quinta-feira, 17 de setembro de 2009

LAND LEAL ESCREVEU: O QUE É DRAMATURGIA?

O QUE É DRAMATURGIA?


(Caminho de Damasco, de Strindberg - cena realista)

Há muitos princípios, mas talvez o mais básico e fundamental para o encantamento seja a definição que sintetiza os ensinamentos de Aristóteles:

DRAMA É AÇÃO E CONFLITO EM SEQUÊNCIA ASCENDENTE DE CAUSA E EFEITO, COM COMEÇO, MEIO E FIM, MAS NÃO NECESSARIAMENTE NESSA ORDEM.

1 – Em algumas línguas a palavra “drama” já significa dramaturgia, ou seja: o gênero de ficção para as artes cênicas, o rádio e a história em quadrinhos. Em português usamos o termo para designar também um dos cinco gêneros básicos da dramaturgia: drama, comédia, tragédia, melodrama e farsa. Em alguns países já se chamou o drama de “tragicomédia” ou de “tragédia burguesa”. Aqui usaremos o termo "drama" como sinônimo de dramaturgia e de teatro.

2 – O teatro (ou drama), como qualquer arte, não é a vida real. É uma convenção e está, portanto, sujeito a procedimentos arbitrários.

3 – O enredo é justamente isso: uma coisa engendrada, cuidadosamente planejada pelo dramaturgo, onde nada acontece por acaso (embora pareça e deva assim parecer). Tudo é resultado da escolha deliberada do autor, mas:

a) nada deve ser apresentado de forma que a platéia não possa absorver imediatamente;
b) nada que seja importante deve ser apresentado rápido demais e nada que não seja importante deve ser alongado;
c) tudo o que é dito no palco passa pela platéia. Por isso, o autor escreve pensando no público. Se o personagem A fala com o personagem B, a fala passa antes pela platéia e quando o personagem B responde, a fala chegará a A também através da platéia;

Resumindo: teatro = ator + espectador

d) o autor deve se identificar com todos os personagens, pois do contrário a peça ficaria capenga, isto é, ele usaria o personagem com o qual se identifica para promover suas idéias ou teses e os outros personagens seriam vazios e apenas suportes sem interesse dramático, o que tornaria o texto monótono, uma exposição de motivos em forma de diálogo mas não uma peça de teatro, onde cada personagem é humanizado e tem vida própria, exceto, é claro, os pequenos personagens funcionais que não tem espaço para maior desenvolvimento como um garçom, um carteiro, etc.

3 – Teatro (drama) é ação. A velha máxima é a mesma desde os gregos e se mantém inalterada. E se mudar, deixa de ser teatro[*]. Pelo menos como o conhecemos. Ação é a essência do personagem. É através dela que se revela o coração, a mente, a mudança e o crescimento do personagem: comprar roupa é o desejo de mudar ou melhorar a aparência; telefonar é o desejo de se comunicar; rir é expressar satisfação, surpresa, felicidade.

A ação pode ser interna, contida nos limites da fala e da pausa. O movimento físico não implica necessariamente em ação dramática e nem mesmo em caracterização. Há muita peça cheia de correria e sem ação dramática.

Ação dramática é aquela que tem relação significativa com o enredo, ou seja, que provoca uma conseqüência, seja ação física ou não, seja ela de caracterização ou não.

Exemplo: servir-se de uma bebida antes de dirigir automóvel ou ao chegar de uma reunião dos Alcoólicos Anônimos pode ter consequência dramática, mas simplesmente beber em cena seria apenas uma parte da caracterização criada pelo autor ou pelo ator que representa o papel, mas não é uma ação dramática.

Já é clássica a comparação entre o lenço de Desdêmona e um lenço qualquer. Deixar o lenço cair porque o personagem tem o hábito de esquecer coisas é uma caracterização (talvez pelo dramaturgo?); deixar cair porque o personagem gosta de flertar é caracterização (talvez pela atriz?), mas quando Desdêmona deixa o lenço cair se configura um momento crucial no enredo, devido às suas consequências.

Também o diálogo, quando leva a uma mudança de tom ou de comportamento, a uma revelação, uma complicação ou uma resolução, estará desenvolvendo o enredo, levando o movimento dramático para frente mesmo que os atores fiquem estáticos. A ação interna do diálogo é o movimento dramático.

Exemplo:

Marido – Por que você quer ir embora?
Cunhada – Você não percebe?
Marido – Não. E sua irmã também não.
Cunhada – Ainda bem.
Marido – Como assim?
Cunhada – Eu te amo!

Esse diálogo seria uma ação dramática porque provocaria outras ações, seja em comédia ou tragédia. A ação é o maior fundamento do teatro (na verdade, do drama) e sem ela não há jogo, não há espetáculo (na verdade, espetáculo que prende totalmente o espectador). Isso não quer dizer que o movimento físico não seja desejável. Ao contrário, uma vez que o teatro é um espetáculo essencialmente visual, a ação física é fundamental em muitas das grandes obras primas.

Em Hamlet (geralmente considerada uma peça introspectiva) há mais peripécia física do que na maioria das peças: fantasma, esconde-esconde, lutas, mortes (até no enterro tem briga), viagens etc., todas altamente dramáticas e essenciais ao enredo.

Em Romeu e Julieta, a luta de espadas entre Teobaldo e Mercútio acaba sendo uma ação dramática de consequências imprevisíveis na disputa entre Capuletos e Montéquios.

4 – Teatro não é "historinha". Essa é uma importante orientação dada por dramaturgos experientes. Embora uma peça tenha começo, meio e fim, essa não deve ser a preocupação do autor. Ele simplesmente desenvolve a ação dramática, que por sua vez provocará outra ação e assim por diante. A história, automaticamente, se fará de ações lógicas e consequentes.

Talvez daí venha uma outra importante dica dos dramaturgos que nos orientam a começar com uma situação que já esteja armada: comece com cena que você tem na cabeça; ou: comece pelo clímax da peça; ou: não tente fazer uma historinha desde o começo. Porque isso pode bloquear o processo criativo e porque o importante é a lógica da ação e não a da cronologia. Em volta da cena que você tem na cabeça a peça começa a se formar, seja em ações para a frente (em direção ao fim da peça) ou para trás (em direção ao começo).

São apenas sugestões. Não há nenhuma receita. Se alguém prefere escrever como um romancista que puxa uma frase atrás de outra até o final, que o faça, mas esse é o mais contraproducente. Mesmo o romancista arma antes um esquema ou argumento. É sempre melhor primeiro escrever um esboço da história e depois preencher o esqueleto. Cada um perderá menos tempo com seu próprio método. Certamente qualquer método é melhor do que tentativas de erro e acerto sem noção de como usar o material.

Arme uma situação concreta com ramificações aos diferentes personagens da cena (ação). Crie ações que signifiquem, incluam ou mostrem o conteúdo, a idéia, o tema.

Isso sem falar nas revisões porque talvez aí esteja o pulo do gato. É no processo final de revisão que o autor pode até descartar a idéia inicial da peça, inverter, cortar, mudar e afinar detalhes que darão aquele último toque “mágico” do artista.

5 – Não se pode escrever sem saber o que se quer dizer.

A dramaturgia não foge à regra. O vislumbre criativo pode vir de qualquer fonte: um sonho, uma notícia de jornal, um livro, um incidente no trabalho, em família ou na rua, a experiência pessoal, profissional, amorosa, a experiência de terceiros, uma piada, interesse pelo comportamento de uma pessoa ou grupo (futuros personagens) uma outra peça ou filme, etc. É no trabalho com essas imagens que o dramaturgo se torna um pensador e desenvolve um tema.

Contudo, antes do tema é preciso ter o assunto a tratar - por exemplo: amor, ciúme, ambição, ganância, fanatismo, terrorismo, valores ultrapassados, tradição, etc. Tudo isso são assuntos mas não ajudam muito porque lhes falta uma idéia: assunto + idéia = tema.

Eis um assunto com uma idéia, um tema: O amor pode ter consequências trágicas (Abelardo e Heloisa?)

Outros: A tradição pode ser uma prisão/libertação (Abelardo e Heloisa?); O amor pode tornar o amante completamente irresponsável sobre a conseqüência de seus atos (Romeu e Julieta?); O amor pode transformar dois adolescentes ingênuos e sonhadores em adultos firmes e decididos a enfrentar o mundo (Romeu e Julieta?); O ciúme é uma doença que pode destruir a pessoa (Otelo?); A retidão de caráter aliada a uma certa ingenuidade pode ser uma perigosa armadilha (Otelo?).

Se o assunto precisa de uma idéia, esta precisa de uma situação, um estado de coisas que somente se desenvolve através dos personagens.

Eis a equação: tema + situação + personagens = enredo.

Embora uma peça seja uma seqüência de situações (ou seja, de ações), elas nem sempre são situações dramáticas e, portanto não constituem teatro.

Exemplo: acordo cedo, tomo café, vou trabalhar, volto à noite e vou dormir.

Não há nada de dramático aí porque não há um incidente que provoque uma ação e outra e mais outra. Além disso, quem provoca o incidente é (naquele dado momento) o personagem mais importante.

Exemplo: acordo cedo, tomo café (quando meu chefe me telefona para anunciar que estou despedido).

Neste momento sou o personagem “passivo” e meu chefe é mais importante. Este incidente pode ter conseqüências de acordo com os personagens e a trama que o autor desenvolve:

assunto + idéia + personagens + situação + incidentes = enredo.

O movimento (ação dramática) em uma peça é contínuo até o final da peça – um incidente leva a outro – sempre ligado à idéia guia, ao tema central.

Uma peça pode ter ainda vários outros temas paralelos e subsidiários ao tema principal.

Finalmente, não importa se alguém começa a escrever sem saber direito ainda o que quer dizer, mas as coisas somente vão se encaixar, arredondar, quando souber exatamente o que quer dizer.


[*] Talvez pudéssemos dizer: teatro é ação. Mas teatro aceita tudo, desde esquete, happening, performance, aula-espetáculo e até "strip-tease" (que não deixa de conter telementos “dramáticos”, como instigar o interesse do público, prometendo coisas mais interessantes para logo mais). Portanto, o drama se restringe a apenas uma das categorias do teatro, embora, certamente, a mais volumosa, bem sucedida e funcional. em todas as épocas. Como tudo é dinâmico e se transforma, não podemos deixar de mencionar a importante emergência da figura do “encenador moderno” – aliás, herdeiros ou de alguma forma seguidores de Appia, Reinhart, Meyerhold ou Piscator - em contraposição ao diretor e até ao dramaturgo tradicionais. Há mesmo algumas memoráveis e já históricas criações de alguns luminares dessa corrente (independentemente de suas carreiras tradicionais) como Robert Wilson, Mnouchkine, Peter Brook e o nosso Antunes Filho, que em muitas instâncias colocam em xeque a dramaturgia tradicional. Contudo, no que tange à “ação dramática”, quanto mais eles contestam a concepção original, menos interessantes se tornam seus espetáculos. Reinventar a roda? Ora, o “truque” já funciona há pelo menos 2.500 anos. Nada contra a inovação e o progresso. É preciso correr riscos, mas se preceitos fundamentais de uma determinada técnica são rompidos, o risco não seria o risco natural da criatividade, mas o de se inventar uma terceira coisa (como aliás, o hoje chamado pós-drama) que ainda seria teatro, mas não seria dramaturgia. Isso, a nosso ver, leva à perda de força do encantamento.



(Land Leal é tradutor e homem de teatro e tem o saudoso Barale Neto como modelo de homem de teatro total. )

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