita a vida de ninguém, assim como Tchekov, que depois dizia não entender por que o público não ria em suas comédias.

Epílogo Precoce

A obra de Tennessee Williams dependia de um público que já ao tempo de sua estréia na Broadway começava a seguir um caminho oposto ao tomado por ele. O próprio sucesso de Cat on a hot tin roof mostrava o tipo de concessões necessárias à continuidade de seu diálogo com aquele público. Ele fez todas elas (e mais algumas) nas adaptações de textos para o cinema, mas prosseguiu em suas experiências, cada vez menos aceitáveis.

Em sua própria avaliação, o aparecimento do chamado "teatro do absurdo" teria feito dele um dramaturgo ultrapassado, que, entretanto não desistia de continuar tentando, mesmo ao preço de voltar à condição de "teatro experimental", em produções Off-Broadway.

Superadas já nos anos 50 as condições que minimamente possibilitaram o seu aparecimento e sucesso (mesmo à custa de muito mal-entendido), e inviabilizadas aquelas que dariam sentido à retomada de sua obra, resta-nos apenas procurar entender um pouco melhor que seus contemporâneos, até porque contamos com o distanciamento histórico, o sentido mais profundo de sua crítica às alternativas abertas pela sociedade americana. Em sua opinião, uma das mais produtivas fábricas de neuróticos.




(*) No Brasil, essa peça recebeu o título de Uma Rua Chamada Pecado, quando desempenhada, mas manteve o título anterior na versão publicada.



Fonte:

Iná Camargo Costa