Quando o jovem Barack Obama foi levado para Java para viver com o padrasto indonésio, espantou-se ao ver, na estrada, uma estátua gigantesca com corpo de homem e cabeça de macaco. Disseram-lhe que se tratava de Hanuman, o deus-macaco hindu. O motivo para um gigantesco deus hindu ser retratado nas ruas da Indonésia islâmica dos dias de hoje é parte de uma história fascinante sobre tolerância e assimilação, um compromisso informal entre religiões diferente de qualquer solução para os problemas das sociedades multirreligiosas [...]. E é uma história que, de certa maneira, pode ser sintetizada por uma marionete do teatro de sombras indonésio, uma forma de arte bastante conhecida e tradicional que permanece viva, apesar de muito antiga; porém, também está impregnada de política contemporânea. Por meio desta marionete e de seus companheiros, podemos explorar a expansão da transformação religiosa e política que começou no Sudeste Asiático há quinhentos anos e que continua a afetar a região nos dias de hoje.
O boneco apresentado aqui, um entre as várias centenas existentes na coleção do British Museum, que datam de mais de duzentos anos atrás até hoje, veio da ilha indonésia de Java. Tem cerca de setenta centímetros de altura e representa um personagem masculino com uma expressão de grande dramaticidade. Seu nome é Bima, e ele exibe feições bem peculiares, quase caricaturais — por exemplo, um nariz muito comprido —, e braços longos e finos, cada um terminando em uma única grande garra. Seu corpo é coberto por delicados tecidos rendados que tornariam sua sombra ainda mais dramática durante a apresentação. O rosto de Bima é negro, mas ele usa roupas douradas e adereços de cores vivas. Ainda que agora pareça sem vida e frágil, no passado ele teria empolgado plateias em espetáculos que se estendiam por toda a noite em uma corte javanesa. Esse tipo de espetáculo era conhecido na época — e assim continua até hoje — como teatro de sombras.
A forma real dos bonecos foi o produto de uma das mais drásticas mudanças religiosas ocorridas nos séculos XV e XVI. Enquanto a Espanha convertia o Novo Mundo ao catolicismo, o islã se expandia pelo que é hoje a Malásia, a Indonésia e o sul das Filipinas, e por volta de 1600 a maior parte do povo javanês era muçulmana. No entanto, o teatro de sombras já era uma característica da vida em Java muito antes da chegada do islã. O próprio Bima é um personagem conhecido não apenas em Java, mas por toda a Índia, uma vez que aparece no grande épico hindu Mahabharata. Em Java, porém, este personagem hindu veio a ser manipulado por titereiros islâmicos em apresentações diante de plateias também islâmicas. Ninguém parece ter se importado com isso, e o teatro de sombras indonésio segue combinando elementos pagãos, hindus e muçulmanos até hoje.
Confeccionar uma marionete como o nosso Bima era, e ainda é, uma tarefa que requeria enorme habilidade e exigia a participação de vários artesãos diferentes. Ele é feito de couro de búfalo cuidadosamente preparado, depois de ser raspado e esticado até ficar fino e translúcido. É o material que dá o nome javanês a esse gênero de teatro — Wayang Kulit —, “teatro de pele”. O boneco de marionete era então dourado e pintado; braços articulados eram acrescentados, e hastes feitas de chifre de búfalo eram fixadas ao corpo e aos braços para controlar seus movimentos.
Historicamente, as apresentações do teatro de sombras costumavam durar a noite inteira. A luz emitida por uma lamparina por trás do titereiro projetava as sombras das marionetes em um lençol branco. Alguns integrantes da plateia — em geral mulheres e crianças — sentavam-se do lado da tela em que a sombra era projetada, enquanto os homens se sentavam do outro, que oferecia uma visão melhor. Ao titereiro, conhecido como dalang, cabiam não apenas a tarefa de controlar os bonecos como a de reger a música executada por uma orquestra de gamelão.
Sumarsam, um prestigiado dalang no teatro de sombras atual, nos dá uma ideia de quão complexo é executar com competência uma apresentação:
É necessário controlar os bonecos, às vezes dois, três ou seis ao mesmo tempo, e o mestre titereiro também precisa saber quando dar o sinal para que os músicos comecem a tocar. E é claro que ele também tem de dar voz aos bonecos em diferentes diálogos; além disso, em algumas ocasiões canta músicas que ditam a atmosfera de determinadas cenas. Precisará usar seus braços e pernas — e tudo isso enquanto está sentado de pernas cruzadas. É divertido, mas também um trabalho que representa um grande desafio. As histórias podem ser atualizadas, porém a estrutura da trama permanece sempre a mesma.
As histórias contadas no teatro de sombras são em sua maior parte extraídas de dois grandes épicos do hinduísmo — o Mahabharata e o Ramayana, ambos escritos há bem mais de dois mil anos. Eles sempre foram amplamente conhecidos em Java, pois o hinduísmo, ao lado do budismo, era a religião mais difundida ali antes que o islamismo se tornasse hegemônico.
Como o budismo que inspirou Borobudur por volta do ano 800 e o hinduísmo que criou o Mahabharata, o islã chegou a Java pelas rotas do comércio marítimo que ligavam a Indonésia à Índia e ao Oriente Médio. Governantes javaneses logo perceberam as vantagens de se converterem ao islamismo: a despeito de uma possível atração espiritual, ele facilitava tanto o comércio com o mundo muçulmano de então quanto suas relações diplomáticas com as grandes potências islâmicas da Turquia otomana e a Índia mogol. A nova religião acarretou importantes mudanças em muitos aspectos da vida, mas de modo geral a cultura e a crença javanesas absorveram o islã em vez de serem totalmente substituídas por ele.
Os novos governantes islâmicos parecem ter aceitado isso: promoveram ativamente o teatro de sombras e suas histórias hindus, que continuaram a gozar da mesma popularidade de sempre. As plateias, tanto na época como nos dias de hoje, reconheciam de imediato o boneco Bima. No Mahabharata, ele é um dos cinco heroicos irmãos (hoje é possível acompanhar suas façanhas em desenhos animados na internet) e o grande guerreiro entre eles — de sentimentos nobres, dotado de franqueza e de força sobre-humana, equivalente à de dez mil elefantes, mas também dado a tiradas espirituosas e famoso por seu talento na cozinha. Um único toque das suas unhas que mais parecem garras significa a morte para seus inimigos.
O rosto negro do boneco de Bima expressa sua paz interior e serenidade, contrastando com os “vilões” do teatro de sombras, muitas vezes retratados em vermelho para indicar um espírito de vingança e crueldade. Mas sua forma também nos conta que a influência islâmica se fez presente nessa tradicional arte hindu, o que fica óbvio se compararmos nossa marionete javanesa de Bima, com o nariz e as garras caricaturais, a outro boneco representando Bima confeccionado na ilha vizinha de Bali, que permaneceu hindu. A figura de Bali exibe no rosto feições mais arredondadas e naturais, e seus braços e pernas parecem mais proporcionais em relação ao corpo. Hoje muitos em Java argumentariam que essas diferenças podem ser explicadas pela religião e que os bonecos tradicionais hindus foram deliberadamente reformulados por seus fabricantes javaneses muçulmanos a fim de contornar a proibição islâmica de criação de imagens de seres humanos e deuses. Algumas histórias falam em tentativas de proibir o teatro de sombras nos séculos XVI e XVII; outras mencionam Sunan Giri, um conhecido santo muçulmano, que teve a engenhosa ideia de distorcer as feições das marionetes para contornar a proibição — um ajuste feliz que pode explicar a estranha aparência do nosso Bima.
Atualmente a Indonésia, com seus 245 milhões de habitantes, é a nação islâmica mais populosa do mundo, e o teatro de sombras continua bem vivo. O autor de origem malaia Tash Aw descreve o papel permanente do teatro de sombras:
Mesmo hoje, existe uma grande consciência a respeito do que ocorre no reino do teatro de sombras. É uma forma de arte que segue sempre sendo renovada e usada de formas novas e instigantes. E, ainda que seu repertório tenha origem em grande parte no Ramayana e no Mahabharata, titereiros mais jovens estão sempre usando o teatro de sombras para injetar vida e humor com comentários maliciosos sobre a política na Indonésia, difíceis de serem reproduzidos em outros lugares. Logo após a crise financeira de 1997, lembro-me de um monólogo virtuoso em Jacarta que poderia ser traduzido de forma aproximada como “A língua ainda está em coma” ou “A língua continua muda”, no qual o atual presidente Habibie era apresentado como um personagem ridículo chamado Gareng, baixinho e com olhinhos irrequietos, incrivelmente determinado, porém muito incompetente. Assim, em vários aspectos, o teatro de sombras tornou-se uma fonte de sátira política e social de um modo que seria difícil acontecer na TV, no rádio ou nos jornais, já que esses meios podem ser censurados com mais facilidade; ele se mostra bem mais flexível, mais enraizado em comunidades de base e, portanto, mais difícil de ser controlado.
Uma
marionete de Bima feita em Bali exibe feições mais realistas
No entanto, não é apenas a oposição que faz uso do teatro de sombras. O ex-presidente Sukarno, o primeiro dirigente da Indonésia após a obtenção da independência da Holanda depois da Segunda Guerra Mundial, gostava de se identificar com personagens de marionetes do teatro de sombras, sobretudo com Bima — um guerreiro íntegro e poderoso, que fala a linguagem do homem comum, e não a da elite. Sukarno costumava ser comparado ao dalang, o mestre das marionetes, do povo indonésio — aquele que lhe dava voz e o dirigia em seu novo Estado, liderando-o em seu épico nacional, como de fato fez durante vinte anos até ser deposto em 1967.
Mas por que este Bima se encontra agora no British Museum? A resposta, como sempre, está na política europeia. Durante cinco anos, entre 1811 e 1816, em meio à luta travada contra a França napoleônica em várias partes do mundo, a Grã-Bretanha ocupou Java. O novo governador britânico, Thomas Stamford Raffles, que mais tarde fundaria Cingapura, era um estudioso dedicado e grande admirador da cultura javanesa de todas as épocas, e, a exemplo de todos os governantes de Java, incentivava o teatro de sombras e colecionava seus bonecos. Nosso Bima veio dele. Esse curto período de domínio britânico explica outra coisa: por que o carro de onde o jovem Barack Obama avistou um deus hindu nas ruas da Jacarta islâmica era guiado no lado esquerdo da estrada.
Fonte:
A história do mundo em 100 objetos, Neil MacGregor; tradução de Beatriz Rodrigues, Berilo Vargas e Cláudio Figueiredo